Projecto Vercial

Amadeu Baptista


AS PASSAGENS SECRETAS


A navegabilidade é o ofício das mãos, embarcamos em ti,
germinas
e o mel progride pelas sombras do quarto, a roupa nua, o fogo
circular
que principia nas nucas –

argila, brisa, pálpebras que soluçam, cortam a neblina, gastam
a angústia até ao último centavo, a frescura dos lenços, o aroma
dos pássaros vermelhos, os pátios e as algas que nos pedem
auxílio desde a areia,

vê:

acenam-nos desesperadamente com refúgios.

Corremos pela praia com a nossa nudez porque deixamos algures
os mantimentos escassos de que a nossa tristeza se mantém.

Corremos pela praia e as mãos deslizam para um cobertor lavado
pelo mar,
o oiro magnífico, a distância
mais curta entre dois pontos. É noite,

e corremos porque o tacto é uma promessa, casam-se os búzios,
conchas
azuis habitam o olhar, barcos,

homens que bebem a água como se fosse terra, pequeninas
sementes,
dissumulam a sede a que deus nos condena.

A respiração avança através de um gladíolo, as mãos
encrespam-se de silêncio, minerais dolorosos asfixiam a noite,
riscam
como se fossem fósforos as sardas do teu rosto. Vens

com os dentes branquíssimos, o peito aberto aos ninhos, barco
que balouça na névoa, é tecto, casa, cama. Dar-te-ia

a cereja do bolo, a serenidade do mar, uma praia de colmo,

se os dias não fossem transitivos e os objectos íntimos, ó ave,
insuportáveis.

Setembro principia com cúmulos no céu, jogos de água,
o inquietante
desenho de uma víbora projectado no chão. Respondes

com perguntas às perguntas que faço, reacendes a sede, fumas
nervosamente.
A esperança é um ídolo, somos imolados, a espessura do sangue
acaba por dizer-nos que é demasiado. Que cães

estabelecem contra nós a aliança feroz que nos persegue?
Que estrela risca
os limites possíveis dos nossos pés precários? Que cortejo
é este?

Ainda que a preservação seja um estímulo, e chova, confessamos
ou não
que temos medo?

As Passagens Secretas
. Fragmentos



GREEN MAN & FRENCH HORN


ROYAL LABEL BLACK

(a Ruy Belo)


Este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento;
vai connosco até à rua; responde-nos
um cigarro primeiro, uma construção na areia, depois um ferro
a espetar nas dunas e no mar
enquanto o mar houver e a paz durar;
come connosco à nossa própria mesa; ama a nossa mulher
e experimenta o odor da nossa casa aonde os nossos filhos
lhe entram pelos joelhos, o cobrem de carícias, lhe atiram
a satisfeitíssima bola de brincarmos aos adultos quando é tarde
ou os dias apresentam um cariz de pouca chuva.

Divide o nosso frango, a frugal fruta, as sobras do almoço
e sai-nos portas dentro quando o pôr-do-sol, a solução
do sol, o sol
das terras de portugal e das noites de madrid
dialoga connosco, connosco estabelece a nítida fronteira
entre aeroportos, casas – oh as casas – e a mulher que,
podendo ser a de um estivador, do camisola amarela, desse
irreverente basquetebolista que por um grande azar
não é das nossas relações,
foi, é, será sempre a mulher
encontrada e perdida na poeira, nas arcas,
nas infâncias multicoloridas
que parcimoniosamente nos excedem.

Procura, sim, procura as cores do nosso entendimento;
bebe do nosso vinho; vai à missa connosco; veste-nos
a pele de lobos esfaimados nesta selva de ratos onde os ratos
se confundem com navalhas, intelectuais empalhados, inquiridores
por conta d'outrem (e própria), só para que o amor
um pouco sobreviva, exíguo e tenso, ri
às bandeiras despregadas como só um menino, como só
alguém que sabe da poda pode rir
enquanto os táxis, o choro, as dores de consciência
– que afinal não há, embora os cais... – atravessam o meio-dia,
desesperadamente.

Ah, este homem procura as cores mais secas
do nosso entendimento; limpa-se
às nossas toalhas; chega
ao extremo de utilizar a escova privada da nossa privadíssima
higiene; rompe
os nossos sapatos (meias inclusive); joga
à pancada connosco, ao eixo; e rouba-nos a carteira
como só quem sabe sorrir pode roubar-nos, pode assinar
de cruz por nós, solucionar
o problema da nossa talvez habitação
sem prestígio nenhum, ao menos uma praia de consolação
em que morrer

com o mesmo à vontade, modéstia e alegria
deste homem que procura,
procura as cores mais secas do nosso entendimento.

