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Dispersos

Reinaldo Ferreira



Livro IV - Dispersos


Nota explicativa

Os poemas que neste livro se incluem merecem uma nota de esclarecimento. Trata-se, como é evidente, de matéria delicada, tanto mais quanto só neste livro se poderia falar da inclusão ou exclusão de quanto não coube nos restantes livros que eram projecto do Poeta.

Quais os poemas que aqui couberam? Como acima se disse, simplesmente, quer fragmentos de poemas, quer poemas completos, já antigos, já mais recentes, que não faziam, de modo nenhum, parte de qualquer dos livros delineados por Reinaldo Ferreira. De alguns desses poemas nem sequer caberá dizer que fossem versões definitivas. Tão pouco se lhes poderá conferir uma cronologia fundamentada: fazê-lo não passaria, nalguns casos, de aproximação, noutros, de pura fantasia.

Convém desde já frisar também que não se incluem neste livro todos os poemas que chegaram à mão dos organizadores, quando já o estudo do espólio estava em curso. Alguns, por aos organizadores parecerem francamente inferiores à melhor medida que o Poeta de si viria a dar, foram simplesmente excluídos, ficando no entanto guardados com o espólio do Poeta, que entidade competente deixará certamente à disposição do estudioso interessado.

Quanto à arrumação das poesias no livro, fica óbvio, de tudo quanto atrás se disse, que pouco se poderia fazer. Optou-se pela ordem que pareceu melhor, ficando-se no entanto a saber que essa ordem tem muito de discutível e, quiçá, de inaceitável. Aos organizadores afigurou-se no entanto que o importante seria manifestar os poemas e não «montar» o arranjo deles.


Linhas cruzadas

Ai de mim! Que não pedi p'ra nascer E sou forçado a viver! A Natureza espreitava O desejo de meus pais. E foi pedir ao destino Que lhes cruzasse os caminhos Que eles haviam de seguir. Ah! Pobre mãe! Antes tivesses nascido Toda crivada de espinhos, Estéril como cardo seco! Mas tinhas olhos de moira: Um lírio branco murchou E o teu ventre concebeu Este farrapo que eu sou. Duas rectas que se cruzam, Eis um ponto. Esse ponto, em movimento, Há-de ser recta também. Essa recta e outra recta Hão-de formar outro ponto, Novo ponto, nova recta, E sempre, assim sem remédio. Eu sou um ponto nascido De duas vidas cruzadas: Trouxe comigo um impulso Que me deu a Natureza Para seguir um caminho E a trajectória marcada. O que me espera? Não sei. Apenas sei que caminho, Para um caminho de fel, Para a certeza do Nada. Comecei, era menino, Sou cansado caminhante, Serei velho peregrino, E o Nada sempre distante. Ai de mim! Que não pedi p'ra nascer E sou forçado a viver!

Passemos, tu e eu, devagarinho

Passemos, tu e eu, devagarinho, Sem ruído, sem quase movimento, Tão mansos que a poeira do caminho A pisemos sem dor e sem tormento. Que os nossos corações, num torvelinho De folhas arrastadas pelo vento, Saibam beber o precioso vinho, A rara embriaguez deste momento. E se a tarde vier, deixá-la vir E se a noite quiser, pode cobrir Triunfalmente o céu de nuvens calmas De costas para o Sol, então veremos Fundir-se as duas sombras que tivemos Numa só sombra, como as nossas almas.

Onde, aguardando, esperasse

Onde, aguardando, esperasse, Onde, cantando, me ouvisse, Onde, podendo, bastasse, Onde, vivendo, existisse. Onde o intuito trouxesse O corpo de se cumprir E eu todo sempre me desse, Aí seria também De exílio a minha atitude. O que é longe é sempre o Bem, Por mais que a alma se mude.

Da margem esquerda da vida

Da margem esquerda da vida Parte uma ponte que vai Só até meio, perdida Num halo vago, que atrai. É pouco tudo o que eu vejo, Mas basta, por ser metade, P'ra que eu me afogue em desejo Aquém do mar da vontade. Da outra margem, direita, A ponte parte também. Quem sabe se alguém ma espreita? Não a atravessa ninguém.

Quem dorme à noite comigo?

