Relato acerca da organização da colecção de Instrumentos Musicais Populares Portugueses1

Benjamim Pereira

2000

Em carta datada de 29/1/60 Jorge Dias comunicava a Ernesto Veiga de Oliveira o seguinte:

"My dear old boy!

Propus à Gulbenkian fazer um estudo dos instrumentos musicais populares em Portugal, mas disse que só o podia fazer com a tua colaboração e a da Margot. 0 estudo envolve excursões e aquisição de instrumentos que tenham interesse sob o ponto de vista meramente etnográfico e os que valham pela sua raridade ou ornamentação. Eu vi como tu tens jeito para adquirir objectos no campo.

Disse que tu podias dedicar 4 meses em 1960 em trabalho de campo, com a colaboração do Benjamim. Eu só farei um mês de excursões. Tu tens 4 contos mensais e o Benjamim 2. Fora disso terão 100$00 diários por cabeça como ajudas de custo.

Temos 30 contos para aquisição de instrumentos!!

Temos a bibliografia estrangeira necessária adquirida pela Gulbenkian, para fazermos depois o estudo teórico. 0 estudo será feito em 1961 e teremos retribuição pelo trabalho de gabinete.

As fotografias serão pagas pela Fundação!

Os trabalhos devem ser precedidos de um inquérito, feito aos padres, professores primários e informantes conhecidos. Devemos pensar a sério a maneira de fazer o inquérito. Convém fazê-lo impresso, talvez com figuras e de maneira que eles possam responder no próprio impresso. Devemos mandar juntamente um envelope com a direcção do Centro já impressa e respectivo selo, para não afugentar respostas. A Fundação dá uns 3 contos para o inquérito.

A Margot e eu ajudamos nos trabalhos de gabinete e eu farei um mês de trabalho de campo. Se fizermos isto bem, o que julgo ser possível, eles publicam um trabalho bem ilustrado e isto pode ser o princípio de muitas outras coisas que nos dão prazer e nos dão umas massas.

Agora temos de pensar muito a sério na bibliografia dos instrumentos: dicionários estrangeiros de música, tratados e tudo que estiver escrito em português e espanhol, no Brasil, sobre instrumentos musicais, populares ou não.

Também nos interessa iconografia, obras com esculturas de igrejas que representam músicos, livros de trajos com músicos, louças, azulejos, pinturas, etc., etc. Vamos agarrar-nos a isto a sério...

Começa já a recolher bibliografia e manda-me que eu faço o mesmo. Convém escrever a amigos a perguntar, cá e no estrangeiro.

Como isto este ano quase que só dá trabalho material, de idas ao campo e organizar - temos de fazer um ficheiro especial e dossiers das respostas organizadas geograficamente e por instrumentos para estabelecer áreas. Convém fazer quanto antes para iniciar as excursões depois de termos informações e informantes com quem contactar. Tu vais receber em breve um ofício da Gulbenkian, pedindo bibliografia sobre etno-musicologia portuguesa. Vê nos ficheiros tudo que tenhamos que diga respeito à música, canto, dança, instrumentos musicais, etc., de coisas portuguesas. Infelizmente não será muito, e é possível que tenhamos lacunas graves, mas, Santo António.

Vai fazendo um esquema que eu faço outro. Depois encontramo-nos para conferenciar e tomar resoluções definitivas.

Bem meu velho, até breve. Vamos meter os ombros à empresa e levar a coisa à vitória.

Um grande abraço do teu António.

P.S.: De resto combinou-se que vocês levarão um aparelho de gravar o som, que ainda há-de vir a ser adquirido.2

0 trabalho escrito ficou-me confiado, mas eu penso associar-te assim como a Margot, sobretudo se ela fizer o estudo dos timbres dos instrumentos e da difusão de alguns. De contrário seremos nós dois. 0 trabalho de redacção será para o ano. Creio que podemos fazer uma coisa catita"3

Dando corpo a este programa foram redigidas as perguntas constantes do "Inquérito" e este enviado, de 26 de Março a 11 de Abril de 1960, a mais de 3.700 entidades - párocos, professores primários, pessoas conhecidas e outras julgadas qualificadas, recobrindo praticamente todas as freguesias do país incluindo as ilhas da Madeira e Açores.

Foram recebidas cerca de 1.500 respostas, submetidas de imediato a uma sistematização regional e tipológica. Em simultâneo, desenvolvia-se um ficheiro bibliográfico, musical e iconográfico sobre esta temática.

Os resultados deste primeiro passo não constituíram, de facto, um contributo válido, e, na sua quase totalidade, foi praticamente nulo, tendo-nos obrigado a deslocações repetidas e totalmente improfícuas. Como refere Ernesto Veiga de Oliveira

"(...) com essa metodologia, o panorama músico-instrumental do Pais, além de viciado por informações descriminadas, apresentava-se como uma floresta profusa e desordenada: por toda a parte se encontravam praticamente todas as espécies de instrumentos; não víamos como definir o fio condutor que tivesse um significado expressivo, e o nosso trabalho não conduzia a nenhures. Foi então que, ao mesmo tempo que pusemos totalmente de lado aqueles questionários e passámos a praticar o inquérito directo por contacto, convívio e participação com as pessoas implicadas no fenómeno musical das diferentes terras, formulámos a regra que permitiu iniciar as nossas actividades de pesquisa e recolha, e que nos orientou seguidamente todo o tempo: procurar determinar não propriamente os instrumentos que existiam e se usavam em cada terra, mas sim aqueles que integravam, tinham significado ou se relacionavam com as formas e ocasiões musicais características das diversas áreas. Essa nova orientação que decidimos dar ao nosso trabalho, iniciou-se numa povoação dos arredores de Viana do Castelo, quando, em boa-hora, saímos, à beira do desânimo definitivo e da desistência de poder levar a cabo a tarefa que gizáramos, da casa de mais um pároco que respondera ao nosso inquérito sem qualquer preocupação de exactidão, indicando que ali se usavam "tambores", e resolvemos ir à loja do vendeiro da terra falar com as gentes, entre dois copos, e saber o que eram esses "tambores" e demos de chofre com a revelação do reino dos Zé-pereiras da Ribeira Lima, anunciando a riqueza fabulosa que iríamos seguidamente encontrar pelo País fora.

A partir dai, formas musicais, tocadores, instrumentos, muitas vezes ainda por des-vendar, foram o nosso quotidiano, a nossa luta, os nossos amigos, a nossa alegria, o nosso rumo"4

Precisando melhor, em Fevereiro de 1960, realizaram-se três viagens prospectivas com a participação de Ernesto Veiga de Oliveira e de mim próprio, a primeira, de 2 a 3, do Porto a Terras de Basto; a segunda, de 8 a 14 (a única em que fomos acompanhados por Jorge Dias), do Porto/Lisboa/Alentejo/Algarve; e a terceira, a 20, do Porto à região de Viana do Castelo, num total de 1.620 quilómetros.

A partir do mês de Agosto os trabalhos conhecem uma orientação mais segura, visando sobretudo surpreender os tocadores nos espaços festivos. Assim, de 13 a 15 desse mês estivemos no terreiro de S. Bento da Porta Aberta, em Terras de Bouro; de 22 a 26 no Soajo e Peneda; de 4 a 9 de Setembro, novamente na Senhora da Peneda e Terras de Basto; de 16 a 17, em Vila Nova de Cerveira e Feiras Novas de Ponte de Lima; e de 22 a 29 do mesmo mês em Terras de Basto e Amarante por motivo da Feira de S. Miguel, em Cabeceiras de Basto, e do conjunto instrumental da chula.

Devido à importância de que se revestia essa forma musico-instrumental volvemos a essa região de Basto e Amarante nos dias 6 e 12/17 de Outubro e finalmente, a 13 de Novembro, de novo a S. Simão de Amarante por causa da aquisição de uma rara rabeca chuleira, num total de 3.900 quilómetros.

Estas experiências de campo permitiram-nos ajuizar das dificuldades que um trabalho desta natureza representava. Por um lado, a escassez e mesmo raridade das espécies ainda existentes; por outro, a incerteza e deficiência de informes úteis sobre o seu paradeiro, o seu contexto e sentido etnográfico.

De acordo com princípios estabelecidos procurou-se determinar, e em seguida adquirir, os exemplares mais representativos. E, de um modo geral, esse objectivo começou a ser atingido e, no final desse primeiro ano, obtiveram-se 40 instrumentos, que custaram 11.160$00.

A título de exemplo refira-se a aquisição de uma velha harmónica que encontrámos nas mãos de um tocador na romaria da Senhora do Viso, em Celorico de Basto, que mostrava, na sacristia da capela, um amontoado de varapaus dos romeiros, cujo uso era interditado pela GNR durante o período festivo. Um conjunto instrumental dos Zé-pereiras composto de gaita-de-foles, bombo e caixa, de fustes profusamente decorados, com medalhões e legendas pintadas, da região de Paredes de Coura, que havíamos seleccionado de entre cerca de 100 tocadores que actuaram nas Feiras Novas de Ponte de Lima. Um cavaquinho e uma viola chuleira feitas por um fabricante não especializado, da região de Basto, que com pouco mais do que as suas mãos privilegiadas, conseguia fazer instrumentos de excepcional qualidade.

