Reproduz-se seguidamente um texto da "Nova Gazeta" de Montijo da autoria de Madalena Mendonça Santos, a quem muito agradecemos. Este texto está integrado numa séria de pequenas crónicas sobre "leituras sugeridas".


Leitura sugerida - Poemas, de Reinaldo Ferreira

Aquele senhor que desde a infância me conhece
Com que direito se enternece
Quando me vê?
In Poemas, de Reinaldo Ferreira

Estes pedaços de prosa têm aparecido várias vezes rodeados de poesia. Assalta-me a memória uma das muitas definições que eu e os outros da minha geração tivemos que decorar na escola: uma ilha é um pedaço de terra, rodeado de água por todos os lados. E, agora modéstias de parte, parece que a página fica mais bonita: um pedaço de prosa, rodeado de poesia por todos os lados!

As ilhas são entidades quase míticas, cenário possível de muitas lendas e aventuras, prova máxima da resistência humana.... "Que faria sozinho numa ilha deserta?" ou "Quem levaria consigo para uma ilha deserta?" Ou ainda "Que objectos..." são perguntas irresistíveis, a que se seguem respostas convenientemente mentirosas, por parte dos alvos da curiosidade pública. Contudo, parece que a fantasia das ilhas está perigosamente ameaçada pelos espaços do Espaço, da Lua, Marte, outros planetas...

Mas as ilhas, tal como a prosa, são terra firme, ou quase firme. Na água que as rodeia, no mar, aí sim, se escondem os tesouros. Escondem-se dos olhos e da ambição dos homens. Em terra firme, aguentamos uma vida inteira. No mar, mergulhamos e voltamos à superfície. Não é suportável, por muito tempo. Também pela intensidade das sensações. E a poesia faz-se de sensações intensas, imensas e únicas.

Por isso, recordo, quase nos primórdios das minhas lembranças, o primeiro mergulho na poesia.

Nesse tempo, onde eu vivia, não havia televisão. Mas havia telefonia, claro! E gira-discos. Era um móvel, que ocupava o seu espaço...Não cabia num cantinho qualquer e convinha estar bem visível, pois destinava-se a tocar discos e a enfeitar. Os discos eram de vinil. Tudo isto soa a muito tempo....Agora há aparelhagens e CD. Mas nós, os mais antigos, ainda guardamos os discos de vinil. É o lado museu das nossas casas, que os nossos filhos, hoje, talvez não entendam. Mas um dia vão entender, quando substituírem o CD por um ínfimo chip...

Naquele tempo cantava-se, como hoje ainda se canta, os poetas maiores. Mas também se dizia ou recitava esses poetas maiores. Assim se divulgava a poesia, os poetas, os versos que ainda sabemos de cor, tal como sabemos que uma ilha é um pedaço de terra rodeada de água por todos os lados...

João Villaret era dono de uma voz mágica, que dizia português bem dito, fosse ele de Portugal ou do Brasil ( Essa Nega Fulô), com a mesma perfeição inspirada. Dizia o ciúme do Fado Falado e a revolta do Cântico Negro, a simplicidade da Procissão...Tudo, no respeito profundo à palavra dita. Púnhamos o disco, acertávamos as rotações, setenta e oito, quarenta e cinco ou trinta e três e ali ficávamos a ouvir o "diseur" transfigurando a voz, conforme o poema ou o poeta.

Não há amor como o primeiro, dizem. Talvez nem sempre seja verdade...mas neste caso é. E foi talvez por ter encontrado, tão cedo, um poeta como Reinaldo Ferreira e uma voz como a de Villaret, que desenvolvi o gosto por alguma poesia, por esta precisamente, em que o aspecto formal se dilui, em que conta o ritmo, a musicalidade e a alma do poeta, ali à mão de quem lê ( ou ouve).

"Não ponho esperança em mais nada/ E se puser/ Há-de ser ambição tão desmedida/ Que não me caiba sequer/ No que me resta de vida./ Ambição tão irreal/ Tão paranóica, tamanha/ Como a grandeza de Espanha, /Com Granada e o Escurial". Estes são versos lindos e quase desconhecidos. Os últimos versos deste poema repousam com o poeta: "À terra dá-se o melhor/ A terra não nos dá nada".

Aliás, quando se fala de Reinaldo Ferreira, constato que o seu nome não é muito conhecido. Mas se falarmos da Menina dos Olhos Tristes do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira? "Menina dos olhos tristes,/ O que tanto a faz chorar?/- O soldadinho não volta/ Do outro lado do mar." Conhecemos? Sabemos que Luís Cília também a musicou e cantou? Quem sabe que Reinaldo Ferreira também emprestou o seu talento à Casa Portuguesa de Amália Rodrigues? Eu sei, porque o meu pai mo disse há muitos, muitos anos. Teve o privilégio de conhecer e conviver com o poeta, e passou-me o testemunho da sua admiração.

O meu pai, esse "senhor que desde a infância me conhece". E "com que direito se enternece/ quando me vê" Foi em conversa com o meu pai que levei a cabo a habitual pesquisa, para elaborar uma pequena nota biográfica do autor. Há poucos dias. Pedi-lhe que me dissesse tudo o que sabia. Falou-me do grupo de amigos, em Lourenço Marques, das tertúlias dos café Scala, Continental, da letra da Casa Portuguesa, escrita num guardanapo de papel, no Girassol, da letra de um fado que trouxe da Metrópole (dessa Alfama que me chama/ trago a chama que se chama/ sentimento e emoção) da doença, cancro do pulmão, que aos trinta e sete anos o levou, e da obra que no ano seguinte foi publicada. Referiu Eugénio Lisboa e o Dr Fernando Ferreira, amigos que trataram de "dar" o poeta ao mundo. Falou, inevitavelmente, no pai, outro Reinaldo Ferreira, o Repórter X. E disse versos. "Mínimo sou/ Mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade/ O Nada é só o resto"

Só faltam as datas: nascimento em Barcelona, a 20 de Março de 1922 e morte a 30 de Junho de 1959, em Lourenço Marques.

Sr Director, rodeie este escrito de poesia!

Leitura sugerida: Poemas de Reinaldo Ferreira

Porque "navegar é preciso", aqui fica o seguinte "aviso à navegação"... A obra deste autor pode ser lida, na íntegra, na Internet, através do endereço: http://alfarrabio.um.geira.pt/reinaldo/index.html. Aí poderá encontrar e conhecer melhor o poeta, através de outros amigos e admiradores, que se dedicaram à construção deste " espaço" e a quem já dirigi as minhas sinceras felicitações .