Projecto Vercial

António de Sousa Macedo


António de Sousa Macedo nasceu no Porto em 1606 e faleceu em Lisboa em 1682. Era de família nobre entroncada nos Braganças. Licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Depois da Restauração, foi secretário de estado na embaixada que D. João IV enviou à corte de Carlos I de Inglaterra e embaixador na Holanda. Foi desterrado para a ilha Terceira após a abdicação de Afonso VI (1669). Foi diretor de um dos primeiros jornais portugueses, Mercúrio Português, publicado mensalmente em Lisboa (1663-1666). Escreveu obras em português, castelhano e latim.

Obras: Flores de España, Excelências de Portugal (Lisboa, 1631); Ulissipo (poema heróico, 1640); Lusitania Liberata ab injusto Castellanorum dominio (Londres, 1645); Hermonia Política dos Documentos Divinos com as Conveniências de Estado (Haia, 1651); Eva e Ave (Lisboa, 1676).



ULISSIPO


CANTO I

Canto ao varão que por fatal governo
da Grécia à Lusitânia peregrino
fundou ilustre muro e nome eterno;
onde o mar torna o Tejo cristalino
muito obrou e sofreu; em vão o Inferno
se quis opor contra o poder Divino,
que o guardou para autor, naquela idade,
de muitos reinos numa só cidade.

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CANTO III

Quando tinha no céu mais levantada
Apolo a luz, das metas mais distante,
E a terra com mais forças fulminada
Do arco de ouro e setas de diamante,.
A desembarcação já desejada
Conduz os seus o sábio navegante
Nos batéis entre si competidores
Em toldos ricos de diversas cores.

Chegam todos ao porto juntamente,
Que a competência a todos igualara;
Juntos saltam na areia, que já sente
0 bem que o fado tanto dilatara.
Cada qual a saúda mais contente
Entre as que o gasto lágrimas brotara;
E querendo-a abraçar com brando efeito
Aos fortes braços acompanha o peito.

Decia ao mar Antelo acompanhado
De vários Lusitanos, moradores
Em povoações vizinhas, cujo agrado
Assegurava os Gregos de temores.
Os braços dava, em seu amor fiado,
Ulisses aos humildes e aos maiores,
E de Antelo guiado sobre a serra.
Com poucos seus a descobrir a terra,

O sítio notam e o Zeni luzente
Quase em meio da zona temperada,
Vizinho com distancia conveniente
Da linha com que a esfera é demarcada.
Os influxos gozando felizmente
Do signo que primeiro tem morada
No Zodíaco largo, com que espera
Gozar inalterável Primavera.

Era do ano a estação florida
Cadente já, que mais os céus serena,
Quando a terceira casa ao sol convida
Dos géminos irmãos da bela Helena;
Quando das flores à caduca vida
O rigor de seus raios morte ordena,
E os Gregos viam, entre fruito e flores,
Os tempos quase iguais competidores.

Vêm coroado o campo do copioso
Fruito que Ceres liberal reparte,
E em flor o que a Lieu faz mais glorioso
Que os insignes troféus que lhe deu Marte.
O licor de Minerva misterioso
Fértil a terra cria em qualquer parte,
Cifrando assim fecunda natureza
Em breve mapa a grande redondeza.

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CANTO IV

Mas se esta guerra Marte, outra Amor traça
Ao grego Ulisses com maior perigo,
Pois tantos mais rigores ameaça
Quanto mais encoberto é o inimigo,
Conta-lhe Drantes qual o rei à praça
De armas saiu; os que levou consigo;
Quão bizarra o seguia a cara filha
Das almas luz, dos olhos maravilha.

Em traje belicioso lha pintava
Brandamente feroz, bela homicida;
Nevadas plumas, reluzente aljava,
Purpúrea cota de ouro guarnecida,
Qual Belona fermosa ou Vénus brava,
Arbitra a doce morte ou cruel vida,
Num alazão que os ares com desprezo
Pisava ufano do suave peso.

A tais razões o cego Amor, que via
De Ulisses descuidado o peito brando,
Da meia lua ebúrnea que trazia
Foi no joelho as pontas ajuntando,
Ao coração fazendo pontaria
Despede a seta de ouro, que passando
Por resistências mil, com dor suave
Pôde ferir aquele peito grave.

Sentiu-se lastimado brandamente
O grego capitão ; mas, ardiloso,
Não perde a vigilância conveniente
Ao militar aperto rigoroso;
Apresta as armas, animando á gente
L manda que Nabâncio valeroso
Com alguns saia a descobrir a guerra,
O contrário poder, o sítio, a terra.

Sai intrépido o Grego, acompanhado
De cento, que, animosos escolhera,
Num bruto ricamente ajaezado
Dos que o filho. de Aucano a Ulisses dera.
Com juvenil fervor pediu ao fado
As empresas mais árduas que pudera,
E para a acção maior, mais repentina,
Com numeroso campo se imagina.

Mas o amor que em Ulisses se ateava
E só a se aumentar tinha respeito,
A diversas batalhas incitava
O coração que via já sujeito.
Já rendida a vontade confessava,
A furto da rezão, o doce afeito,
Que um cego fogo seu valor conquista,
Podendo tanto a fama como a vista.

Na confusão ó novo labirinto
De si mesmo admirado se lamenta ;
Se amor não é, que é isto pois que sinto?
E se é amor, em mim que efeito intenta?
Se intenta dano meu, como o consinto?
Se intenta deleitar, como atormenta?
Se é voluntária pena, que padeço,
Se involuntária, por que ao mal me of'reço?

É furor, mas não é, que temo o dano.
Si é furor, pois vendo o dano, o sigo;
Nem pode ser amor, porque inumano
Me mostrara a Penélope inimigo.
Mas se ele oprime o coração, tirano,
Por mais que a seus efeitos contradigo,
Em que me culpo? Misteriosa culpa
Que no próprio delito se disculpa!

É amor; mas não é, que amor inflama,
Eu a frio temor estou sujeito ;
Mas ai, que pouco e pouco sinto a chama
Que já se estende, já me abrasa o peito.
Ah, que é neve e é fogo, pois quem ama
Se vê gelar e arder no mesmo efeito ;
Grão milagre de amor, que facilmente
O fogo torna frio, a neve ardente!

Ó viva morte, ó pena deleitosa,
Quem teus efeitos vários conhecera!
Quão falsa, quão cruel, quão poderosa
É, cego moço, tua lei severa!
A infelice Ilion fora ditosa
Se eu de antes tua força conhecera,
Porque com tais rezões a disculpara,
Que nunca por Helena se abrasara.

Teu me confesso ; em este pressuposto
Bem posso descobrir-te um só desejo:
Chega-me a ver aquele belo rosto,
Veja eu o fogo em que abrasar me vejo.
Mas quando em tal extremo me tem posto
A fama só, que peço? Que desejo?
Quero acabar co'a vista? Ai, venha a morte
Que é melhor vida tão ditosa sorte!

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