Importa referir o caso de uma rabeca rabela de Amarante, que constituía uma inestimável peça de artesanato da região, perdida então para a colecção após os mais porfiados esforços e delicadas diligências pela nossa parte, devido ao modo lamentável como a questão foi assumida e encaminhada por pessoas que nela eram parte e cuja resolução final só foi alcançada em 1962.

A rabeca pertencia então a Eduardo Monteiro Guedes que a havia cedido ao Abade de Lufrei, por ocasião da actuação do Rancho Folclórico da Reguenga naquela aldeia, tendo em vista uma possível inclusão deste instrumento no conjunto musical daquele grupo. A oferta de 500$00 que fizemos ao Sr. Eduardo complicou a situação. Foram certamente tomadas decisões unilaterais que a diferença do status social das duas personagens envolvidas favoreceu. As diligências junto do Abade não lograram o menor esclarecimento e, pelo contrário, conduziram à exaltação de uma postura farisaica a que este se remeteu, de humílimo servo e paladino indesmentível da palavra e compromissos assumidos. A nossa persistência, conjugada com o facto daquela rabeca se ajustar mal ao repertório musical daquele grupo permitiu, graças também à intervenção do Engº. Henrique Nogueira de Oliveira, Tio de Ernesto Veiga de Oliveira, a incorporação desse magnífico exemplar na colecção.

No decurso da investigação, nesse primeiro ano, tivemos ocasião de conhecer, visitar e dialogar com alguns violeiros e fabricantes locais que nos forneceram dados de interesse sobre a sua arte, tipos e particularidades das espécies tradicionais da região e costumes a elas ligados.

Resumindo, no ano de 1960 gastámos 37 dias em trabalhos de campo e 38 na elaboração e organização do inquérito e respectivas respostas, recolha de elementos bibliográficos, iconográficos e trabalhos acessórios.

As prospecções e busca de instrumentos em 1961 assentaram num plano que estabeleceu uma divisão do país em correspondência com um determinado número de regiões músico-instrumentais, de acordo com as formas e manifestações musicais características de cada uma, e o instrumento ou conjunto instrumental com que estas eram realizadas. Assim, definimos, no Noroeste, o conjunto dos Zé-pereiras e das rusgas minhotas; no Baixo Douro e Tâmega, a chula rabela; no leste de Trás-os-Montes, em Terras de Miranda e Vinhais, os gaiteiros e tamborileiros; na região de Coimbra, os gaiteiros e o fado; na Beira Baixa, os "Bombos" de Lavacolhos e Silvares; no Baixo Atentejo, o tamborileiro e a viola campaniça; em todo o leste do País, o pandeiro quadrangular e a flauta; em Lisboa, o fado; como instrumentos de uso geral e menos caracteristicamente populares, os cordofones de tuna.

Dentro do mesmo espírito, estabelecemos também séries de outros tipos de instrumentos, que respeitam não propriamente à música, mas a determinadas celebrações, constituídas na sua maior parte por pequenas espécies idiofónicas, feitas pelos próprios ou por amadores locais, de grande variedade regional, mas que pudemos ordenar de modo coerente e compreensível, agrupando-as, conforme as suas funções, em instrumentos da Semana Santa, do Carnaval, Serração da Velha, Assuadas e Troças, e instrumentos profissionais.

Foi a partir deste plano que orientámos as nossas explorações sistemáticas. Constatámos a iminência do fim da nossa tradição musical popular e, com ele, do total desaparecimento de todo o variado e pitoresco instrumental em que ela se apoiava, que, em muitos casos, foi já extremamente difícil de encontrar. 0 grande problema, que sobrelevou todas as demais considerações, continuou a ser o da raridade dos instrumentos; por isso, perante as espécies que buscávamos envidámos todos os esforços, já por esclarecimento e persuasão, já oferecendo um preço convincente, exagerado mesmo por vezes, quando tal foi o único meio, para as tentarmos obter. E na verdade, conseguimos, muitas vezes à custa de um verdadeiro trabalho de detecção, de diligências repetidas, insistentes e delicadas, que só abandonámos perante o objecto ou a certeza da sua destruição, adquirir todas as peças cuja existência nos foi assinalada e que podiam interessar à constituição da colecção.

Na execução deste plano, os trabalhos de campo, no decurso de 1961 constaram sobretudo de cinco grandes saídas no País, em busca dos instrumentos que pelo processo descrito, havíamos identificado nas várias regiões que íamos percorrer, procurando delimitar as suas áreas respectivas; e também, simultaneamente, recolher todos os elementos que lhes dissessem respeito. De 28 de Fevereiro a 5 de Março, à região do Douro e Trás-os-Montes, numa primeira prospecção e tomada de contacto, para conhecimento dos instrumentos ali usados ou existentes, de que logo adquirimos algumas espécies, nomeadamente várias flautas e uma gaita-de-fotes feita pelo gaiteiro-filósofo de Travanca, Mogadouro, que nos revelou o segredo esotérico da gaita-de-foles: "Eles dizem que sou meio maluco e meio bêbado; mas eu sei que para tocar bem a gaita não bastam os dedos como os outros pensam: é necessário alegria e amor do próximo; e também álcool do espírito" De 9 a 17 de Março, à Beira Baixa e novamente a Trás-os-Montes donde já trouxemos um grande número de espécies - adufes, flautas, sarroncas e instrumental dos "Bombos" beirões, pífaros, pandeiros, o instrumento do tamborileiro transmontano e parte do dos gaiteiros e pauliteiros da região, em especial a magnífica gaita-de-foles de feitura pastoril local, que pertencia ao gaiteiro José João da Igreja, de Ifanes, e o tamboril e flauta, do Virgílio Cristal, de Constantim, em Terras de Miranda. Lembro o primeiro encontro com o Virgílio Cristal, em sua casa, quando se ocupava na feitura de uma capa de honras mirandesa. Na altura, a prática musical caíra em desuso e valeu a nossa insistência para ele se esforçar na busca do tamboril, escondido num recanto junto da chaminé da cozinha. Como em tantas outras situações o acto de cedência não foi fácil. Os argumentos culturais que defendíamos criaram-lhe um certo embaraço e, para encurtar razões, pediu 250$00 por ele. Quando, de imediato se deu conta que aceitávamos essa proposta ficou aflito e recusou-se a receber essa importância alegando que o instrumento não tinha esse valor. Fizera-o para se livrar da nossa solicitação. Esse primeiro contacto selou uma amizade de toda a vida. Quando o importunámos para vir a Lisboa, participar num concerto de tocadores, realizado na Fundação Gulbenkian no dia 20 de Outubro de 1962, confrontado com a premência dos trabalhos do calendário agrícola, declarou-nos: "Eu vou! Eu pelos senhores dava o sangue das minhas veias!". Ainda em Terras mirandesas conhecemos o tocador de pífaro Manuel Inácio João, que vivia com a mulher, em Genísio. Encontrámo-lo pela primeira vez, numa manhã, onde nos recebeu, na cozinha. Antes de responder às nossas solicitações musicais foi buscar um chouriço e uma caneca de vinho, pôs uma sertã na trempe, sobre o fogo da lareira e fritou o chouriço às rodelas. A mulher, de negro, modos reservados contrastando com a exuberância do marido, advertiu-o de que era Quaresma e não se podia comer carne. A esta observação ele respondeu cravando uma das rodelas com o garfo e oferecendo-a ao Ernesto dizendo: "Toma la hostia". Só depois de comermos e bebermos é que foi buscar a flauta e nos surpreendeu com a sua musicalidade e vitalidade. Combinámos novo encontro e uma gravação em Miranda do Douro, dado que, nessa altura, não havia ainda rede eléctrica na aldeia. Foi também nesta viagem que obtivemos o pífaro do Jacob Fernandes, de Duas Igrejas. Numa primeira visita esse objectivo gorou-se pela infeliz interferência do Padre António Mourinho que, na qualidade de director do Rancho dos Pauliteiros daquela aldeia, exerceu uma manifesta coacção sobre aquele elemento do grupo. Tratava-se, na verdade, de uma peça notável que testemunhava certas características da estética regional e por isso oferecemos uma soma excessiva. Mas então, as razões alimentadas por um certo folclorismo e mais uma vez a diferença de status dos interventores jogou em nosso desfavor. 0 desfecho favorável resultou da intervenção aguerrida da esposa do Jacob que não teve contemplações com o Padre. Foi também nesta viagem que conhecemos o Tio Rebanda, de Mazouco, pastor solitário conhecido pela profunda paixão que mantinha com a sua flauta, companheira de todos os instantes livres. Para maior comodidade de a transportar no bolso construiu um exemplar desmontável em três partes. Fomos encontrá-lo, velho e apagado, sentado num degrau de escada, na sua recente condição de homem casado com uma jovem mulher, que certamente cobiçou as courelas que uma vida de grande parcimónia permitiu obter. A mulher, quando percebeu que a flauta nos podia interessar, trouxe-a com a maior solicitude e pô-la nas mãos do marido. Este, quase cego, teve a maior dificuldade em montar os três elementos e, levando-a à boca, não conseguiu retirar dela o menor som. A flauta estava ressequida e pediu um copo de aguardente, que partilhou com ela, derramando uma parte na flauta e bebendo o resto. Os dedos, hesitantemente, reencontraram algum domínio sobre o fio musical e, pela última vez, através desse instrumento, o velho mundo do silêncio pastoril acordou e iluminou esse dramático momento.