Green Man & French Horn




MAÇÃ

Estou na presença da rapariga ou a sonhá-la, não importa, ela é muito agradável, bebo à sua saúde sabendo o que sofreu para passar a fronteira, olhar hoje a longa noite sem qualquer indelével marca de remorso, é uma belíssima rapariga com uma pele sereníssima de veludo, os dentes maravilhosos e brancos, os braços suavíssimos, creio bem que acabou de chegar agora mesmo dessas dunas, por essa rapariga e o fim da solidão as amendoeiras florescem, as mãos deixadas livres são de súbito a premonição de um clima quente que regressa, um contorno com asas que bate nos vidros, viceja a região onde dormimos.

Estive só mas a rapariga excedeu todas as minhas expectativas, levou-me ao cais, ensinou-me os nomes das marés, perguntou-me de que modo me interessava pelo mundo, fez-me ouvir as aves, ofereceu-me uma praia, imperturbavel– mente disse-me haver um segredo para a eterna juventude sob o sol, bastava procurar, quando pela última vez a ouvi cedi porque o amor era mais forte, foi a mais frágil e a mais forte e a mais bela rapariga batendo à minha porta, deu-se-me.

O que eu quero a essa rapariga é indescritível, ei-la entrando no mar, nos caminhos do vento, no brilho das estrelas, é ainda mais excelente que um prodígio, um elixir, atravessa a cidade, atravessa o deserto, tudo atravessa voltada para o amor, sereia primordial por que me quero encantado, inesgotável nascente, hidromel que faz um pouco mais doce este ressentimento contra os que nos violentam.

O fascínio exerce sobre nós um poder admirável, arriscamos um salto no desconhecido, procuramos o conforto que só uma palavra pode dar, jamais nos intimidaremos com os cães que a expulsão desocultou, somos pó e ao pó voltaremos mas não há-de ser em vão o nosso sofrimento, agora e na hora da nossa morte uma súbita alegria há-de arrastar para longe os gigantescos percalços que o deserto, insidioso, nos reserva.

Uma fábula põe-nos os dentes a arder, ardentemente levantámos uma haste de paz que é o princípio e o fim de tudo, nestas ruas cinzentas, indagador, sei que poderei aproximar-me do lobo sem receio, há algo que sara as feridas, é agora que o cariz dos gritos explode na excelência do amor, a paixão avança, a escuridão se extingue na clareira para que a tesoura não volte a espetar-se no céu das nossas bocas.

Atravesso o deserto e amo-te, amo-te, o rubi com asas dentro que trazes no coração é uma fada protegendo-me, com desmedida volúpia acaricio os teus ombros, o corvo foge a toda a velocidade, a noite é muito longa mas nós não dormiremos, por esses cabelos luminosos é que o futuro chega, nos conduz ao litoral, nos leva até à criança que há em nós, esperemos que a criatura justa volte a nascer, os pequenos sonhos se façam realidade, a salvação, desta vez, seja total e definitiva.

Agora entras com um saco cheio de ilusões para que a vida adquira o seu melhor sentido, é uma recompensa conhecer-te nas imediações do mar, quem quiser ser fecundado como tu deve esperar que um relâmpago o ilumine como tu foste iluminada, danças levemente tocada pela chuva e não sei se és tu quem dança ou a roupa que acabas num instante de estender, estou seguro que contigo não haverá mistérios que resistam tanto tempo como o que dizem haver na eternidade.

Não somos mais do que uma pálida ideia do que poderíamos ter sido se não tivéssemos a temer as represálias, mas apareces e a nitidez começa, o arco-íris volta, o fogo recupera o seu brilho indescritível, a paz pode viver, o pensamento correr, o desamparo ser dado ao abandono sem que o sofrimento se insinue, a água florindo-te, protegendo-te, enquanto um lume esplêndido por dentro nos inunda e uma chuva de estrelas principia a cair.

Doçura, e escreverei o teu nome numa folha de sangue, è la storia di un'anima, la storia dell'anima mia , bendita sejas tu entre as mulheres a quem a misericórdia foi negada, bendita sejas porque é com denodo e alegria que dás à luz a luz, desafias o abismo, vês a face de deus, neste ponto da passagens da peregrinação contrarias as vozes mais sinistras do silêncio, pura e vivificantemente desvendas todas as contingências deste mundo.