Quem dorme à noite comigo? É meu segredo, é meu segredo! Mas se insistirem, desdigo. O medo mora comigo, Mas só o medo, mas só o medo! E cedo, porque me embala Num vaivém de solidão, É com silêncio que fala, Com voz de móvel que estala E nos perturba a razão. Que farei quando, deitado, Fitando o espaço vazio, Grita no espaço fitado Que está dormindo a meu lado, Lázaro e frio? Gritar? Quem pode salvar-me Do que está dentro de mim? Gostava até de matar-me. Mas eu sei que ele há-de esperar-me Ao pé da ponte do fim.

Nota: Amália Radrigues canta um fado (Medo) com a 1.a, 2.a e 4.a estrofes desta poema.


Passos furtivos na escada

Passos furtivos na escada Da minha imaginação. Sabendo-os frutos de nada São reais como os que são. Basta que os oiça e provocam A minha insónia de assalto. Se fujo, seguem-me, voam Se grito, gritam mais alto. Por favor, bom senso Não! É a resposta que eu não posso. De que me serve a razão Se não existe o que eu ouço?

Na tarde morna

Na tarde morna Passeio a culpa de quem sou, Ai quem sou! Diz que não torna Ao pecado que pecou Passa o sossego Na meiga tarde e quem sou, Ai quem sou! Quer o aconchego Que para sempre emigrou. A noite cai, Venenosa; e quem sou? Ai quem sou! Esboroa e esvai A certa voz que o chamou. E eis cumprindo Os dois destinos, quem sou, E quem sou? A morte vindo, Com qual dos dois é que vou?

Timbre

EU, Morreu. Só há ideal No plural. Tecidos Como os fios que há nos linhos, Parecidos Entre nós como dois olhos, Somos do tempo de viver aos molhos Para morrer sòzinhos.

Grandeza

À minha sombra empalidece a Flora, Extingue-se a Espécie, vaporiza o Mar! Doente, o Sol desmaia, o Céu descora, Secam-se as Fontes, rarefaz-se o Ar! Quando ela passa pelos campos fora, Ardem os Colmos e desaba o Lar; Perdem-se virgens que ninguém desflora E as Aves deixam de saber voar! Eis o que eu sonho para a minha sombra: Poder que esmaga, tiraniza e assombra A própria ira que de mim lhe empresto. Poder funesto, mas que existe Na minha sombra, rigorosa e triste Repetidora do meu triste gesto!

Minha alma é obelisco corroído

Minha alma é obelisco corroído Ou apenas quem sabe? inacabado. A memória dum fasto já esquecido Ou dum outro talvez antecipado. Só sei que lhe não sei qual o sentido; E o erro foi, assim, ter procurado O que tenha talvez desaparecido Ou não fosse jamais concretizado. Na encruzilhada, os viandantes raros, Se os olhos para ela erguem, avaros, Não conservam, sequer, a sua imagem. Mas erguida, sem nexo, longa e triste, Ela sabe que é, sente que existe, Na dor com que ensombrece esta paisagem.

Contente nunca estou; feliz não sei

Contente nunca estou; feliz não sei Se existe alguém ou neste ou noutro mundo. Vou para o Nada, sou do Nada oriundo, E entre dois Nadas desventura é Lei. Da cobarde esperança emancipei A previsão do meu destino imundo. Sou consciente do mal em que me afundo, E consciente do mal continuarei. Nem revolta me fica, apenas pressa De me tornar por fim parada peça No cósmico rolar nefasto e louco. Depois quero dormir um sono enorme Que para uma aflição que nunca dorme, A Morte, temo bem que seja pouco.

Póstumo fosse este poema!

Póstumo fosse este poema! Movesse-te a piedade de eu estar morto E fosses lê-lo! Havias (Vejo daqui ensombrecer-te o rosto A mágoa do momento!), Havias de, sem mim, Julgar maior a solidão E crer no teu tormento. Havias de buscar-me onde ninguém Achou jamais alguém Mais que distância e vaga imagem. Havias de irmanar-me à folha solta, Ao murmúrio do vento, ao céu, à nuvem

Componho para a hora em que for lido

Componho para a hora em que for lido, Para aquela, entre todas improvável, Em que, estando eu já morto e já esquecido, O que escrevo for póstumo e for estável. Componho com receio do desdoiro De quem sonho hei-de ser. Fito o futuro. O que é grosseiro em mim, eu o apuro, O que é vago e banal, o pulo e doiro.

