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Poemas de Natal e da Paixão de Cristo

Reinaldo Ferreira



Livro III - Poemas de Natal e da Paixão de Cristo


Nota explicativa

Entre os projectos literários de Reinaldo Ferreira figurava, com certo relevo, a publicação de uma plaquette intitulada «Poemas de Natal e da Paixão de Cristo». Esse conjunto de poemas estava definido por um índice que nos foi dado pelo próprio autor. Sucede, porém, que no espólio do poeta apareceu um outro índice com a indicação de alguns poemas diferentes. Dada a impossibilidade de se saber qual o último índice - que se tomaria, nesta emergência, como o definitivo -, combinaram-se os dois, tanto mais que as diferenças entre um e outro eram pequenas. Obteve-se assim, para ordem e constituição dos «Poemas de Natal e da Paixão de Cristo»:
  1. Os Profetas;
  2. Visitação;
  3. Canção do pastor perdido;
  4. Natal;
  5. Segundo Canto para a renovação do Natal;
  6. Stabat Mater;
  7. Menino só;
  8. Ele sabia de cor o trilo de todos os pássaros;
  9. Conferência à Imprensa;
  10. Pietá.
Os poemas «Os Profetas», «Natal», «Segundo Canto para a renovação do Natal» e «Pietá» chegaram a ser publicados em jornais, em vida do autor. «Visitação» é apresentado com reservas, uma vez que não estava suficientemente identificado, e sabe-se que o poeta por vezes alterava títulos, dando novos a alguns já antigos. Os poemas «Menino só» e «Conferência à Imprensa», inacabados, são apresentados na única versão conhecida, tal como chegou às nossas mãos. Não se conseguiu encontrar e presume-se mesmo que não tenha chegado a ser escrito o poema «Ele sabia de cor o trilo de todos os pássaros».

Os Profetas

Assombra, esta verdade que trazemos. Aterra, a nitidez com que falamos. Mas nós, mais do que vós, nos aterramos Da certeza que temos. Porque há distâncias que ninguém transpôs E predizer é ser no Tempo - Aquém. Correm palavras, como um rio, em nós: A Verdade é Belém.

Visitação

Que é do anjo das asas rutilantes Com que lutou Jacob, na madrugada? Que é desse outro, de falas sussurrantes, Que surgiu a Maria, a fecundada, Tão casta e sem pecado como dantes? Que é da estrela, pela mão de Deus lançada A guiar os incertos caminhantes Ao colmo da cabana consagrada? Onde estão os sinais que Deus envia? Onde estão, que os procuro noite e dia Sem nunca ver cumprido o meu desejo? Não os vejo e não sei se eu, que os procuro, Os não encontro porque sou impuro, Ou sou impuro porque os não vejo.

Canção do pastor perdido

Ia eu p'ra Belém Com oferendas também Por Babel me passava; E, passando, hesitei, Hesitando, parei E parando, ficava. Mas nem lavas, nem lodos, Nem os répteis todos Da Paixão e do Mal Terão força que possa Afundar-me na fossa Do Juízo final.

Natal

Neste caminho cortado Entre pureza e pecado Que chamo vida, Nesta vertigem de altura Que me absorve e depura De tanta queda caída, É que Tu nasces ainda Como nasceste Do ventre da Tua mãe. Bendita a Tua candura. Bendita a minha também. Mas se me perco e Te perco, Quando me afogo no esterco Do meu destino cumprido, À hora em que Te rejeito E sangra e dói no Teu peito A chaga de eu ter esquecido, É que Tu jazes por mim Como jazeste No colo da Tua mãe. Bendita a Tua amargura Bendita a minha também.