As causas desta tristeza são exógenas à natureza mesma da tristeza, não creio que possamos censurar a mulher por ter comido a maçã, desde sempre os desejos da mulher são ordens indiscutíveis, umas tarefas são doces, outras não, a relevância da proibição não justifica a qualidade da punição, qualquer pessoa põe um alto teor afirmativo nas suas convicções quando é um apelo interior que a ordena, o dilaceramento, a vergonha, são sacrifícios inconcebíveis para quem age a favor da pureza, não deve sofrer perpetuamente quem assim tem vincada a solidariedade com os seus.

Solicito-te protecção incondicional contra os que contra nós recorrem à violência, arbitrariamente nos querem amarrados a uma voz tutelada pelo silêncio, nos agridem quotidianamente com dificuldades insuperáveis, o perjúrio, a mais completa indiferença para com os nossos legítimos anseios, as nossas dores mais íntimas, tão enganoso é o pântano das suas bocas e tão extensos os seus crimes que só lhes poderemos perdoar com uma pedra na mão.

Há-de ficar provado que não há rapazes maus, com a minha atenção e o teu rosto hei-de encontrar o teu rosto, à medida que caminho para ti os horizontes alargam-se, o pânico descongela a partir das tuas pálpebras, consentiremos em elaborar um amplo íman para nossa salvação, nesse líquido lugar um vulcão abrir-se-à, os nossos dedos compondo um ramo de inigualável paz, a paz distribuindo a quem sempre esperou um archote de som e o irrecusável furor da terra nua.

Maçã (Fragmentos)


KEFIAH


Procurarás esse nome no fluxo silencioso
da solidão, mas ninguém te responderá.

Procurarás no iniludível estremecimento da noite,
no vagaroso rumor que se desprende do fogo, no rosto
inverosímil que se oculta na sombra, mas ninguém te responderá.
A tua casa
são quatro paredes de silêncio,
uma ausência que se perpetua cada dia que passa, o ciclo
de uma luta sem tréguas golpeando-te a respiração e a saudade
de tudo o que perdeste para sempre, mas conservas ainda
no coração aberto.

Abres o pão das tuas sílabas indecisas e que tencionas barrar
com a geleia da vida uma vez mais, fechas
na gaveta um pouco dessa escuridão que desce pela tua face,
atiras para trás
o lençol porque o calor crepuscular afoga os teus soluços,
mas ninguém
te responderá.

Não és quem és, um homem na encruzilhada, essa interrogação
que te palpita nas mãos, a última personagem
de um capítulo onde a asfixia exerce o poder de coagir sobre
o teu sofrimento; não és
quem és, cinza e ruínas convertidas em recordações e esperança,
aquele que ama transgressoramente, esse cúmplice
que pede à própria sombra uma réstia de sombra – desesperante,
o silêncio arrasta atrás de ti a revelação dos prisioneiros,
gente cansada que espera que a insolúvel labareda se levante,
a ponta de dor que poderia aplacar os teus gritos infinitos.

Choras – sabes que algures no mundo não haverá quem partilhe
contigo
a mesma solidão, a última aposta sobre o pano verde da vida,
o último dado a equacionar enquanto os nervos te travam
a pulsação no pescoço, as aves que te esperam na brisa,
a expectativa de um último plano fascinante
antes que a inquietação
da misericórdia dê conta dos ângulos mais agudos da tua insónia
ancestral.

Mas ninguém te responde – a chuva amarga cai sobre
o incêndio dos teus cabelos, continuas a discorrer uma oração
sem motivos de esperança, o fulgor
dos ferros atravessados na luz do teu espírito.

A ausência vem visitar-te cada noite, visita-te quando recebes
o olhar estonteante da rapariga dos teus sonhos, visita-te
quando cresces para o mar com a raiva concentrada na garganta
e pronta para o grito – mas não gritas, apenas o fascínio
da memória devolve a vertigem
da tua silhueta recortada pelo mar.

Um peixe esgota-se no areal, a tua mãe passa, foge de ti,
diz que não te conhece,
acompanha-la à campa, tomas
um pouco de terra e atira-la com força à sua urna, tens frio,
agora as tuas lágrimas estão em fogo, queimam-te os olhos
com a imagem omnipotente do teu pai
envolvido numa luta de morte com um homem armado
de um punhal
– gumes,
um labirinto de pântanos é o que resta do segredo
das tuas expectativas:
aí está novamente a mulher
exercendo o poder divino sobre a fragilidade da tua teia verbal,
ninguém, ninguém te responderá,
o arrebatamento dessa paixão é um território de cinzas
e perplexidade,
o campo de minas
que atravessas com o medo pulsando sob a língua, o esmeril
da tristeza trabalhando sobre a angústia como a realidade
trabalha
sobre ti e sobre os que te são semelhantes.