Domina-me um terror incoerente

Domina-me um terror incoerente Do Nada, da final insensação Por isso creio em Deus com Fé demente, Por medo, por defesa, com paixão. Se busco todavia uma razão Que fortaleça a Fé de que sou crente, Tortura-me o saber que tudo é vão, Que tudo se aniquila finalmente, Que tudo se transmuta e se transforma E que perdura apenas noutra forma Aquilo que no mundo é material. Concebo que tudo isto tenha um fim. Só não concebo o que será de mim, Cumprido o meu degredo terreal.

Um sossego mais largo

Um sossego mais largo Que o esquecimento dos homens Me seja a morte Como um veleiro abandonado No silêncio do mar; Como, antes do Tempo, Como, depois do Tempo, O não haver ninguém para o contar Como não ter existido Me seja a morte! Mas não já

Não sei porquê

Não sei porquê, Sabê-lo, era saber o meu caminho, Sabê-lo, era deixar de ser ceguinho! O meu olhar, se sonha, pára e vê, Não sei porquê, Uma casa de alvíssima fachada, Prontinha mas cerrada, Esperando não sei quê Debalde o meu olhar, Batendo à porta, Se faz mais pequenino para entrar Naquela casa morta. Naquela casa morta, não Naquela casa à espera Dum peregrino, alguém Que já demora Naquela casa à espera Dum outro não sei quem, Por quem a casa chora Oh! moradia hermética dum Outro! Oh! casa dos telhados sonhadores Fitando amargurada a estrada nua Deixa-me encher o teu jardim de flores! Não fiques tola e triste, assim na lua, À espera desse alguém Que nunca vem! Oh! casa do portão sempre cerrado, Se não me deixas ser eu o Desejado, Que o tempo arrebatou e já não vem, Recolhe o meu olhar à tua esperança, Que eu prometo ficar muito calado À espera desse alguém

Porque a não tenho? Tão doce

Porque a não tenho? Tão doce E tão ao pé de acabar! Largando, como se fosse Um barco novo a chegar! Quisera-a, para brinquedo Da minha vã meninice. Nem brincaria, com medo Que ela, de frágil, partisse. Bastava só que ficasse Mito a roçar-se no Fim E o seu sorriso acalmasse A angústia dentro de mim.

Agora o céu não é das aves

Agora o céu não é das aves, Agora o mar não é dos peixes! Desabam tectos, quebram-se as traves, Tu não me deixes, tu não me deixes! Olha que o Tempo sua os segundos No manicómio da Eternidade! Estoiram os astros, chocam-se os mundos. Tu não me deixes, por piedade! Repara a hora como endoidece, Como acelera, como recua. Eu tenho a culpa do que acontece, Mas, se me deixas, a culpa é tua.

Sei que a ternura

Sei que a ternura Não é coisa que se peça, E dar-se não significa Que alguém a queira ou mereça. Estas verdades, Que são do senso comum, Não me dão conformação Nem sentimento nenhum De haver força e dignidade Na minha sabedoria... Eu preferia - Sinceramente, preferia! - Que, contra as leis recolhidas No que ficou dos destroços De outras vidas, Tu me desses a ternura que te peço; Ou que, por fim, reparasses Que a mereço.

Se eu pudesse guardar os teus sentidos

Se eu pudesse guardar os teus sentidos Numa caixa de prata e de cristal, Entre conchas do mar, búzios partidos, Pequenas coisas sem valor real... Se eu pudesse viver anos perdidos Contigo, numa ilhota de coral, Para além dos espaços conhecidos, Mais longe do que a aurora boreal... Se eu soubesse que o olhar de toda a gente Te via, por milagre, repelente, Que fugiam de ti como da peste... Nem assim abrandava o meu ciúme, Que é afinal o natural perfume Da flor do grande amor que tu me deste.

Nota: Luciano Amaral tem uma canção (não publicada) com este poema.


Perguntas-me quem sou? Sou astro errante

Perguntas-me quem sou? Sou astro errante Que um sol dominador a si chamou, E, cego do seu brilho rutilante, Se queima nessa luz que o encantou! Meus passos de inseguro caminhante, Submissos ao olhar que os escravizou, Caminham para Ti em cada instante E tu ainda perguntas quem eu sou! Eu sou aquilo que de mim fizeste, Sou as horas sombrias que me deste A troco da ternura que te dei Perguntas-me quem sou? Nome de Cristo, Eu nada sou, Amor, eu nem existo, Mas querendo tu, Amor, tudo serei!