De 3 a 14 de Abril, volvemos ao Alentejo e à Beira Baixa, numa saída particularmente frutífera, em que, entre outros instrumentos - sarroncas, flautas, etc. -, encontrámos, adquirimos, estudámos a actuação e gravámos a música da viola campaniça e do tamborileiro alentejano, dois casos praticamente ignorados pela investigação, extremamente raros e em vias de total desaparecimento, que conseguimos documentar completamente. A nossa visita coincidiu com a festa de Nossa Senhora das Pazes, a 9 de Abril, em Vila Verde de Ficalho, onde figura esse elemento. Recordo a visita à casa do tamborileiro António Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restauração, a sua extrema modéstia e esmero, de uma só divisão, com chão de xisto límpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a cozinha na superação rara dos sinais do fogo, a um dos lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo. Neste cenário da maior simplicidade destacava-se uma pequena arca de pinho que o António Maria abriu pondo a descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem precioso, o pífaro que agora integra esta colecção. Foi também nessa altura que tivemos ocasião de ver o pífaro do tamborileiro das festas de Santa Maria de Barrancos e que encetámos as delicadas diligências que conduziram à sua ulterior oferta pelo povo dessa vila. Foi ainda nesta viagem, a 6 desse mês, que tivemos a ventura de conhecer o saudoso amigo Jorge Montes Caranova, de Peroguarda, Beja, um dos últimos exímios tocadores de viola campaniça, que encontrámos pela primeira vez numa fábrica de moagem em Santa Vitória, onde trabalhava.

Acerca de um programa televisivo que teve lugar em 27/6/1961 nos estúdios da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, sobre instrumentos musicais populares, realizado por Jorge Listopad com a participação de Ernesto Veiga de Oliveira, transcrevemos a seguinte carta:

"Santa Vitória, 30 de Junho de 1961

Exmº. Senhor

Ernesto Veiga de Oliveira

Estimo que esteja bem de saúde assim como todos de sua família, que eu ao escrever-lhe fico bem graças a Deus e minha família.

Vou escrever-lhe o que já devia ter feito há muito tempo, para lhe agradecer a sua lembrança o que não me passava pela ideia, primeiro recebi o retracto, com a viola campaniça. Todos de casa ficaram muito contentes, pois mandei logo no outro dia para Lisboa para três filhas que tenho lá o verem. Ficaram muito satisfeitas em ver o retracto assim naquelas condições porque quando eram pequeninas ouviram aquele instrumento eu a tocar e elas ao pé, agora já são homens e mulheres recordam o passado. Senhor Ernesto um dia estava aqui a trabalhar chegou aqui um amigo nosso com o bocadinho de jornal e a fotografia falando da viola campaniça5. Eu disse-lhe o que havia passado e ele conheceu antes tanto que veio trazer.

Depois ao fim de tempo recebo o vosso postal dizendo que ia eu aparecer na televisão às 20 horas e 10 minutos. Contei aos patrões eles ficaram outra vez de volta da farinha e eu fui a Ervídel. Às 20 horas e 30 minutos começaram a falar no Porto. Logo vi o senhor a falar, fiquei muito contente. Eu dizia, aquele senhor é que representa todas estas coisas que estão aparecendo no Porto. Depois apareceram violas campaniças, uma delas dava ares de uma como a minha, estava muita, muita gente para ver, como eu dizia que eu ia aparecer, todos satisfeitos, uns chamaram outros que vinham já perto. Depois acabou, ficaram com pena de não ver. Mas de tudo o que vi, ouvi o senhor a falar desempenadamente sem a língua se enrolar nem se embaraçar em nada dizer, tantas palavras tudo muito bem conversado. Gostei mais de ouvir do que eu aparecer. Pessoas que estavam a trabalhar nos altos fornos, que estavam a ver a televisão ouviram falar no meu nome e viram, mandaram dizer às famílias.

Se fizer alguma exposição em Lisboa faça favor mande dizer para os meus irem ouvir. A descrição que vinha no Jornal é mesmo assim, está tudo muito bem dito.

Esta tarde se tivesse uma viola ia com outros companheiros entreter um bocado que é domingo. Por favor recomende por mim muito ao senhor Benjamim.

Termino a minha carta pedindo-lhe desculpa e agradecendo a vossa lembrança.

Receba muitas saudades e aperto de mão deste muito amigo Jorge Montes Caranova, natural de Peroguarda."

De 2 a 14 de Maio fomos pela terceira vez a Trás-os-Montes e Beira Baixa, e pela segunda ao Alentejo a fim de recolher várias espécies negociadas nas visitas anteriores, adquirir outras então identificadas, estimular ou insistir nas diligências combinadas e fazer fotografias e gravações. A data desta excursão fora fixada de acordo com as festas de Santo António, em Santo Aleixo da Restauração, no primeiro domingo de Maio, e aproveitámos para ir a Barrancos buscar o pífaro que, após delicadas negociações, nos fora oferecido. Como exemplo da cuidada metodologia que utilizámos na organização deste trabalho, transcrevemos a carta que então dirigimos à Comissão da Festa de Santa Maria de Barrancos, expedida do Porto em 18 de Abril de 1961:

"Tendo ponderado devidamente certas razões que não nos ocorreram na ocasião em que nos foi comunicado o parecer de alguns dos membros dessa Exmª. Comissão acerca do nosso pedido de cedência do pífaro que faz parte do tamborileiro que compete a essa festa, vimos novamente perante a mesma Exmª. Comissão, pedindo vénia para comentar alguns dos motivos alegados naquela ocasião, e expor as referidas razões. Como aí tivemos ocasião de dizer, o instrumento em questão constitui uma peça de considerável interesse etnográfico, tanto como um exemplo notável de arte pastoril, como - e foi esse aspecto que justificou as nossas diligências - um espécimen excepcionalmente formoso do instrumental musical popular dessa área. É o Alentejo uma terra de pastores, onde era corrente a flauta pastoril, ornamentada segundo a arte da madeira lavrada, ou "bordada" como aí se diz, característica das regiões de pastoreio em geral. Mas todas as formas tradicionais vão acabando, e hoje, dessa arte tão significativa, já pouco mais resta do que a lembrança; particularmente no campo da nossa investigação, em toda a Província já não conseguimos recolher senão dois exemplares pobríssimos, lisos e sem qualquer ornato, que, com nosso profundo desgosto, irão representar, aos olhos de toda a gente, a justamente famosa arte pastoril alentejana, no campo dos instrumentos de música.

Mas o pífaro de Santa Maria de Barrancos tem, sob o ponto de vista etnográfico, ainda um outro interesse: ele é, com efeito, o testemunho de um elemento cultural da maior importância na nossa musicologia popular - o Tamborileiro alentejano, que nos parece constituir uma das formas mais arcaicas da música, com a sua escala reduzida segundo as possibilidades rudimentares do pífaro, e com a reminiscência muito sensível do seu carácter ritual, adstrito à festa principal da Vila. Quer dizer, o pífaro de Barrancos é não só uma lindíssima peça de arte pastoril alentejana, mas o testemunho mais perfeito e significativo de uma forma primordial da nossa música popular.

Foram estas duas razões, que, assim que nos foi dado observar o referido instrumento, nos levaram a ousar propor a sua aquisição, e que justificam agora a nossa insistência. É fora de dúvida que uma tal peça, pelo seu interesse e significado, tem a sua verdadeira projecção e o seu lugar mais representativo, devidamente enquadrada num Museu de Lisboa, onde pode ser visto por todos aqueles, estudiosos ou amadores, nacionais e estrangeiros, que se interessam por assuntos desta espécie. De resto, como aí tivemos ocasião de acentuar, a cedência do objecto, por parte do povo de Barrancos, para a colecção que fomos encarregados de organizar, não o privaria, de certo modo, desse mesmo objecto: ele apenas se transferiria para onde pode ser mais amplamente apreciado, sem deixar de, aí, atestar expressamente a sua terra de origem e os seus valores regionais. Onde e no estado em que ele se encontra presentemente - na linda mas distante vila de Barrancos, onde sai à luz do dia uma vez por ano - o interessantíssimo pífaro das festas de Santa Maria é completamente desconhecido da grande maioria para não dizer a quase totalidade dos portugueses e ainda mais dos estrangeiros. A nossa diligência visava pois, uma vez mais, neste caso particular, o interesse nacional e até o interesse geral da ciência; e mesmo sob o aspecto regionalístico, a valorização justificada e exaltada de uma modesta obra barranquenha.