Uma coluna de incenso ergue-se a teus pés, a cidade
mergulha no ar sufocante de um sol tórrido e implacável,
reina o silêncio
entre a linha das muralhas, as moscas invadiram os últimos
panos de sombra
dos subtis movimentos da tua unção carnal – áspera, a claridade
é uma pérola perdida nos átrios do silêncio, um fósforo
abandonado
no primeiro degrau de uma escada sem fim, o brilho fragílimo
que te poderia conduzir à primitiva fonte da tua natureza,
onde apenas a memória poderia tocar o universo em trevas
das tuas mãos vazias, apenas a indistinta memória
de um episódio nebuloso da infância
te conduziria ao abismo de um sonho, fogueira e litoral
do deslumbramento.

Não jogaste, tudo jogaste e perdeste – a melodia levanta-se
nos ouvidos, não dormes,
o pesadelo uiva em cima dos móveis, há facas que nascem
das paredes
e te ferem o corpo, um cão de louça
vigia os teus lentos e doridos movimentos entre a penumbra –
queres soltar um grito que quebre esse êxtase lacerante, mas
um lápis irrompe dos teus cabelos,
ninguém te responderá, a vítima repousa sobre a ara, espera
o início do ritual, a faca mágica do sacerdote, as sílabas cavas
lançadas sobre o cadáver pútrido de um pássaro.

A energia deslaça-se dos teus braços, os lábios balbuciam
um nome impronunciável, longínquo,
escuta-se o rumor de um rio perdido, o crepitar da desolação,
a pergunta
inverosímil que rasga o mundo subterrâneo dos sentimentos –
és agora uma criança
que disputa uma laranja a outra criança, tens no bolso
uma fita vermelha, um frágil ramo de ilusões, alguma doçura
inocente; um odor acre sobe-te pelo nariz, alguém
te afaga o sexo, gemes na escuridão, um homem morre
parado no tempo impenetrável, batem-te, vejo que te batem
violentamente,
o sangue solta-se, espalha-se pelas paredes, fixas
o olhar nesse desenho incompreensível mas de uma magia
avassaladora,
estás só, o mar chama-te, concentras
a atenção na força da rebentação, o corpo
de uma mulher é trazido pelas ondas, um cigano
passa puxando uma mula branca carregada de cestos, o silêncio
opera os seus obscuros presságios, o ar febril da noite
entrega-te nu e inocente às margens fragmentárias
da existência.

Procuras um nome, procuras a solidão de um rosto, uma árvore,
procuras
o arquipélago alucinado
de uma palavra inscrita no lume das tuas mãos;
procuras a tenacidade do sangue, o amor fortalecido
pela proximidade do perigo, o preço da verdade
que germina no vaso sagrado dos que viajam
com a bagagem restrita dos que procuram, mas a quem ninguém
responde.

O solitário não renuncia à solidão quando procura, o solitário
conhece a respiração do chacal no refúgio da noite, acende
contra os lobos
o fogo da salvação, pela solidariedade do silêncio;
o solitário é o que contempla a renúncia de uma palavra
na limpidez
da página e ama a solidão com a imparcialidade
de quem acusa os que se imobilizam na cisão
dos enigmas –
a dor comprometeu definitivamente a vida, não há salvação
possível, o resplendor estaca
no bloco calcinado dessa água que arde; a rede
de dúvidas que poderia estancar o caudal de protestos
que nos corre nas veias,
a grade de frio que ocupa os pensamentos, o ardor
visível nos nossos olhos, não responde às nossas perguntas
antiquíssimas,
a herança de choro
que nos foi legada pelo desejo e pela ansiedade:
o conflito está aberto, ó desalento, o abandono é a ave
de incrudelidade
que nos esmaga os crânios, o açor
que nos eleva do abismo e nos larga do cume da montanha
para que voltemos
ao pó,
ao pânico da queda,
à força do impacto no solo,
como se transportássemos nos ombros todo o peso do mundo,
a realidade
aterradora que inebria e ilude.