Natal de longe

Natal! Natal! A boca o diz, A mão o escreve, O coração já não sente. Que a emoção, Vibração Das asas da fantasia No voo do pensamento, Deixou-se ficar parada Só porque a noite está quente; Só porque ser indolente É como parar na estrada E desistir da jornada, Sem coragem de voltar Pelo caminho tão rude! Natal! Natal! A doce força que tinha Devorou-a a latitude.

Apocalipse

João, iracundo João, Tu, que sabias dos tempos que haviam de vir Senão que eras judeu e perseguido? João, iracundo João! Possas agora (Que o reino temporal do Messias falhou E os demónios governam sem freio o mundo) Olhar, do único reino possível, O planeta onde somos à espera Do final dos tempos Possas João! E vejas Como a tua cenografia patética Empalideceu ante o drama real Que tu, João, Iracundo João! Perseguido e judeu, Não podias prever No largo mar olhaste E, fanático, não viste mais do que o ódio e o caos, A vingança e o extremínio.

Rosa, a mulata, desperta

Rosa, a mulata, desperta Com os morcegos, à hora Em que a Lua, nódoa, incerta E sem vulto, no céu aflora. E Vénus, mito propício Que em seu destino decide, Convoca as filhas do Vício Ao culto a que ela preside.

Tractor, Deus desta Idade

Tractor, Deus desta Idade, Não poupa as rosas inúteis. E esmaga nelas, tão fúteis, A outra finalidade Das coisas, desde o início Criadas para que houvesse Horas de paz no bulício Em que a existência acontece.

Quanto mistério na semente

Quanto mistério na semente Que ergue ao sol o pulmão de uma folha; Quanto mistério em mim, que a vejo; E quanto, quanto mais mistério em mim, Que vejo nisto um mistério!

Oh! vós, que dominais vossos instintos

Oh! vós, que dominais vossos instintos Como se fossem cavalos! Oh! vós, que os amestrais, para exibi-los Como se fossem ursos! Oh! vós, que, infatigáveis domadores de impulsos, Exibindo-os, colheis aplausos, contratos e elogios! Glória a vós! Glória a vós, represadores Do caudal, Que eu não domino, Do real. Glória a vós, dominadores do natural!

Dos prazeres no céu

Dos prazeres no céu Que Mahomet promete, Não trocava sete Só por este meu. Ver, enquanto ceio, Teu olhar, Suzette, Como se reflecte No meu copo cheio. Assim, com certeza, Por mais que a desdenhe, Na vida há beleza Enquanto há champagne.

Roma 476

Bárbaro é puro; é sangue novo e forte; É o ruivo e brutal que retempera A decadência d'oiro; é primavera No outono hipnótico da morte. Quando a taça mais vinho não comporte E trema já a mão que o invertera, O bárbaro impulso que lhe altera O equilíbrio é ruivo e vem do norte Oh! Nós, os para quem andam contados Os dias viciosos, requintados! Que chovam, triunfais, pétalas, cravos, Como quem peça a derradeira orgia! Pois antes que, talvez, renasça o dia, Do norte venha quem nos faça escravos

Flor de lapela

Pequeno ser Que deu prazer, E ao cabo, num ocaso descorado, Jaz no passeio, abandonado, Sem mágoa e sem memória. Não é diversa a trajectória Das flores maiores que somos nós Exibe-nos a Vida na lapela; a glória Dura o que dura uma manhã de sol. Após, Esgotada a cor, extinto o perfume, A mão que nos colheu lança-nos fora, P'ra que nos leve a carroça do estrume Que vem na madrugada, Ou, se chover, nos leve a enxurrada Flor ou bicho Ou criatura, Tudo é lixo Na sepultura.

Feliz do que é levado a enterrar

Feliz do que é levado a enterrar, Tão indiferente como quem nasceu! Feliz do que não soube desejar, Feliz, bem mais feliz do que sou eu! Feliz do que não riu para não chorar, Feliz do que não teve e não perdeu! Feliz do que não sofre se ficar, Feliz do que partiu e não sofreu! Feliz do que acha bela e vasta a terra! Feliz do que acredita a fome, a guerra, Terrores imaginários de crianças! Feliz do que não ouve o mundo aos gritos, Feliz! Felizes todos e benditos Os que Deus fez iguais às pombas mansas

Se flores jamais me deres

Se flores jamais me deres, Se eu rir e tu não rires, Se quando eu chegar fugires Ninguém dirá que me queres! Se tu ocultar puderes O que há nesses olhos teus E que é tão igual nos meus Ninguém dirá que me queres! Se alguma vez tu puseres A minha mão tua mão Sem que estremeças, então Ninguém dirá que me queres! E se o que te dei me deres A minha trança e três flores Não pode haver mais rumores Ninguém dirá que me queres!