É com grande satisfação que consigno aqui o meu reconhecimento pela compreensão que encontrei em todos os membros dessa Exma. Comissão, que em relação ao que neste sentido lhe expus, espontaneamente me deixaram entender que, a não atenderem a outras razões, gostosamente concordariam em ceder a peça em questão para a colecção que temos em vista. Por isso são essas razões que agora passo a analisar. É a música popular um capítulo de primordial importância no conjunto dos estudos da vida e cultura nacionais. No que se refere ao seu instrumental respectivo, a maioria dos países já realizou devidamente a sua recolha e arquivo; mas entre nós, segundo a lei dos tempos, as coisas estão em vias de completo desaparecimento, sem que, até hoje, se tenha feito nada no sentido de conservar os seus tipos fundamentais, em vista da investigação futura. Por isso, e conforme se diz na circular que no início do nosso empreendimento, foi enviada, em nome da Fundação Calouste Gulbenkian a todas as pessoas e entidades a quem houvemos por bem solicitar informes sobre o assunto, por meio de um questionário - e do qual juntamos, para conhecimento de V. Excias um exemplar - a iniciativa daquela Fundação reveste-se "de inegável interesse nacional", tendo, por essa razão, merecido a aprovação e o apoio moral do Ministério da Educação Nacional e do Patriarcado de Lisboa. Por isso também o nosso empreendimento só é possível com a compreensão, boa vontade, sentido patriótico e colaboração efectiva de todos aqueles que, nas diferentes terras, possuam ou saibam da existência de espécies que interessam. Sem isso, como é óbvio, o nosso esforço é totalmente inútil e impossível. E é-nos grato reconhecer que, salvo muito raras excepções, encontramos por toda a parte esse espírito de compreensão e colaboração que nos permitem, no limiar das possibilidades, reunir ainda uma colecção que, sem falsa modéstia, reputamos excelente, em quantidade, qualidade e significado etno-musical. Verdadeiramente, entre as poucas peças representativas que nos faltam, conta-se precisamente uma bonita flauta ou pífaro pastoris alentejanos "bordados" como é de jus...

Fomos encontrá-lo em Barrancos; mas, segundo o que aí nos disseram, a dificuldade em o obter reside no facto de os seus detentores responsáveis não puderem dispor dele, porque ele lhes não pertence, mas sim a uma entidade vaga, o "Povo" de Barrancos, que as pessoas com quem falei foram incapazes de definir. Eu reconheci imediatamente estas razões, mas de momento não me ocorreram outras em seu seguimento: é evidente que, não pertencendo o pífaro à Exmª. Comissão, que é apenas depositária, ela não pode dispor dele, e nunca eu solicitaria a ninguém uma irregularidade dessas. Mas é totalmente fora de dúvida que o pífaro tem de pertencer a alguém, pessoa individual ou colectiva, entidade definida ou indefinida, particular ou pública. A recusa foi fácil, embora justa; mas nós agora pedimos alguma coisa mais: que a Exma. Comissão procure, ainda que talvez trabalhosamente - a Fundação Calouste Gulbenkian tem feito muita coisa boa pelos povos, merecendo por isso que os povos também façam alguma coisa por ela, quando em nome dela alguma coisa lhes é solicitada - definir quem é essa entidade que pode dispor do pífaro, e que lhes apresente a nossa pretensão, por forma que ele possa legitima e legalmente ser cedido para a colecção que em tudo honra o país.

Para o fim prático a que ele se destina, o instrumento é francamente insatisfatório; o próprio tamborileiro no-lo disse, e pudemos comprová-lo quando aí gravámos os toques da "Alvorada" e da "Procissão". 0 pífaro está rachado e excessivamente gasto, com fugas por onde o sopro se escapa não sustentando o tom, e desafinando, e o tocador cansa-se rapidamente e não aguenta a linha contínua da frase musical; segundo o mesmo Senhor, dentro de muito pouco tempo ele não poderá ser utilizado, e será posto de parte. Por isso mesmo, e, de acordo com o que aí prometêramos, na previsão de uma decisão que gostaríamos de esperar nos fosse favorável, enviamos agora mesmo um pífaro que nos foi cedido pelo grupo dos Pautiteiro de Cércio (Miranda do Douro), que escolhemos pela sua excelente qualidade sonora, experimentada na nossa frente pelo seu autor, e que pedimos para desde já ser entregue ao tamborileiro de Barrancos, Senhor António Torrado Rodrigues para que este Senhor veja se se entende com a sua afinação, de modo a que, caso o assunto se venha a resolver a nosso contento, as coisas estejam devidamente previstas e solucionadas para a próxima festa. É evidente que isto não pretende compensar a eventual cedência, por parte de V. Ex"., do interessantíssimo instrumento barranquenho, mas apenas obviar às dificuldades práticas que ela poderia acarretar à organização das festas deste ano. Repetindo o que aí dissemos, a nossa intenção era entregar a V. Exª., além disso, a importância que entendessem que o objecto poderia valer".

0 sucesso desta pretensão determinou uma nova ida ao Alentejo, de 14 a 16 de Agosto, para assistirmos, em Barrancos, ao peditório das festas de Santa Maria, para as quais nos tinham convidado, e onde o tamborileiro tem uma das suas intervenções mais importantes, que foi amplamente documentada.

Fizemos também duas saídas do mesmo género mas de menor âmbito, ambas à região de Coimbra, de 7 a 9 de Junho e de 3 a 4 de Julho primordialmente para busca e estudo do instrumental dos gaiteiros daquela zona, que adquirimos - uma gaita-de-foles de fabrico local, bombo e caixa. Os gaiteiros de Barreira, Condeixa, após haverem terminado a sua prestação musical no complexo festivo da Queima das Fitas, em Coimbra, regressaram pela madrugada à sua terra. Trouxeram consigo uns foguetes e um garrafão de vinho e, à vista da aldeia, num pequeno olival, fizeram a sua própria festa: atiraram os foguetes, beberam e tocaram até ao paroxismo da embriaguez do vinho e da música, em que corpos e instrumentos se confundiam, nas posturas mais incríveis, rebolando-se no solo numa espécie de dança fantasmática.

E tivemos ainda um grande número de pequenas saídas para resolução de casos concretos, esclarecimento de dúvidas, assistência a determinadas manifestações em que aparecem formas características. Em 2 de Fevereiro, a Amarante, buscar um belo violão de tipo francês, com embutidos, que nos fora prometido; em 8 do mesmo mês à região de Braga, em visita aos violeiros e construtores da cidade e da área; a 19 do mesmo mês, ao Santuário da Peneda, para estudo da sanfona que descobrimos na capela da Adoração dos Pastores, quando ali estivemos na festa do ano de 1960; em 21 de Março, aos arredores de Braga buscar variado instrumental de rusgas e desafios; em 18 de Maio e 11 de Junho a Guimarães para busca e em seguida compra de outros instrumentos de rusgas, designadamente os reque-reques e zuca-trucas característicos dessa região minhota; em 16 de Junho, a Darque para aquisição de um par de gigantones e de cabeçudos; em 1 de Julho à área de Barcelos em busca de reque-reques da região; de 18 a 20 de Agosto, a Viana do Castelo às festas da Agonia, para estudo, fotografia e gravação da música dos Zé-pereiras minhotos, que tem aí a sua maior concentração; e finalmente, em 22 de Outubro, de novo à mesma região, para compra de um bombo interessante que aí descobrimos, e de uma ocarina antiga de barro, de Barcelos, de um modelo que desapareceu, e que pertencia a um famoso tocador, José Gonçalves Dias que, antes de se despedir dela, gravou para nós algumas modas. Além disso, fomos por duas vezes à Galiza, em busca da sanfona, que, tão corrente entre nós ainda no século XVIII como instrumento de cegos e mendicantes, e tão insistentemente documentada nas figuras de presépio dos nossos barristas, desapareceu completamente do País, e que soubéramos ser ainda cultivada naquela província espanhola: a primeira, de 22 a 26 de Fevereiro, a Santiago de Compostela e daí, como consequência das nossas diligências, a Lugo, onde nos indicaram a escola-oficina artesanal adstrita à Diputacion Provincial; a segunda, de 28 de Novembro a 2 de Dezembro, a esta última cidade, por Pontevedra e regresso novamente por Santiago de Compostela (cujos Museus respectivos possuem o instrumento em questão e documentação interessante) para seu estudo, e para transporte, a final, do exemplar que encomendáramos. No decurso destas excursões investigámos da existência e adquirimos grande número de outros pequenos instrumentos. Além disso, no Porto e, de modo semelhante, em Lisboa, Coimbra, Braga e outras cidades e vilas, todas as vezes que aí passámos, visitámos os violeiros locais, antiquários e até casas de penhores, em busca de espécies que interessassem. Resumindo, nesse segundo ano de trabalhos foram adquiridos 276 instrumentos importando em 30.147$00 e percorridos 13.360 quilómetros em 70 dias úteis de trabalho.

