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Armindo Magalhães


Armindo Magalhães. Foto de Cristina Magalhães, 2000

Armindo Magalhães nasceu em Fafe em 1966. Professor universitário. Foi Presidente da Associação de Jovens Escritores de Portugal de 1990 a 1994. Juntamente com José Saramago, Luís Francisco Rebello e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura. Natália Correia definiu-o como "o escritor da possessão do sentimento". Publicou as seguintes obras: Ausência Presente (1987), Braga, Correio do Minho; Regresso Apressado (1989), Braga, Correio do Minho; Sexta-feira Noutra Cidade (1990), Braga, Correio do Minho; Os Trilhos (1991), Lisboa, Edições Orpheu; Dois Pássaros Sobre um Homem (1992), Lisboa, Edições Orpheu; O Homem que Queria Outro Destino (1994), Braga, Fundação Lopes de Oliveira; Perfeição dos Simples (1998), Porto, Giesta Editores; Para Nunca Mais (1999), Porto, Giesta Editores; Enquanto És (2000), Porto, Giesta Editores.



ENQUANTO ÉS

três postais para Msuasy

1. nítida a tua mão
sobre esta noite que nos segue
e consente o sossego dos corpos

e somos enquanto somos
a respiração tardia nocturna
e o silêncio possível da boca

dizes-me com os dedos
devemos estar a atravessar o rio
que nos separa de todas as noites
quando te aproximas e me dás
a claridade da noite mais escura

2. digo-te não conheço a penumbra
destas mãos que te acariciam o cabelo

digo-te

3. vem até ao mar dizes
e eu sei que vamos
o mar é já ali
quando me dás a mão
e vamos passear pela tarde

a sós

o lápis sobre o papel
como a noite sobre mim

e vamos a caminho
da claridade até ser dia


PARA NUNCA MAIS

E vou até lá. Até ao lugar que ambos habitámos em busca dos rastos e dos restos. E aqui estou. Com tudo o que sou. Com tudo o que somos. E grito, S.... E deixo-me ficar, sem, até que. Perscruto esta praia imensa, desértica. O mar que vem molhar-me os pés. E aqui fico até que a noite me roube a cor deste mar azul agora quase verde, feito de um tempo difícil. A solidão não me abandonou. Sou feliz infeliz porque perscruto esta praia imensa. O mar que vem molhar-me os pés. É inquietante sentir o que eu sinto, como eu me sinto, explico-me melhor, sinto-me parte desta força do mar que vem alegre morrer alegre aos meus pés. Como noutros tempos, os da felicidade quase plena e perfeita. Estes pés antigos que já calcorrearam outras terras algumas delas sem nome. E aqui fico deixando que o mar invada os escombros do meu passado. Só o mar me conhece, nunca lhe virei as costas, mesmo sabendo que outras margens, outros lugares aguardam a sua natural cerimonial passagem. A areia. Fina. Venho aqui quase todos os dias, à tardinha, restituir-me perante a minha precaridade. Sempre levei uma vida encenada. Habituaram-me, não, obrigaram-me a ser obediente aos ponteiros dos relógios, não importa a marca. É outra das coisas das quais não quero falar agora. Mais tarde talvez. Diante deste mar imenso decorre a todo o momento o meu julgamento. As vísceras. Um mundo que hoje se resume ao que trago nos olhos, depois de S., depois de tudo. Vi o que vi. Vejo o que vejo. Apenas este mar. Este mar e esta praia imensa são o meu actual fascínio depois de ti, depois de tudo. Não, não me sinto perseguido, talvez abandonado?, também não, talvez, não sei, talvez. Nem sequer adulado. Nem sequer. Apesar de tudo ainda respiro, ainda dou corpo a esta alma que palpita. Há anos, há muitos anos, que o mundo, este que vi e vejo, deixou de ser adulado pela minha perversidade. Desde que S., não quero falar disso, porra. Estou farto do mesmo assunto, Estou, sou neurótico obsessivo-compulsivo, sofro de ansiedade fóbica, psicastenia, e outras patologias, não é doutor F.-M.?, A memória não guarda outra coisa. Tu eras o mundo, este mar e esta praia imensa. Por isso aqui estou para me restituir agora que a tardinha adormece nas minhas mãos. É certo. Vivi acossado e molestado por um destino. Acreditas no destino? Claro, pois, claro que acredito.



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