No amor que sentes põe amor, mais nada

No amor que sentes põe amor, mais nada. Guarda o ciúme para quem odeias E, se algum dia hás-de cortar as veias, Seja a do tédio ou da renúncia a estrada Que tu escolheres, não da paixão frustrada... Pede à carne só carne, e não ideias; Triste recurso das solteiras feias...

Chopinesque

Oh! taciturno E esquivo Motivo Todo nocturno Polpas macias De dedos leves Cintados por ametistas, São organistas Dos meus ditongos Longos E breves Como contraste, Para desgaste Dos sons, veludo sobre cetim, Vogais gritantes, Tamborilantes, Decapitantes, Sons oxidantes Como em clarim E o taciturno E esquivo Motivo Todo nocturno, Sonha a palavra Com arabescos Da sua lavra. Sonha a palavra, Detesta a frase, Sabe o encanto Do que é só quase. Por isso tende Mas não atinge, Porque transcende Para a imagem Visualizada Duma paisagem Subjectivada Que nos dilata Mas nos compreende, Onde gravitam Coisas errantes, Em translacções De percepções Centrifugantes. E são imensas Por não sofrerem Nem o tamanho Nem dimensão; E são intensas, Porque não passam Duma evasão Das inconsciências Que me contenho. Tudo incoerências Coisificadas; Prelúdios, restos, Rastos de gestos Que nunca foram Mais que eminências Balbuciadas

Elegia dum incoerente

Tua Presença É o todo-inteiro, Real, verdadeiro, De que a beleza É um fragmento; Tua Presença Lembra um Mosteiro, É como um claustro, Como um convento Onde se bebe Recolhimento, E cada qual Se sente menos Preso da Vida Que a carne tenra Recém-nascida Se prende à vida Pelo cordão Umbilical. A tua Ausência É o todo-inteiro Real, verdadeiro, De que o Inferno É um fragmento; A tua Ausência Lembra as galés, Traz-nos atados De mãos e pés, Remando sós Pelos infinitos Mares deste mundo, Seguindo o rumo Dos Desvairados, Como proscritos, Como gafados. A tua Ausência! Antes ser cego, Antes cativo, Antes ser posto Num caixão estreito, Levado à cova E sepulto vivo. Tua Presença É como nave De Catedral, Dum goticismo Tão trabalhado, Tão requintado, Que são aladas As próprias pedras Das arcarias Abobadadas, E os capitéis Das colunatas Fogem em bandos, Em revoadas Ascensionais, Para aquele ponto, Exterior ao mundo, P'ra onde tendem As catedrais! A tua Ausência É um oceano Glauco e sem fundo Onde naufragam Os bens do mundo; É uma imagem Tumultuária Dos Derradeiros Dias Finais; É como um campo aberto Para a pilhagem Das tentações, Dos desatinos, Das abjecções; A tua Ausência É cavalgada Desenfreada D'Apocalipse, É o remorso De quem celebra, Com mãos profanas, Ritos sagrados, É um telescópio Das dores humanas Tua Presença Dimana graças De iluminura; Foi modelada Num raio fulvo De luz sidéria; Tem os caprichos, As fantasias, Duma voluta De incenso em brasa; Tua Presença Foi feita à imagem Das vagas névoas, Sonhos dispersos Pelos rutilantes Rubros gritantes Da madrugada, E em si resume O azul doente Em que dilui A macerada Melancolia Do Sol poente. É essência Pura Do ideal, É um vitral Que transfigura Raios de Sol Que correm montes Buscando fontes Para as calar Sòmente estou triste, Pois sei que a Presença Que eu canto em bravatas Com coros de latas E versos quebrados, Enfim, só existe Na minha Elegia, Nas minhas bravatas, Se um dia tombar.