Segundo canto para a renovação do Natal

A Noémia de Sousa Tudo foi emprestado e alheio Para que Deus nascesse conforme as Escrituras: A gruta, que os presépios embelezam, - Ou talvez um estábulo? - Ou talvez o ventre autêntico da mãe? A burra e a vaca, José, que era o pai cómodo, E a mãe, que era o empréstimo supremo, O recurso, a verdade E a necessidade Para que Deus nascesse entre os homens, Mais do que Deus, Um Homem. Havia os magos com presentes deslocados, O astro dos sinais, A voz, o anjo, os pastores e a frase Que nos presépios fabricados Fala da paz, dos homens e da boa-vontade. Havia a noite e nós, Filhos de pai e mãe, Nascidos antes e depois à espera de que Deus viesse, Fruto d'A que não teve marido neste mundo Para que o filho deslisasse sem pecado. E havia Herodes, Para que não fosse fácil O que era inevitável. E houvesse drama. Ora bem. Entre a burra e a vaca, Dentro do hálito tépido das bestas, Sobre as palhas E ao nível das tetas, O menino jazia Nascido, Que é como quem diz cumprido Da promessa que havia. José, Os magos e os pastores Tinham a sua fé; A estrela tinha o seu ofício de ser estrela; A noite e as bestas tinham a sua inconsciência, Que é tudo, Porque tudo e nada são a mesma coisa; O Menino tinha o mistério de ser menino E já Deus; Ela, Ela tinha a miséria de ser mãe E só mãe. Ela é o Natal. Ora bem. Não falemos de Herodes, nem dos magos, nem dos pastores, Nem sequer de José, Do amável, do amoroso José Que nos enternece E discreto desaparece Pela esquerda baixa Do primeiro quadro da tragédia De que somos o coro - E também a tragédia. Mas falemos d'Ele, Que Ele é Ele, Mesmo quando se faz pequenino Para ter o nosso tamanho. Não falemos da noite, Que é um pouco mais que tudo isso, - E menos do que a mãe, De quem falemos. Ora bem. Ela ali estava para ser pintada. Para ser pintada na vista do conjunto Que é o Natal, Comparsa dos presépios que hão-de vir, Entre arraiais e foguetes E estrelas de papel. Ela ali estava para ser pintada Na fuga para o Egipto, Ao trote gracioso do burrito, Sem vaca, só com José e o deserto e as escrituras, Que mandam mais que Herodes E todos os seus bigodes. Ela ali estava para ser pintada. Para ser pintada - pouco e bem - Sem o burrito, só com Sant'Ana e S. José No breve engano de ser só mãe Dum filho que fosse só filho. Ela ali estava para ser pintada No alarme de Jesus entre os doutores. Ela ali estava p'ra não ser pintada Depois que Jesus fez trinta, Antes dos trinta e três (Disseram trinta doutores: - Diga trinta e três. Ele disse. Ele disse e morreu Sem sofrer dos pulmões). Ela ali estava para ser pintada E no zénite de Jesus ser Jesus, Depois dos trinta, Quando Jesus Fez Trinta e três, Ela ressuscitou pintura ao pé da cruz. Ora bem. A cruz que Ele trazia, Mal lhe pesava. Ele esperava. Ele salvava. Ele descia E por isso subia. Ela era mulher, era mãe - e Sabia. A sua cruz Era Jesus. O seu inferno Era ser mãe do Eterno Que havia de sangrar E morrer Pelo caminho. Por isso é que Ela mal se vê no palheiro, Que é como quem diz, no estábulo. Não é a estrela que A deslustra (O Universo e todos os seus astros Não valem o que Ela é); Não são os magos que A repelem Para o canto, de não ser rainha, Porque Ela o é dos reinos que eles buscavam; Não é José que A excede, porque José é José, E isso lhe basta sem ser bastante; Não é o Filho que A tolda, Porque Ela é a Mãe. Ora bem. É ser a Mãe. É ver que o Seu menino Não é apenas menino, Mas a dose anunciada De Homem e Deus; A ponte que tem de ser pisada Para que haja estrada Para os céus; É o ser-lhe filho e ser-lhe pai, O filho que Ela estremece Vivo e já morto, Porque o Pai quer e Ela obedece. Irmãos em Cristo! Irmãos do mesmo pai, Quem quer que seja o Cristo Que buscais. Esta é a Sua hora! A Sua - e a nossa. Ela é o Natal. Ave-Maria. Ora bem.

Stabat Mater

Tu, mãe de Deus, Nesta hora e sempre Mãe d'Ele e nossa mãe, Pare-o com dor humana E renovada E consagrada, A Ele, que nós buscamos Com outros e afinal equivalentes credos, A quem chamamos nos desolados medos, Talvez com outro nome Porque é diversa a língua E não a fome Que lhe temos.

Menino só

Assim que o Anjo descer, Hei-de sentar-me na estrada Ao pé da hora marcada Para o menino nascer. E quando venha - sem mais Porque o não quero também Maculado - Hei-de fitá-Lo e sorrir Pensando no que podia Mas não lhe quero ensinar: Nem a ler, Nem a contar, Nem que requinte a mentir. Depois - mas depressa, Não lhe desponte um vislumbre De lucidez na cabeça -
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Conferência à Imprensa

O processo - O que importa é virá-lo do avesso, Mudar as intenções, Interpretar, Sofismar - Deve ser rápido e sumário. Termos, preceitos, norma, É tudo forma, Matéria de processo e convenção. Ao cabo, é o Calvário Que é preciso atingir. Alguém tem de subir. Eu não quis, sou juiz. Aos senhores, Mais propagadores De tudo o que acontece - De todo o que parece Que acontece E passa a acontecer - E disto e daquilo - E da Verdade, às vezes -
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Pietá

Já lívido repousa em seu regaço. Já não escuta, não vê, não ri, não fala. Aquele que foi Seu filho, Ela o embala Morto, alheia a tempo e espaço. O mistério parou no limiar dos assombros. Dos irados profetas, das rígidas escrituras Sobra um Deus morto; e os únicos escombros São a atónita aflição das criaturas. Eles choram, vários, como vários são Sua revolta e sua dor. Absorto, O olhar da Mãe escorre, inútil, no chão. Ela, o que chora? O Deus parado - ou o filho morto?