O frio escalda, o sangue asfixia sob a pele, um clarão
alastra pela casa –
é um nome que procuras nesse nome ensanguentado
que vem devorar-te
as mãos, o rosto exausto, a dor disseminada pelos rins
iluminando-te as entranhas, a amargura e a angústia, a palavra
indecifrável
que obsessivamente te atormenta, o animal rastejante
que corre no recife, o sobressalto atingindo-te o coração,
as mãos
metamorfoseando-se em pássaros negros e invisíveis, a tatuagem
que risca o âmago do teu ser perplexo, a armadilha
com que esperaste colher a luz do apaziguamento;
é um nome que procuras, um murmúrio indelével, o rito
sagrado do milagre do sol, a bruma ou o esvaimento, o tumulto
que a rebelião faz desfilar sob os teus olhos amargos, esse rio
de dúvidas
que tudo arrasta, a face prostenada da inocência, o longínquo
rumor
da festa, a coroa de pedra
que resplandece nas trevas; uma lágrima avança pelo teu rosto,
os lábios
contraem-se de solidão e de medo, o massacre progride
sob a acção
da surpresa: nenhum resgate
para o talismã perdido no deserto, nenhuma árvore no horizonte
– apenas as tuas sílabas frágeis
resistem no campo solitário, guerreiro cego aguardando o sinal
para abater ou ser abatido, em nome da maldição
e do esquecimento.

Sobrevivemos acossados, o mar como única fronteira, deserto
e reminiscência do labor da alegria, soldados entrincheirados
esperando a bandeira neutral da morte, o retorno às origens,
o sal do sangue,
as costas voltadas para a fosforescência da pureza,
uma tristeza de matizes carregados pelo vínculo
de uma cumplicidade espoliada e incorrespondida.

Sobrevivemos na rebelião transfigurada, adubo e excremento
dos que sangram, energia debilitada esperando que alguém
chegue,
partilhe do nosso pão, durma na nossa cama
e dê um passo em frente, em direcção à nossa sede apaziguada
pelo vinagre,
a ferida aberta de onde jorra sangue e água purificadora, a coroa
de espinhos perfurando-nos as têmporas, o chicote
queimando-nos o dorso arquejante.

Escuta-me o silêncio, tímpano oceânico e sentinela obscuro
dos que ao relento armadilham as criaturas da alvorada, o eco
de um sussurro que vem de um lugar onde o sacrifício
não foi suficiente
para aplacar a ira das entidades fantásticas
que dominam o voo nocturno das paixões
e a harmoniosa elasticidade dos mastins;
escuta-me o silêncio,
tu que podes ainda perdoar e retroceder, tu que esperas
a nossa rendição incondicional,
tu a quem pedimos para exercer a roda do destino
a nosso favor sem que nos queiras atender, misericórdia
sem misericórdia pelos que vão lacerados por uma culpa
que lhes não pertence,
malditos
inflamados pelo baptismo de guerra que nos foi concedido, furor
preso à cintura como o sabre dos que nos executam
e que por interposição do nosso nome
recebem o oiro por que jamais nos venderemos – escuta-me
o silêncio,

escuta-nos,

porque há um nome definitivo que nos espera, uma pedra
cintilante e um cântico magnânimo
no fluxo mágico da terra e no derradeiro sol da angústia
dos que procuram a estrela ignorada, o astro impossível

que se oculta no obsessivo mistério
da nossa solidão desesperada.

Kefiah


O SOSSEGO DA LUZ



METAMORFOSE E MASSACRE

(fragmentos)

Os dedos demoram-se na sombra.

Suspendem-se no sangue poeiras germinantes, turvos
fluidos, fios translúcidos de sal e deslumbramento
que detêm o silêncio e estancam a luz.

Desvenda o coração o que o coração oculta.

 

A sombra revela o significado oculto desse ritual que o fogo
acumula no obscuro sinal de uma ruína sem nome.

Chamam-lhe escrita, outros preferem nomeá-la como infinito
exercício de adivinhação, dizem-na outros arte,
enigma redentor a que se entregam os que crescem
para o abismo e perturbam as trevas.

Recompensa ou castigo, eis o que obstina.

 

Por essas horas as mulheres arrastam pelas praias o espesso
manto da escuridão, convocam os mortos às encruzilhadas,
libertam trémulas luzes de obscuros papéis e sombras
calcinadas.

Corre implacável o curso da impaciência sob a ofendida
serenidade do poema

O Sossego da Luz



OUTROS POEMAS



PAINEL PARA ROSALIA DE CASTRO

É um frio tremendo.
A água gela nas torneiras, a solidão
cresce com uma unha, uma sombra
atrai todas as camisas de silêncio, arde, é uma noite
encerrando os perigos da perdição, os ferros agudíssimos
do silêncio.

É um frio tremendo.
Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se,
pergunta-se pelo sangue e o sangue não responde, o sangue
perde-se aos borbotões na vida, não há caminho, não há
regresso, a sereia canta
no denso nevoeiro, mas não há esperança, a tempestade
é o único lugar, o único lençol, a voz velocíssima
entregando-nos sem rendição, entregando-nos.

Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos
as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz, terrível,
cose-nos
contra as paredes e os olhos saltam, saltam, é um frio tremendo
onde tudo arde,
arde antiquíssimo, flecha no coração, solidão
descendo o braço, descendo devagar, espraiando-se

na terrível superfície do silêncio.

Rosalírica Homenaxe de 27 poetas portugueses a Rosalía




RETROSPECTIVA DE ALAIN RESNAIS

É possível cingir o que é inefável através desse exercício
da luz, a linha negra
que irrompe subitamente dos recônditos planos da imobilidade,
essa cabeça trucidada,
as mãos transfiguradas pela expansão de uma realização
convergente, em que forma e sentido
complementam o dinamismo voraz dos brilhos fulminantes
de que os que partem estão interiormente possuídos.

Está circunscrito a esse diálogo o sinal de que as ambivalências
sobrevivem,
o espaço alternativo em que Olga Georges-Picot assimila
o abandono e o fogo, a comunicação
de uma soma de mensagens em que o corpo se revela
pela sombra, chamas,
algumas deflagrações do que é essencial, para que respire,
ou concretize o carácter insuportável das imagens.

Vários motivos afluem à materialização desse lugar austero,
o silêncio mais cúmplice, o encantamento, o jogo,
algumas cenas de guerra em que algo de nós parece
acreditar, um contínuo, interminável
monólogo, esse deslumbramento onde para sempre se fixa
o que não cessa, para sempre
faz recrudescer a fricção entre nós, a ficção, essa rapariga
que jamais conhecemos
mas de repente amamos, perdemos, voltamos a encontrar.

Sob o espelho há um segundo espelho, Olga Georges-Picot
é agora um enredo, adivinham-se
as particularidades desse rosto, ela fala para outra eternidade,
je t'aime
, aí está o poderoso
travelling percorrendo a simulação, a justificação do esplendor,
o gesto hipotético
que arrebata e destrói, o núcleo de um processo que amplifica
e sustém o caudal do desejo.

Esta invernia não é conclusiva, essa concentração do efémero
sob a face,
há ainda uma certa forma de vigília que ameaça, o magenta,
o cyan, a alteridade
de algumas personagens, a visível implicação narrativa,
a complexidade das réplicas, o clímax
que o espectáculo da morte surpreende, como linguagem,
texto, incandescência fílmica.

Estamos feridos quando é ao herói que feriram, o projector
avança
para que essa semiologia permaneça, a que realidade
pertencemos
quando a palavra cinema se imprime na memória?, agora
Olga Georges-Picot
transcende as imaginações, troca connosco o lugar, somos nós
quem murmura,
je t'aime
, há um sistema de fragílimos sinais que propaga
essa ilusão,
a música cintilante,
a brancura da tela,
o aviso sobre as portas que indicia a saída, o segredo tumultuoso
que sob as mais diversas formas nos aguarda no exterior
do olhar.

Gostamos dessa violência quase sem sentido, concentram-se
as vozes sobre nós,
a magia dos gestos, a possibilidade da revelação, assim
o âmago de um conflito dramático se difunde, o realizador
dispara, regressa o argumento,
uma lei de inúmeras perspectivas, antagonismos, cinzas,
como perturbadora euforia do conhecimento e da arte.

(Publicado na Revista Hífen, nº. 3)



SITUAÇÃO DA INDÚSTRIA PORTUGUESA NO INÍCIO DA DÉCADA

Às vezes, quando a pressão das entregas aumenta,
ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha, onde cada tarefa
é como a execução de um castigo. Pagam-me mal,
mal tenho tempo para comer um pão ao meio-dia, sinto
que a força
dos meus dezasseis anos não corresponde ao parco
salário que me devem. De aqui a uns anos, irei cumprir
o serviço militar, perderei a precaridade do emprego, ainda ontem
uma das mulheres quase ficou sem um braço no sector
velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo a não ter dúvidas,
sofrer esta amargura endémica, a pobreza a alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos corrompidos
pelo vinagre da luminosidade, a consciência das coisas
ilegítima na compreensão da linguagem, eu calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas, embrenho-me
aos domingos na multidão triunfante, gasto em vinho a humilde
alegria
que as pequenas vitórias me consentem, tremem-me
as mãos só de pensar que existe amor no mundo, algures,
longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava de saber o nome
deste usufruto da terra, quais as cumplicidades
que tornam tudo isto possível, em que lugar de fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue e de arestas, e duvido
das proféticas sentenças sobre a vida que me oferecem, sem que
as contemple, ao menos um instante. Ao fim da noite,
aconchego-me ao sol da praia predilecta do meu coração,
tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio na morte
como única solução, maldito quem por minha vez alguma vez
pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa de ter aberto
uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra carga
chama-me,
obedeço cegamente ao encarregado geral, ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria onde ninguém produz
porque não vale a pena.