Os trabalhos de campo, em 1962, desenvolveram-se a um ritmo mais lento, cedendo o passo a outros afazeres profissionais. Em Abril, tivemos praticamente uma saída, em 7 e 8, à Serra da Peneda, para esclarecimento da questão da sanfona existente naquele santuário, que verificámos não ser um instrumento real, mas que constitui um excelente elemento iconográfico, que fotografámos. Em Maio, de 6 a 10, corremos a região de Torres Vedras, para um primeiro contacto com os gaiteiros estremenhos. Não adquirimos aí nenhum instrumento, porque constatámos que todos eles eram já de proveniência galega. No dia 11 de Junho, fomos a Amarante, a fim de vermos a concentração de Zé-pereiras da região nas festas de S. Gonçalo. E em Julho, encontrando-nos em Lisboa, consagrámos os dias 11 a 13 para realizarmos as primeiras diligências no sentido de identificarmos o proprietário e paradeiro da guitarra da Severa. A partir de fins de Julho, perante a decisão de se realizar uma exposição dos instrumentos musicais populares, quando da reunião em Lisboa do ICOM, prevista de 12 a 18 de Novembro, tornou-se necessário apressar o mais possível o ritmo dos nossos trabalhos, marcados então por duas finalidades: por um lado, a obtenção das espécies principais que nos faltavam; concomitantemente, a audição, escolha e finalmente convite dos tocadores populares, dos diferentes instrumentos e regiões, que deviam apresentar-se naquela ocasião, conforme fora decidido. Assim, percorremos, de 31 de Julho a l0 de Agosto, toda a região do Alto de Trás-os-Montes, as zonas de Vinhais, Bragança e Miranda do Douro, onde adquirimos a gaita-de-foles e o tamboril, ao extraordinário gaiteiro Juan de Rio de Onor, que acedeu a acompanhar-nos a Bragança para podermos fazer algumas gravações do seu excelente repertório; e um pandeiro da tocadora Maria do Carmo Garcia, de Moimenta (Vinhais). Nesta aldeia, tivemos ensejo de contar com a disponibilidade de um dos melhores gaiteiros que conhecemos desta região: o Carlos Gonçalves, que juntamente com a Maria do Carmo, secundados por outros elementos, nos permitiram recolher, ao longo de várias horas, um repertório musical da maior importância. Dada a excelência desse conjunto musical decidimos convidá-los para participar nesse concerto em Lisboa - gaita-de-foles, bombo, caixa, pandeiro e ferranholas. Solicitámos, do mesmo modo, a presença nesse acontecimento, do amigo Virgílio Cristal. Visitámos, mais uma vez, o Francisco Domingues, de Paradela, que apesar de ser um repositório do velho património musical mirandês, gostava de fado e havia construído uma guitarra usando como caixa de ressonância uma lata de café. Dado o interesse para a colecção desse espécime, combinámos a sua troca por uma guitarra normal à sua escolha. Transcrevemos uma das cartas da correspondência trocada que dá conta do resultado final dessa proposta:

"Paradela, 24 de Outubro de 1962

Exmo. Senhor

Ernesto Veiga de Oliveira

Os nossos afectuosos comprimentos e votos da melhor saúde é quanto lhes deseja o seu Amigo Francisco Domingues.

Senhor Ernesto cá recebi a vossa carta a qual só hoje respondo para dizer lhe que aí lhe envio a guitarra juntamente com uma flauta e um par de castanholas que são as únicas que havia já nesta povoação e como são instrumentos já muito raros nesta povoação nem mos queriam vender porque os têm como uma recordação. Julgam êles que enquanto têm estes instrumentos em casa que os donos ainda só têm os mesmos 20 anos que tinham quando faziam uso deles e por isso não mos queriam vender. Com respeito aos dois pares de castanholas custaram 32$50 e a flauta 15$00. Com respeito ao preço da guitarra esta que eu tenho custou no Porto 400$00.

Eu creio que aos senhores parecerá demais visto a guitarra que eu derramei estar ainda a meio uso como nós dizemos e hoje tive também de gastar o dia inteiro para vir propositadamente a metê-la no correio a Miranda e como os senhores sabem fica longe e não há meios de transporte e tem a gente que vir a pé ou numa besta e gasta-se um dia inteiro para ir a Miranda e voltar. Não sei se as castanholas lhe parecerão caras mas não mas quizeram dar menos, caso não lhes interessem o dono diz que voltava a aceitá-las. E nada mais por momento desejando sempre as melhores felicidades aos senhores subscreve-se com a maior consideração pelos senhores o seu sempre amigo Francisco dos Reis Domingues."

Quando abrimos o pequeno caixote em que vinha a guitarra, no interior da tampa, escrita a lápis, vinha a seguinte quadra de despedida:

Guitarra vais pelo mundo
Correr Portugal inteiro
Mas em Paradela fica
0 teu velho companheiro

Francisco Domingues aproveitara ainda umas pequena placas de madeira, usadas então como etiquetas das mercadorias que circulavam nos Caminhos de Ferro, que aplicou no tampo dessa guitarra, para nelas escrever várias quadras. Uma delas, extremamente expressiva, faz mesmo a sua história:

Guitarras em Paradela
Nascente tu a primeira
Por isso levas o nome
Linda Estrela da Beira

"Estrela da Beira" era a marca do café contido nessa embalagem.

No dia 23 desse mesmo mês, fomos a Braga e arredores, a fim de ouvirmos tocadores de viola braguesa e cavaquinho, que não nos pareceram satisfatórios. De 24 de Agosto a 1 de Setembro, demos uma volta pelo Alentejo e Beira Baixa, durante a qual adquirimos pandeiros e castanholas de excelente qualidade, nomeadamente os espécimes de Santa Eulália (Elvas). Passámos em Santa Vitória e convidámos o Jorge Caranova, que acedeu com a maior satisfação a participar no concerto em Lisboa. Da Beira, como tocadora de adufe, convidámos a Maria Gertrudes Nabais, da Póvoa de Atalaia (Fundão). De 6 a 9 e 13 a 17 desse mesmo mês, deslocámo-nos à região estremenha, de Torres Vedras e Nazaré, para assistirmos a diversos círios, tendo aproveitado para estudarmos e adquirirmos, em Almeirim, alguns idiofones originais que ali se usavam. Em 23, 27 e 30 de Setembro, e 7 e 21 de Outubro, fomos a Celorico de Basto, e a partir daí a várias povoações dos concelhos limítrofes para documentarmos a Chula e escolhermos o conjunto da "Chulada" a apresentar em Lisboa, tendo finalmente, após audição dos grupos de Tabuado, Carvalho de Rei, S. Bartolomeu, Arnoia e S. Simão, escolhido o de Tabuado (Marco de Canavezes) que tinha como figuras solistas o Fernando Cunha Major, na rabeca e a Maria da Glória Vieira como cantadeira, além dos acompanhantes, um violão surdinado, uma viola, bombo e ferrinhos.

Já em Novembro, em 4 e 14, fomos a Braga convidar os tocadores de viola braguesa e cavaquinho, Manuel e Bernardino da Silva; e contactar mais uma vez os construtores, pai e filho, Domingos Manuel Machado, de Aveleda e Domingos Martins Machado, da Tebosa, que nos prestaram uma colaboração preciosa, ajudando-nos além do mais a encontrar alguns espécimes de viola braguesa de boca oval e redonda, então muito raras, Nesse primeiro concerto, que teve lugar a 24 de Novembro de 1962, estiveram presentes esse conjunto de Moimenta (Vinhais), o tamborileiro de Constantim (Miranda do Douro), a "Chulada" de Tabuado (Marco de Canavezes), os tocadores de viola braguesa e cavaquinho de Braga, a tocadora de adufe, da Póvoa de Atalaia (Fundão) e o tocador de viola campaniça, de Santa Vitória, Beja. Lamentavelmente dessa excepcional actuação a Fundação Gulbenkian não preservou o registo gravado que na altura foi feito.

Neste ano a colecção foi enriquecida com mais 65 instrumentos, que importaram em 16.094$00, tendo nós dispendido 61 dias de trabalho de campo e percorrido 10.047 quilómetros.

Os nossos trabalhos relativos a este tema, durante o ano de 1963 e anteriormente à prospecção que efectuámos nas Ilhas da Madeira e Porto Santo e dos Açores, de 10 de Outubro a 5 de Dezembro, tiveram como objectivo quase exclusivo o estudo dos instrumentos fundamentais da Beira Baixa, nas suas funções principais, nomeadamente: 1) o adufe e o seu papel nas grandes romarias regionais, das Senhoras do Almurtão e da Póvoa, em 29 de Abril e 3 de Junho respectivamente, e nas festas de Monsanto, em 3 de Maio; e 2) o instrumental das danças da Lousa (Castelo Branco), integradas nas festas que deviam realizar-se a 19 de Maio, mas que foram adiadas para Junho: a viola beiroa, as genebres e os trinchos.