Carvoeiro

Foge do cais, carvoeiro, E das ciladas da areia! Foge arteiro, Oh carvoeiro! Segue sempre o teu roteiro, Que só a terra é sereia Singra, soprano, o veleiro, Tu passas, quente e contralto Vai, banzeiro, Oh Carvoeiro! Vai, que o teu casco é romeiro Da romagem do mar alto Teu manso ir, carvoeiro, É todo feito de brasas Se és ronceiro Oh Carvoeiro! O teu fumo aventureiro Tem um destino com asas Vê com que aprumo cimeiro Transcende a altura dos mastros Vai, cordeiro, Oh Carvoeiro! E escuta a voz do gajeiro Que sobe à cesta dos astros Vai para o mar, carvoeiro, Terra é mulher, é má sorte. Vai ligeiro, Oh Carvoeiro! Não veja a onda, primeiro, Brilhar a Estrela do Norte Negro, negro carvoeiro, Não voltes nunca do mar! Vai, trigueiro, Oh Carvoeiro! Que eu não nasci marinheiro E o meu destino é ficar

A tua mão é que desperta Abril

A tua mão é que desperta Abril E, só de lhe tocar, reveste a rosa E o vento vem, à tua mão airosa, Como o cordeiro vem ao seu redil É a tua mão que nos ascende, às mil, Estrela por estrela, a clara noite oleosa E nela, a vasta vaga procelosa Semelha avena mansa e pastoril. Oh! mão que nos semeias maravilhas, Afastas do naufrágio as gastas quilhas E deténs o trovão que nos assombra! Oh! mão de alado gesto poderoso! Entre todos sou eu quem, mais ansioso, Aguarda que me cubra a tua sombra!

...Que culpa terão as ondas

...Que culpa terão as ondas Dos movimentos que façam? São os ventos que as impelem E sulcos profundos traçam. Aos ventos quem lhes ordena Que rasguem rugas no mar? São as nuvens inquietas Que os não deixam sossegar. E as nuvens, almas de névoa, Porque não param, coitadas? É que as asas das gaivotas As trazem desafiadas. Mas as asas das gaivotas O cansaço há-de detê-las! Juraram buscar descanso Nas pupilas das estrelas. E como as estrelas estão altas E não tombam nem se alcançam, As asas das pobrezinhas Baldamente se cansam Baldamente se cansam, Baldamente palpitam! As nuvens, por fatalismo, Logo com elas se agitam; Os impulsos que elas dão Arrastam as ventanias; As vagas arfam nos mares Em macabras fantasias Assim as almas inquietas Prisioneiras de ansiedades, Mal que se erguem da terra, Naufragam nas tempestades!

Epitáfio a um capricho morto

Amei Não QUEM busquei, Mas o que achei. O mesmo acaso Que nos cruzou, Nos separou. Assim O fim Estava em mim, Túmulo e berço Do sempre engano Par'onde vou.

Triste, a paisagem tem ciprestes só

Triste, a paisagem tem ciprestes só. Órbitas cegas, de chorar por água, Os tanques estancam sua sede em pó E o seu silêncio enche o jardim de mágoa. Ao buxo, há muito que ninguém dá norma, Só répteis amam, no caramanchel. E o velho fauno branco, hoje sem forma, Envolto d'hera, toma a cor do fel. Galgos, cisnes, pavões, festivas flores, Tudo se foi. No vácuo, o tempo escorre. Folha arrastada aos vergéis exteriores, Transposto o muro, inda que verde morre.

Esboço para a invenção de uma poetisa

De que me serviram as tranças, Minha mãe, com que sonhavas Conservar-me a inocência Que eu não tinha? Para quê a vigilância Das leituras que eu fizesse Que eu fizesse e que eu faria No prazer entrecortado Do pecado vigiado? Que é do marido perfeito, Feito dos restos do outro Que sonhaste E não achaste E julgaste que me estava reservado? Onde estão a segurança, O sossego, a plenitude Da mulher que fabricaste Como quem põe a pousada Na paisagem da altitude? De que serviu tanta hora A guiar-me, A desviar-me, Senão também, Minha mãe! Para que eu misto de esperança E, como tu, de vingança Não deixasse Que a filha da minha carne As suas tranças cortasse, Sua leitura escolhesse, E com firmeza afastasse O marido que eu lhe desse.

No princípio, só a vida existia

No princípio, só a vida existia; O mundo era o que havia Ao alcance da vida... E mais nada. Tudo era certo, simples, claro. Quando o passado passar (E passará, porque o passado é hoje) E o futuro vier (E há-de vir, porque o futuro é hoje), Então, sim; há-de saber-se tudo E tudo será certo, simples, claro. Eu, porém, não sei nada.