(Publicado na revista Cadernos do Tâmega, nº 3)



CÚMPLICES

El lenguaje nos da un mundo y nos destierra de él.


Néstor Braunstein

3.

Pressinto a graciosidade de uma mulher da Groenlândia
nas ruas sombrias de Benavente,
um pouco a norte do coração de Espanha.
Essa mulher é a materialização do enigma,
o seu corpo levita onde não há fronteiras
e quando fala inebria os que passam,
pelo seu ardor bilingue, a sua magia ardente,
o feitiço de todas as coisas sortílegas e ocultas.
Esta mulher persigo desde a noite dos tempos,
enquanto uma lágrima de sombra me anuncia
que todo o tempo é noite no seu ardor bilingue
porque a cidade me encanta,
um pouco a norte do coração de Espanha.

6.

Estou sentado no trono de pedra
que me entregaram os deuses para pensar em ti.
Em frente, o mar oceano abre-se como um limite
inexpugnável à minha solidão despojada,
levemente tocada por ínfimas recordações
do tempo em que a felicidade existia
e os ventos eram ainda o bálsamo apaziguador.
Tomo um álcool fortíssimo que me violenta
as entranhas com um vómito grotesco
e abro as narinas para a brisa salgada
que vem dos lados em que a claridade mortiça
cega atrozmente as aves de arribação
que hão-de partir para outras paragens
mais dóceis que esta provação infinita.
O céu despeja no horizonte brilhos e sons inefáveis, crispa
os fugazes navios que demandam a salvação, dissipa
as últimas nuvens que lentamente se transformam
em minúsculos grãos de fogo
que infectam os ares com os silvos agudos que produzem
na queda.
Atrás de mim, a grande mão das coisas
levita suavemente pela escuridão da cidade,
arrastando pelos cabelos a cabeça degolada do último profeta
que em vão invocou o teu nome antes que a trombeta soasse
e a perdição fosse total e definitiva:
– " Não sou deste lugar e o meu reino é outro."
Sob o meu olhar desolado um cisne
inscreve na neblina a dúvida insolúvel,
penso em ti,
o mar imortal da nossa redenção,
o efémero mistério da eternidade
que salva e castiga.

13.

Onde o vento não cessa revejo as árvores
da infância e toco o anjo fascinante
de um selo antigo da Lituânia. A meu lado,
a mulher cinge a clâmide branca e é um ser alado
com as sandálias de esparto no chão cintilante.
À esquerda, na calle Portugal, um edifício
está em chamas. Os homens
depuram o fogo e a alquimia produz
uma passagem para outro lugar. A manhã
revela a epifania das coisas, a imortalidade
da alma perante o mistério sagrado da brancura, o olhar
cúmplice porque me encontro e me perco
na graça do enigma. Por uma palavra e os teus olhos,
transponho esta fogueira, vacilo, colho a flor
translúcida intensamente azul onde a vidência se fixa
para sempre,
olho nos olhos a Virgen de la Veguilla e peço para voltar,
entrego o coração, celebro a luz, alcanço a transparência.

16.

A fotografia antiga captou
duas personagens que nos fitam atónitas
e uma rapariguinha
preocupada com o destino da Samoa Ocidental,
sua primeira terra.
Num leve movimento de sombra
a rapariguinha pode surpreender-nos
e de repente crescer e perguntar
onde começa e acaba a peregrinação.
Porque lhe respondemos invariavelmente
que a nossa vida é a Samoa Ocidental
ela pode sorrir pela primeira vez
na fotografia
e escrever connosco um poema
sobre a Samoa Ocidental.
No âmbito do poema
e da fotografia
a Samoa Ocidental
é a cumplicidade
com que a rapariguinha sorri
e connosco regressa à Samoa Ocidental,
seu último refúgio
no subtil estremecimento da fotografia.

18.