Nas excursões às festas da Senhora do Almurtão, de Monsanto e da Póvoa, aonde acorriam gentes de toda a província e das quais trouxemos uma profusa documentação fotográfica, e vários adufes adquiridos aos construtores da região nas próprias tendas do arraial, pudemos observar a natureza cerimonial do adufe, usado sempre pelas mulheres, em ocasiões de grande solenidade, como um verdadeiro instrumento da liturgia popular. É ao som do adufe que os ranchos de cada povoação cantam as alvíssaras à Senhora à volta e seguidamente à porta do templo, sob o alpendre, à chegada e, no dia seguinte, acompanhando o guião, atrás do sacerdote, na Senhora do Almurtão e da Póvoa, sendo de lamentar que uma incompreensível proibição tenha acabado, nesta última festa, com uma das mais impressionantes manifestações musicais do País.

As festas e danças da Lousa constituem um espectáculo notável, sob todos os pontos de vista. 0 seu instrumental taxativo, parte do qual se pode sem dúvida considerar de natureza ritual, compõe-se da genebres, que é caso único em Portugal e que é usada pela figura sobressaliente da dança, dos trinchos, pequenos pandeiros redondos sem peles e apenas com soalhas no aro, que funcionam como sacuditivos, e das violas em número de cinco, de um tipo especial, usadas pelos restantes cinco tocadores.

Além dos adufes que comprámos nas festas do Almurtão e da Póvoa, adquirimos ainda, em Monsanto, duas "palhetas", essas dulçainas beiroas que já só ali se encontram; elas são da autoria de um pastor, José dos Reis, que pudemos ainda fotografar a tocar o seu instrumento, nas festas da Póvoa.

Resumindo, pois: adquirimos durante o ano de 1963, antes da prospecção nas Ilhas, 20 instrumentos, de natureza e valor muito diferentes, que, com outros objectos afins, importaram em 4.555$00. Para estas aquisições, e estudos sobre o assunto, percorremos, naquele período, 2.787 quilómetros e gastámos 13 dias úteis de trabalho de campo.

A nossa actividade nas ilhas da Madeira e dos Açores alargou-se à abordagem de diversos temas, para além do estudo e recolha dos instrumentos musicais, com particular relevância da temática dos moinhos de vento, actividades agrícolas e sistemas de secagem e armazenagem do milho6; e ainda a uma recolha de material etnográfico para o Museu de Etnologia, que desse conta dos traços mais expressivos da cultura rural dessas diferentes ilhas.

Esses trabalhos de investigação e recolha tiveram início nas ilhas da Madeira e Porto Santo e decorreram de 11 a 28 de Outubro de 1963.

A pesquisa baseou-se fundamentalmente no diálogo com os diversos violeiros que identificámos na cidade do Funchal - Agostinho de Freitas Menezes, que embora filho de violeiro de certa fama pouco sabia de formas antigas; o mestre Cambé, um filósofo, que nos falou do uso da viola pelos vilões, que ficavam horas intermináveis a tocar, e para quem aqueles acordes pobres do charamba era a melhor música; o José M. da Silveira, ou José Guitarrista, que foi aprendiz em casa do Manuel Pereira e trabalhou com o António Victor Vieira em Lisboa; o César Gomes Vieira, de setenta e tal anos, que nos confirmou a existência de braguinhas com o braço raso e trastos só até à caixa, e violas do mesmo modo mas, por vezes, com alguns meios trastos sobre o tampo para as cordas agudas e sempre com 9 cordas. Lembrava-se, contudo, que havia também violas do tipo de braço alto e 17 ou 18 trastos. Este construtor foi premiado com medalha de ouro na Exposição de Sevilha de 1928/30, onde apresentou um rajão ou machete e uma guitarra.

0 Padre Eduardo Pereira, com quem mantivemos uma longa e encantada conversa, pouco nos pôde dizer de instrumentos musicais.

Ainda no Funchal, encontrámo-nos com Bartolomeu Pedro de Abreu, sobrinho por afinidade e genro de João Nunes Diabinho, filho de Octaviano João Nunes, ambos muito hábeis na arte de construção de instrumentos de corda.

0 Octaviano fez um braguinha, que ofereceu à Imperatriz D. Isabel da Áustria. Bartolomeu Abreu possuía um braguinha da autoria do Octaviano, datado de 1901, e outro da autoria do filho, seu tio e sogro. Eram duas peças de excepcional categoria que, a despeito das nossas maiores diligências, recusou ceder, tendo mesmo hesitado em deixar fotografá-los. Vendeu-nos um violão da autoria do Octaviano João Nunes. Em Agosto de 1964 este senhor visitou-nos em Lisboa e apresentou uma proposta de venda daqueles dois instrumentos pela importância de 50.000$00 que foi então considerada excessiva pela Fundação Gulbenkian; e esses braguinhas perderam-se para a colecção. Por um acaso feliz viemos a encontrar, uns anos mais tarde, num estabelecimento do Porto, um braguinha da autoria do Octaviano João Nunes, que adquirimos por um preço idêntico ao dos comuns cavaquinhos dos fabricantes minhotos.

Nas deambulações pela Ilha procurámos, além dos construtores, os tocadores, sobretudo de instrumentos de corda. Mas a raridade destes e a grande dificuldade de acesso aos lugares onde alguns viviam concorreram para um resultado pouco interessante. No lugar de Marouce, Machico, por exemplo, após demorado e arriscado percurso por carreiros não raro cavados em degraus íngremes, atingimos o alto onde morava o violeiro Manuel Moniz, que aprendera o oficio com seu pai. Fabricava especialmente rabecas, violas de arame, rajões e braguinhas. Nunca construiu instrumentos com a escala rasa com o tampo; mas lembrava-se de quando novo ter visto "instrumentos sem escala". No seu entender, para o "Brinco" deve haver sempre tocadores de rabeca, viola, rajão e braguinha. Estes mesmos instrumentos integravam a Folia do Espírito Santo.

0 musicólogo Padre Roque Dantas falou-nos das castanholas que se tocam e usam na Ribeira Brava, na "Missa do Parto", no Natal, à volta da povoação, desde a madrugada, e dos tocadores de viola, rabeca, braguinha e rajão, impossíveis de abordar. Por seu turno, o vigário de Tabua, que é a terra donde vêm as gentes com castanholas para aquela festa, falou-nos largamente dessa costumeira e referiu-se à feitura de castanholas de vários tamanhos, por vezes com 30 cm de comprimento e com sonoridades mais graves ou agudas. Havia verdadeiros despiques de castanholas que, por vezes, depois da missa, degeneravam em rixas,

Assistimos a alguns ensaios do Rancho da Camacha e falámos longamente com os tocadores, gente simpática e sabedora. 0 seu director, Alfredo Ferreira da Nóbrega, ofereceu-nos uma viola, um rajão e um braguinha, que foram construídos segundo indicações do estudioso Carlos M. Santos.

Vimos também algumas exibições do Rancho do Caniço. 0 tocador do "brinquinho", versão madeirense do "Zuca-truca" das rusgas do Baixo Minho, especialmente de Guimarães, era também o seu construtor e foi ele quem fez o que trouxemos dessa Ilha. Segundo ele, para se tocar bem, o braço esquerdo deve apoiar contra o quadril, para não cansar; o direito é que abana, com movimentos secos e rápidos.

Em Porto Santo participámos num bailinho na Serra de Fora, com gente já madura, algumas já velhotas, muito alegres, confiantes, simpáticas, com uma vontade inextinguível de cantar e dançar.

Na "meia-volta" (a mais notável de todas as danças, com aspectos que lembram coisas norte africanas) andam em roda aos pares, o rajão e a viola na roda, a rabeca no meio, sozinha. Era um baile mandado. 0 rajão usava só as 4 cordas (faltava-lhe o ré) e é mais conhecido por machete. A viola usa 9 cordas. A rabeca é o único cantante, e tem grande importância. 0 rajão afina pela rabeca (lá).

Adquirimos, por compra, 13 instrumentos num total de 2.605$00; e mais 4, por oferta.

A viagem do Funchal para Ponta Delgada foi feita de barco. Permanecemos nos Açores de 29 de Outubro a 5 de Dezembro. A ilha onde realizámos as nossas primeiras prospecções foi por isso S. Miguel, onde ficámos até ao dia 11 de Novembro.

0 contacto inicial com construtores de instrumentos teve lugar em Vila Franca do Campo, onde falámos com o violeiro Miguel Jacinto de Melo, que nos informou dos processos de fabrico e tipos de instrumentos mais correntes. Por seu intermédio obtivemos duas violas usadas, uma que havia sido construída por ele e a outra pelo seu pai. Em Água de Alto conhecemos o célebre "folião" Alfredo Sousa, que nos cedeu um pandeiro (trinchos) e um tambor, tendo então gravado vários cantares das Folias do Espírito Santo. Nas Furnas assistimos a ensaios dos grupos locais, folclórico e de tocadores e cantadores, e gravámos algumas das suas músicas.

No Faial da Terra gravámos cantigas dos foliões e da "Alembração das Almas", próprias da Quaresma. Na Ribeira Grande conhecemos o violeiro Alfredo de Medeiros Ventura, a quem comprámos duas velhas guitarras de cravelhas. No Pilar da Bretanha obtivemos de Manuel Virgíneo da Ponte um pandeiro da folia, metálico e gravámos alguns dos seus cantares. Na Covoada encontrámos uma rabeca feita por um construtor rural, que nos foi cedida.

