Projecto Vercial

Pêro Vaz de Caminha


A primeira missa celebrada no Brasil

Pêro Vaz de Caminha (1437-1500) nasceu no Porto e faleceu em Calecut, na Índia. Exerceu o cargo de mestre da balança no Porto e foi escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. Terá sido assassinado pelos mouros em Calecut. Ficou conhecido pela carta que dirigiu ao rei D. Manuel datada de 1 de maio de 1500, onde relata o «achamento» do Brasil. A carta foi descoberta na Torre do Tombo em 1773 por José de Seabra da Silva, tendo sido publicada por Aires do Casal na Corografia Brasílica em 1817. Jaime Cortesão publicou-a em fac-símile em 1943.

Outras ligações sobre o autor:

  • A Carta de Caminha: História ou Ficção?


    CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA A EL-REI DOM MANUEL

    (extractos)

    Senhor

    Posto que o capitão-mor desta Vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta Vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, inda que, para o bem contar e falar, o saiba pior que todos fazer.

    Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, a qual, bem certo, creia que por afremosentar em afear haja aqui de pôr mais do que aquilo que vi me pareceu.

    Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter esse cuidado. E, portanto, Senhor, do que hei-de falar, começo e digo que a partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de Março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achámos entre as Canárias, mais perto da Grã Canária. E ali andámos todo aquele dia, em calma, à vista delas, obra de três ou quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às 10 horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, isto é, da ilha de S. Nicolau, segundo dito de Pêro Escolar, piloto. E a noute seguinte, à segunda-feira, quando lhe amanheceu, se perdeu da frota Vasco d'Ataíde, com a sua nau, sem aí haver tempo forte nem contrairo para poder ser. Fez o capitão suas diligências para o achar, a umas e a outras partes, e não apareceu mais.

    E assim seguimos nosso caminho por este mar, de longo, até terça-feira d'oitavas de Páscoa, que foram 21 dias d'Abril, que topámos alguns sinais de terra, sendo da dita ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas, os quais eram muita quantidade d'ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho e assim outras, a que também chamam rabo d'asno.

    E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d'um grande monte, mui alto e redondo, e d'outras serras mais baixas a sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo, acharam 25 braças e, ao sol-posto, obra de 6 léguas de terra, surgimos âncoras em 19 braças - ancoragem limpa. Ali ficámos toda aquela noute. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra e os navios pequenos diante, indo por 17, 16, 15, 14, 13, 12, 10 e 9 braças até meia légua de terra, onde todos lançámos âncoras em direito da boca d'um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às 10 horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista d'homens que andavam pela praia, obra de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro.

    Ali lançámos os batéis e esquifes fora e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor e ali falaram. E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho, para ver aquele rio. E tanto que ele começou para lá d'ir, acudiram pela praia homens, quando dous, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali 18 ou 20 homens pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhe fez sinal que pusessem os arcos. E eles os puseram.

    Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente lhes deu um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas d'aves, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio, e outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer d'aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder deles haver mais fala, por azo do mar.

    A noute seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus e especialmente a capitana. E à sexta, pela manhã, às 8 horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados pela popa, contra o norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde ficássemos para tomar água e lenha, não por nos já minguar mas por nos acertarmos aqui.

    E quando fizemos vela seriam já na praia, assentados junto com o rio, obra de 60 ou 70 homens, que se juntaram ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e que se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

    E sendo nós pela costa obra de 10 léguas donde nos levantámos, acharam os ditos navios pequenos um arrecife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobre eles. E um pouco ante sol-posto amainaram obra d'uma légua do arrecife e ancoraram-se em 11 braças.

    E sendo Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou em uma almadia dous daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco e 6 ou 7 setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas e não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noute, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

    A feição deles é serem pardos, maneira d'avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto.

    (...)

    O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar d'ouro mui grande ao pescoço. E Sancho de Toar e Simão de Miranda e Nicolau Coelho e Aires Correa e nós outros, que aqui na nau com eles imos, assentados no chão por essa alcatifa. Acenderam tochas e entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Um deles, porém, pôs olho no colar do capitão e começou d'acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia aí. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram dele menção. Mostraram-lhes uma galinha, quase haviam medo dela e não lhe queriam pôr a mão e despois a tomaram como espantados.

    (...)

    E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz para ser melhor vista. E ali assinou o capitão onde fizessem a cova para a chantar. E, enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, abaixo do rio, onde ela estava. Trouvemo-la dali com esses religiosos e sacerdotes diante, cantando, maneira de procissão. Eram já ai alguns deles, obra de setenta ou oitenta, e quando nos assim viram vir, alguns deles se foram meter debaixo dela a ajudar-nos.

    Passámos o rio ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ser, que será do rio obra de dous tiros de besta. Ali andando nisto, vieram bem cento cinquenta ou mais.

    Chantada a cruz com as armas e divisa de Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Anrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram connosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco e alçaram as mãos, estando assim até ser acabado. E então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos em joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos, com as mãos levantadas e em tal maneira assossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. Estiveram assim connosco até acabada a comunhão. E, depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros.

    Alguns deles, por o sol ser grande, em nós estando comungando, alevantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, ficou ali com aqueles que ficaram. Aquele, em nós assim estando, ajuntava aqueles que ali ficaram e ainda chamava outros. Este, andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar e depois mostrou o dedo para o céu, como que lhes dizia alguma cousa de bem; e nós assim o tomámos.

    Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva. E assim se subiu, junto com o altar, em uma cadeira e ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando em fim da pregação deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso que nos causou mais devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram, estavam, assim como nós, olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes d'estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço, pela qual cousa se assentou o padre frei Anrique ao pé da cruz e ali, a um e um, lançava sua, atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.

    E isto acabado, era já bem uma hora depois de meio dia, viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o céu e um seu irmão com ele, ao qual fez muita honra, e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.

    E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra cousa para ser toda cristã que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que se Vossa Alteza aqui mandar quem mais entre eles de vagar ande, que todos serão tomados ao desejo de Vossa Alteza. E para isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé pelos dous degradados que aqui entre eles ficam; os quais ambos hoje também comungaram.

    Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse e puseram-lho darredor de si. Porém, ao assentar, não fazia memória de o muito estender para se cobrir. Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal que a d'Adão não seria mais quant'a em vergonha. Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive, ensinando-lhes o que para sua salvação pertence, se se converterão ou não.

    Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a cruz e espedimo-nos e viemos comer.

    Creio, Senhor, que com estes dous degradados, que aqui ficam, ficam mais dous grumetes, que esta noute se saíram desta nau, no esquife, em terra fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.

    Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Traz ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra, por cima, toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia parma, muito chã e muito fremosa; pelo sertão nos pareceu do mar muito grande porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra.

    Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro; nem lho vimos. A terra, porém, em si, é de muitos bons ares, assim frios e temperados como os d'Antre Doiro e Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém o melhor fruito que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria, quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, isto é, acrescentamento da nossa santa fé.

    E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E se algum pouco alonguei, Ela me perdoe, ca o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo.

    E pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de S. Tomé Jorge d'Osoiro, meu genro, o que d'Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.

    Deste Porto Seguro, da Vossa ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500.



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