Regresso a Haaparanta pelas cinco da tarde
para o kaamos, a grande noite finlandesa
onde Inja entrega ao artesanato do espírito
a nostalgia imensa das florestas
onde as renas transitam para a perene distância
da eternidade.
Em Poorvo, empolgo a viagem com o sabor amargo da cerveja
e o sonho da rapariga que o destino entregou
ao silêncio de uma esplanada deserta
onde o sol prenuncia o frio secular de todos os eclipses.
Algures, no mundo, alguém medita
sobre os múltiplos fenómenos da erosão,
a ínfima fragilidade da terra, esses lugares
onde uma fita amarela assinala
o dom do apaziguamento e da morte, a soturnidade,
o pavor pelo movimento ascencional da vida
perante a dor e a luz. De passagem por Vaasa,
revejo o rosto vertiginoso da tempestade, penso
a serenidade que a todos redime pela predestinação, os dedos
crispados sobre o tampo da mesa onde se transaccionam
as inúmeras singularidades do medo, o dilaceramento, o engano
de querer vislumbrar as estrelas com os olhos em terra,
a amargura
expandindo-se para além do limite, o desabrigo dos portos.
Nas minhas costas, um choro obscuro prolonga-se pela noite,
persegue-me desde Espanha, recorda-me
a irrequietude solar de Ángeles, que desafia
os elementos e a luz, um pássaro
em fuga para além do infinito, o enigma
perdido, o rastro da salvação,
os ossos e os túmulos
dos que nos percederam
na paixão da viagem.

(Publicadona revista Nova Renascença, nº. 60/63. Fragmentos)



W.H. AUDEN FICCIONA SOBRE CHRISTOPHER ISHERWOOD

1.
Ignoro o paradeiro de Christopher Isherwood,
há muito que o outro lado do muro do internato o fascinava,
muitas vezes me perguntou que poderia pensar-se
da separação das águas e também pelas ignotas terras
do mundo e sobre quais seriam as melhores embarcações
para atravessar o mar. Não raro o observei a perscrutar
o infinito, cada noite procurava uma determinada estrela
no firmamento, enquanto fazia rodar a caneta
entre os dedos a uma velocidade inverosímil, uma velocidade
que me deixava atónito. – " Wystan, você acredita
na grande máquina? ". E ficava
a olhar além do vazio, além de tudo, como se a existência
fosse algo bem mais significativo que o tédio intensíssimo
de todos os fins de tarde e a dúvida apenas esboçada
no seu rosto fosse o único objectivo da sua vida. – " Wystan,
não tenho notícias de Manchester há cinco meses, é bem
provável que tal sítio do mundo já não exista." E ficava a olhar
o verde brilhante que inundava os limites da janela
do nosso quarto comum. Esta manhã saiu cedo, não havia
qualquer sussuro que me pudesse ter despertado mas ouvi-o
a saltar da cama cautelosamente e a fechar a porta
com suave gentileza. – " Wystan, hoje não teremos
um pequeno-almoço delicioso ", disse, entredentes,
e partiu para sempre ainda mais só do que me habituei a vê-lo,
recordando talvez Manchester ou alguma escuna branca
que tivesse sonhado nessa mesma noite e o tivesse levado
mais longe, a regiões mais vastas,
do que esta infernal preparação para o precário mercado
de commodities.

2.
Vim a saber que lhe bateram com uma correia de transmissão
quanto tinha oito anos e que sempre que aceita um desafio
é como se voltasse a esse tempo de surda revolta. Compreendo
que se sinta infeliz, mais a mais tendo outras pérfidas
recordações a persegui-lo,
vitimou-o a morte da avó com essa tristeza imparável,
onde entra irradia uma premonição de algo que irá desabar
e uma corrente de ar gelado que é impossível conter.
Também soube que perdeu os pais muito cedo, num incêndio,
ao que creio,
essas tragédias abatem-se sobre nós e não nos atrevemos a olhar
para trás sem que algo estale dentro da cabeça, uma explosão
no espírito que faz com que inclinemos a cabeça para o peito
e uma pequena barragem se levante para a lágrima que ameaça
chorar
enquanto o estremecimento atravessa o corpo e se prolonga
além do olhar com o poder de transfigurar a realidade
e nos devolver
a esse passado avassalador onde tudo aconteceu. Presumo
que o fascínio tem desses sedimentos, as marcas indeléveis
acossam a memória e tudo é irremediável, fugaz
mas irremediável, uma fita de imagens lentíssimas
desenrola-se sob os olhos,
amplia-se na distância do tempo, é uma dor mais forte
que não dói já, mas há-de continuar a doer além do imaginável,
além dos ossos,
além da morte,
além do feroz instinto de prevalecer.

3.
Estou agora professor de poesia em Oxford
e o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar,
se me olho ao espelho coro de vergonha
pela traição a que me submeti,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar.

A poesia não me desobriga da vida
mas o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar,
desde a infância que me comovo com as estrelas,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar.

Onde quer que vá neste espaço exíguo lembro-me
que o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar,
ele estava fascinado pelo que havia além do muro,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço
inter-estelar.

(Publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias , nº. 640)

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