Antes de partirmos de S. Miguel encontrámo-nos com os investigadores locais, nomeadamente Dr. Cortes- Rodrigues, Dr. Carreiro da Costa, Eng. Álvares Cabral e D. Maria Luísa Costa Gomes, e jornalistas, aos quais expusemos os objectivos e resultados da nossa missão.

De S. Miguel para a Terceira fomos num pequeno avião, tendo permanecido nesta ilha de 11 a 14 de Novembro.

Entrámos em contacto com o violeiro Paulo, genro do afamado construtor Serafim do Canto já falecido. Mas aquele senhor já há muito que deixara a arte. Lembrou-se, contudo, que vendera há tempos uma bela viola feita pelo sogro para a Casa de Saúde de S. Rafael (Hospital de doenças mentais) e acompanhou-nos a esse estabelecimento. Falámos com o seu director que, com grande compreensão, nos cedeu aquela viola por troca de outra. Explicou-nos que esse instrumento foi adquirido com as economias que os doentes fizeram para esse efeito privando-se do tabaco.

Perto da Praia da Vitória contactámos o violeiro Ernesto Costa, a quem comprámos várias violas da sua autoria e de seu pai, que também fora violeiro, e um cavaquinho, feito segundo instruções de um madeirense, destinado a um soldado americano do Aeródromo das Lages.

A viagem da Terceira para a Graciosa (onde permanecemos de 15 a 17) foi feita no barco "Ponta Delgada".

Logo que chegámos fomos falar com José Gil d'Ávila, único fabricante de violas da ilha. Um outro, Cirino da Cunha Santos, estava em Ponta Delgada aguardando passagem para a América.

Num dos diversos moinhos que observámos, em Guadalupe, o moleiro ofereceu-nos o búzio que usava para chamar os fregueses.

Na Luz visitámos o Império e fomos a casa dos mordomos que guardavam naquele ano as insígnias. A coroa velha, com o bastão e a salva, estava numa casa aonde chegara naquela manhã, vindo de mais de dois anos de África, o filho soldado. 0 pai, mordomo por promessa para que o "Senhor Espírito Santo" lhe trouxesse o filho a salvamento; o filho veio e, por isso, em cima da mesa lá estava a coroa entre jarras de flores, velas acesas, imagens e o retracto do filho fardado. Servia-se massa sovada ou bolo da noite, espécie de regueifa, própria desta solenidade, bolos, vinho e "angélica". Parentes e visitas e os pais tontos de comoção e alegria. Fizeram-nos entrar, comer e beber, participar da festa. A gente boa quando vive momentos de alegria não se fecha e os estranhos não são importunos.

Na Praia, encontrámo-nos com o José Gil d'Ávila, tocador afamado de viola, o Orlando Pereira Machado, com o violão, e o Alfredo Bettencourt, cantador. Tocaram e cantaram diversas modas da ilha, sem valor nem interesse especial. 0 José d'Ávila era um tocador exímio, que fazia ponteados como se tratasse duma guitarra, usando sobretudo o polegar nas duas primeiras cordas agudas.

Da Graciosa para S. Jorge tomámos o barco Carvalho Araújo.

Nesta ilha, onde ficámos de 18 a 21, avistámo-nos com o violeiro Augusto Silveira Madruga, natural do Pico, reputado o melhor - e quase único - violeiro de S. Jorge. Numa das noites fomos aos Rosais ver o instrumental dos balhos da ilha e gravámos várias modas tocadas e cantadas. Usaram a viola (do tipo micaelense), o violão, o banjolim, cantadores e cantadeiras.

A viagem entre S. Jorge e o Pico, onde permanecemos de 21 a 24, fizemo-la numa lancha baleeira, que mandámos vir desta ilha para nos levar, dado que as carreiras normais estavam interrompidas devido ao estado do mar. Pela primeira vez, a viagem foi uma coisa verdadeiramente maravilhosa. Duas horas de absoluta comunhão com o mar. Em frente de nós, o Pico erguia-se majestoso, envolto num manto ténue de nuvens brancas que, de quando em quando, o abafavam.

Procurámos o Padre Joaquim Rosa, Pároco de S. Mateus, que na resposta que enviara ao "Inquérito" mencionara, naquela localidade, o cavaquinho e o machete. Esclareceu-nos que o cavaquinho era um instrumento com a forma do seu homónimo minhoto, que ele conhecera em pequeno, na sua freguesia da Prainha do Norte, e que o machete era uma viola pequena que ele próprio tocara.

No Cais do Pico obtivemos dum moleiro um búzio que fora usado pelos baleeiros.

Na Candelária assistimos à exibição do grupo local que interpretou várias chamarritas, pezinhos, etc., ao som da viola, violão, violão baixo, banjolim, rabeca e cantadoras. Foi nesta ocasião que conhecemos o Francisco de Matos Bettencourt, com quem viemos a manter uma correspondência especial, publicada por João Leal na Revista Etnográfica (Vol.1, Nº1), e da qual adiante transcreveremos uma parte respeitante a uma rabeca que ele construiu e ofereceu para a colecção.

Durante a curta permanência nesta Ilha tivemos ensejo de assistir a uma Coroação de Imperador do Espírito Santo, por promessa. A abrir o cortejo vinham os foliões, em número de dois, tocando tambor e cantando versos, que gravámos, caminhando ao seu lado, discretamente.

No final desta cerimónia fotografámos o Senhor Alfredo, reputado tocador de viola, que gravámos ainda.

Apesar das péssimas condições meteorológicas e do estado do mar a velha lancha "Velas" apareceu entre as ondas que por vezes a encobriam e, aproveitando uma breve acalmia, avançou e atracou em plena agitação das vagas e da ressaca. 0 desembarque e embarque de passageiros e carga foi rápido e a lancha, miraculosamente, deu a volta sobre si mesma no minúsculo porto e, noutra breve acalmia, pôs-se em marcha. A travessia, a despeito das ondas alterosas, fez-se muito bem e meia hora depois entrávamos nas águas sossegadas da baía da Horta.

Permanecemos no Faial de 25 a 27.

Procurámos o violeiro Pedro Miguel, de quem tivéramos noticia no Pico. Este falou-nos do violeiro Manuel Teixeira de Sousa, com quem nos avistámos. Referiu-nos a decadência da viola no Faial e descreveu-nos a técnica de construção e nomenclatura. A viola aqui é do tipo micaelense, mas fazem de facto algumas com três corações. Ele constrói - como também víramos no Pico - violões com três cordas de harpa, que parecem ter certa voga aqui. Não tinha nenhum disponível - de resto só constrói para satisfazer encomendas - mas indicou-nos um freguês a quem vendera há pouco um desses instrumentos; e acompanhou-nos à casa deste que acabou por nos ceder esse violão.

Por volta das 11 horas, sob uma chuva impenitente, embarcámos no "Funchal" com destino de novo à Terceira, onde chegámos por volta das 5 horas da tarde.

Aquando da primeira estada nesta ilha havíamos feito diligências em vista à obtenção do tambor da folia das Lages. Mas o facto deste ser propriedade da comunidade levantou dificuldades que então não puderam ser superadas. Falámos de novo com a Comissão dos Mordomos, que foram muito compreensivos e simpáticos; mas, apesar da vontade de satisfazer o nosso desejo, não sendo os donos do instrumento e cientes da sua natureza ritual, receavam incorrer na censura do povo e não se sentiam com poderes nem direito de decidir. Mas, perante as nossas razões e esclarecimen-tos acabaram por ceder o tambor, que foi condicionalmente oferecido em troca de um donativo de 700$00 para o Império, e sob o compromisso, pela nossa parte, de o devolvermos de Lisboa caso o assunto suscitasse desinteligências.

Num fim de tarde que se prolongou até cerca das 11 horas, reunimo-nos em casa do senhor Henrique Borba, com o José Martins Pereira - o Zé da Lata -, o Laureano Correia dos Reis e mais um rapaz e uma rapariga, irmãos, cantadores da Rádio Angra. 0 Zé da Lata estava constipado, mas sempre cantou algumas coisas, e assim ouvimos um pouco desse folclore terceirense, dolente, romântico, de um italianismo afadistado de interesse reduzido. Em todo o caso as pessoas foram gentilíssimas e o Zé da Lata é uma personalidade rica, pitoresca, transfigurado quando canta, que é o seu meio natural.

Tomámos o avião para S. Miguel e daí para Santa Maria onde permanecemos de 31 de Novembro a 5 de Dezembro.

0 faroleiro do farol da Maia era também um construtor de violas, do tipo micaelense. Por seu intermédio obtivemos um instrumento do seu fabrico, vendido há anos a uma pessoa que o cedeu pelo preço de uma viola nova.

Na freguesia de Santo Espírito gravámos os cantares diversos dos três foliões do Espírito Santo - António de Sousa Chaves, de 84 anos, com tambor, José de Moira, com os textos e José de Sousa - um poeta. Cantaram os cânticos das diversas cerimónias, e depois vários "falsetes" ou sejam duetos, próprios das "iluminações" em casa dos imperadores.

Comprámos o tambor, com perto de 100 anos, que pertencera ao pai do Senhor Amâncio, folião daquela localidade.

Resumindo, as passagens de ida e regresso a Lisboa e inter-ilhas custaram 16.322$00.

As deslocações nas ilhas da Madeira e Porto Santo e S. Miguel, Terceira, Graciosa, S. Jorge, Pico, Faial e Santa Maria, em táxi ou automóvel sem condutor importaram em 9.303$00.

0 valor das despesas de alimentação e dormidas foi de 12.713$00.

Nos Açores comprámos 38 instrumentos musicais num montante de 11.057$00.

Em 1964, por ocasião do I Congresso Nacional de Turismo, a Fundação Gulbenkian levou a efeito, com a nossa colaboração, mais uma exposição sobre os Instrumentos Musicais, que contou também com um concerto de tocadores e cantadores populares. A Região da Beira Baixa esteve representada pela tocadora de adufe, Catarina Chitas, que nessa altura nos falou do Manuel Moreira como sendo o último tocador de viola daqueles sítios. Ele vivia no flanco da serra do Ramiro oposto ao de Penha Garcia, o que nos obrigou a contornar essa serra. 0 percurso alongou-se, fez-se noite, a estrada deu lugar a uma vereda que o velho Citroên 2 cv a custo vencia, com coelhos bravos a saltar à nossa frente, e a toda a volta o silêncio e o negrume total. No momento da desistência lobrigámos uma luzinha - saí do carro e gritei por ajuda para encontrar o Tio Manuel Moreira. Como por encanto, lá do alto uma voz respondeu: "É aqui"! Subimos a encosta e fomos ao seu encontro. Foi como se já nos conhecêssemos de há longos anos. Apesar de nunca ter saído desse pequeno mundo rural, de não conhecer sequer Castelo Branco, prontificou-se de imediato a ir a Lisboa, dado ir na companhia da Catarina Chitas. Evoco a sua entrada no palco, de calças de bombazina e faixa preta, um sorriso confiante e sereno, a sua belíssima execução musical. Depois de terminar despediu-se do público com um gesto profundamente natural e afectivo, secundado pela saudação "Deus vos abençoe".

Neste ano, os trabalhos por nós efectuados neste domínio foram muito reduzidos, visto que a colecção se achava praticamente concluída nas suas linhas mais gerais. Continuámos atentos e na busca de certas espécies raras ou extintas, de modo a completar séries e preencher lacunas. Conseguimos obter alguns exemplares da raríssima viola beiroa, e uma sanfona de grande valor a despeito do estado de ruína em que se encontrava.

Resumindo, adquirimos durante o ano de 1964, 15 instrumentos de vários tipos e valores que importaram em 5.690$00; e percorridos 1.304 quilómetros em 4 dias úteis de trabalho.

Em 1965 não realizámos prospecções especiais de recolha de instrumentos; mas aproveitámos todas as saídas e trabalhos de campo que levámos a efeito por conta do Centro de Estudos de Etnologia para completarmos, nas zonas percorridas, aquele objectivo.

De passagem por terras de Coimbra, em Abril, tivemos a inesperada sorte de encontrar, finalmente, a viola toeira, o único dos grandes instrumentos que faltava na colecção. 0 seu possuidor, Raul Simões, antigo construtor e exímio tocador, não se queria desfazer do instrumento, mas acabou por ceder às nossas instâncias.

Nas buscas que regularmente fazíamos a violeiros das várias cidades adquirimos uma guitarra de duas bocas do famoso António Victor Vieira; um cavaquinho da autoria do Manuel Pereira, construtor lisboeta (1840-1889) do qual existem instrumentos nos Museus de Bruxelas, Milão, etc., entre outros.

0 total dos 9 instrumentos custaram 5.820$00.

Para terminar referiremos a oferta da rabeca construída por Francisco de Matos Bettencourt, da ilha do Pico, a que atrás fizemos referência.

Transcrevemos uma passagem da carta que nos escreveu em 28 de Março de 1966:

"( ... ) Também vi na sua carta que já recebeu o violino, e que julga em bom estado, que me dá esperanças de poder ser admitido no lugar a que tinha sido destinado; se assim for ( ... ) Quem fica agradecido sou eu, e não como o senhor na sua carta me agradece. 0 senhor Ernesto e o senhor Benjamim andaram aqui ali por todo o País à procura de objectos para construir criar um Museu para Portugal. Para quem é esse Museu? - Não é para mim também? Embora eu açoriano, só que nos separa é o mar. Os meus (ou melhor) os nossos ideais açorianos são iguais a todos os portugueses que se orgulham de o ser. Portanto, torno a dizer, agradecido fico eu, porque fez mais quem constrói a obra, do que aquele que dá uma simples peça para essa grande obra, que nos havemos orgulhar todos de possuirmos; e mais lhe digo ( ... ) Agradeço-lhe em nome da Ilha do Pico, se o senhor conseguir em que esse violino entre nesse Museu, não por julgá-lo uma obra prima, não senhor ( ... ) Eu bem sei que ele é de pouco valor material, porque bem se vê, que posto ao pé de um instrumento como aqui aparecem, que daí vêm, feitos por profissionais, o meu não passa de uma simples cartola; mas que nesse objecto, que pouco val(or) tem encerra uma grande vontade, de uma pessoa que tem muito prazer em ajudar todo(s) aquele(s) que se esforçam por fazer de isto um Portugal novo. Senhor Ernesto (... ) não é preciso nomear o meu nome como construtor do violino; porque o meu nome pouco ou nada vale, ao tanto gostava se podesse ser que o violino entrasse para o Museu, fosse em nome da Ilha do Pico; se assim for será para mim grande satisfação".

Este senhor, era um modesto agrícultor que tinha uma profunda consciência dos valores culturais da sua querida Ilha e que, numa das passagens dessa correspondência dizia:

"Eu só tive o grande prazer de frequentar a escola um ano, não fui mais porque já não tinha idade escolar, o que eu sei bem é mondar e cavar".

De acordo com uma orientação muito cara ao Centro de Estudos de Etnologia, de dar testemunho dos projectos em que se envolveu, retomaremos, em jeito de balanço final, o seguinte:

0 projecto configurado na carta de Jorge Dias a Ernesto Veiga de Oliveira, traduziu-se realmente na publicação de um estudo (de referência) que agora se reedita, fruto de trabalhos de campo que decorreram de 1960 a 1965, e na organização de uma colecção de instrumentos musicais, que significou um encargo financeiro total para a Fundação Gulbenkian de 254.327$00, assim distribuídos:

Aquisição de 486 instrumentos musicais - 86.928$00
279 dias de trabalhos de campo - 55.800$00
Ajudas de custo - 50.326$00
32.718 quilómetros percorridos no Continente - 35.543$00
Deslocações nas Ilhas da Madeira e Açores - 25.730$00

Para terminar retemos as palavras de Ernesto Veiga de Oliveira:

"( ... ) este trabalho foi uma ocasião incomparável e excepcional de penetrarmos verdadeiramente o segredo mais significativo de cada terra, de contactarmos com as formas mais ricas e expressivas da nossa cultura, com as figuras mais pitorescas da nossa paisagem humana."7


1 Texto que acompanha a reedição do livro "Instrumentos Musicais Populares Portugueses" de Ernesto Veiga de Oliveira, 3ª edição, Lisboa: Fundação C. Gulbenkian / Museu de Etnologia, pp. 11-33.

Digitalizado por D. Morais em Janeiro de 2001

2 Infelizmente este propósito ficou por cumprir. Por isso, o CEEP adquiriu, em finais de Abril de 1961, através das suas exíguas dotações, um gravador Philips que trabalhava apenas com corrente eléctrica.

3 As obrigações académicas e os trabalhos de investigação sobre os Macondes de Moçambique não favoreceram a concretização deste desígnio. 0 estudo dos Instrumentos Musicais Populares Portugueses ficou a dever-se inteiramente a Ernesto Veiga de Oliveira. Jorge Dias, apenas tratou a problemática da difusão do cavaquinho, em comunicação no Congresso Internacional de Etnografia, realizado em Santo Tirso em 1963.

4 Ernesto Veiga de Oliveira, "Em busca de um mundo perdido", Arte Musical, número especial. Juventude Musical Portuguesa, Outubro, 1982, 6-7.

5 Ernesto Veiga de Oliveira, "Alguns aspectos etno-musicais do Baixo Alentejo - II - A viola campaniça", Cultura e Arte / 0 Comércio do Porto, Porto, 13.6.1961.

6 0 resultado dessa investigação traduziu-se na publicação de Moinhos, de Vento - Açores e Porto Santo (Centro de Estudos de Etnologia - IAC), Lisboa, 1965 e Tecnologia Tradicional Agrícola dos Açores (Centro de Estudos de Etnologia - INIC), Lisboa, 1987.

7 Ernesto Veiga de Oliveira, "Em busca de um mundo perdido", op. cit.

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