Projecto Vercial

Pinheiro Chagas


Pinheiro Chagas

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas nasceu em Lisboa no dia 13 de Novembro de 1842 e faleceu na mesma cidade no dia 8 de Abril de 1895. Frequentou o Colégio Militar, a Escola do Exército e a Escola Politécnica. As suas obras tiverem êxito imediato, êxito este que não se repercutiu após a morte do autor, sendo praticamente esquecido. Para isso muito contribuíram as polémicas entre ele e Eça de Queirós.

Obras: Poesia – Anjo do Lar (1863); Poema da Mocidade (1865). Ficção – Tristezas à Beira-Mar (1866); A Flor Seca (1866); Os Guerrilheiros da Morte (1872); A Corte de D. João V (1873); O Terramoto de Lisboa (1874); As Duas Flores de Sangue (1875); A Mantilha de Beatriz (1878). Teatro – A Morgadinha de Valflor (1869); Deputado de Venhanós (1869); A Judia (1869); À Volta do Teatro (1868); Madalena e Helena (1875); Quem Desdenha (1875). Obras de história e de crítica – Ensaios Críticos (1866); Novos Ensaios (1867); Portugueses Ilustres (1869); História de Portugal (8 volumes – 1869-1874); História Alegre de Portugal (1880); Migalhas da História de Portugal (1893).




AS DUAS FLORES DE SANGUE

I


O JANTAR DE DESPEDIDA

Há na história do nosso país uma particularidade, que dá logo na vista a quem segue com olhar atento as diferentes fases da nossa existência política. É a perfeita indiferença com que sempre olhamos para os grandes acontecimentos da Europa, o cuidado com que desviamos constantemente os olhos desse grande foco do movimento humanitário, e a surpresa que também sempre nos acometeu quando sentimos o efeito terrível das tempestades de que nos não soubemos resguardar.

Temos protestado tacitamente contra o acaso geográfico que nos fez povo da Europa, sem nós termos por fim de contas tendências europeias.

Senão veja-se.

Nos tempos da nossa grandeza, quando o leão do Ocidente, estendendo as garras por cima do Atlântico, segurava numa delas, fremente e subjugado, o opulento Indostão, e com a outra doma' as convulsões desesperadas da hiena marroquina, tínhamos por acaso na Europa a influência que nos deviam dar os imensos recursos que as nossas conquistas nos subministravam? O oiro da África e da Ásia prestou a D. Manuel os serviços que o oiro americano prestou a Carlos V? O imenso comércio das Índias deu-nos por acaso na Europa a influência marítima, que tinha dado outrora à república veneziana?

Não, a opulência portuguesa só se revelou por essa inútil fanfarronada da embaixada de Tristão da Cunha!

Enquanto nós olhávamos distraídos para Goa e para Ormuz, Carlos V e Filipe II, mais europeus, consideravam como meio o que para nós era fim, e aproveitavam os feitos de armas de Cortez e de Pizarro para estenderem a sua influência e o seu poderio.

E ficámos espantados quando esse colosso, que tínhamos deixado pacientemente crescer ao nosso lado, nos absorveu de um trago!

Quando em 1789 o vulcão revolucionário abalou o solo da França e devorou de repente todo o regímen feudal, a Europa monárquica agitou-se e viu com terror as lavaredas incipientes que iluminavam o povo devorando o trono, enquanto não devoravam milhares e milhares de vítimas inocentes.

Em Portugal, enquanto Luís XVI e Maria Antonieta eram presos em Verennes, e voltavam à capital escoltados pelos gritos de morte dos seus vassalos rebeldes, a senhora D. Maria I confessava-se e comungava, ia dar a sua volta às Caldas da Rainha, e o príncipe seu filho aprendia cantochão com os devotos frades do real convento de Mafra!

É verdade que os seus fiéis súbditos professavam também a mesma estóica indiferença!

Em Paris o marquês de Lafayette sacrificava à ideia liberal da monarquia representativa o seu nome e o seu valimento de cortesão, o conde de Mirabeau, gigante da tribuna, fazia baquear o trono ao som da sua voz, como outrora as muralhas de Jericó baquearam ao som das trombetas sagradas, o marquês de Favras abria na forca a imensa lista que se devia continuar na guilhotina, o marquês de Bouillé, tentava, com uma audácia e dedicação cavalheirescas, salvar o neto de Luís XV e a filha de Maria Teresa; todos enfim sacrificavam, uns a sua posição à ideia santa da liberdade que alvorecera, outros a sua vida à ideia veneranda da realeza que se sumia no ocaso.

E em Portugal?

Em Portugal o conde de Vila Nova acompanhava o Santíssimo, tocando a campainha; o marquês de Marialva passava três horas à espera de sua majestade; o duque de Cadaval dançava com as costureiras francesas; o conde de Vila Verde, rodeado de padres, contemplava da janela as procissões; e os outros figuravam na procissão do Corpus Christi; ouviam, no locutório do convento das Salésias, as hipócritas parlendas do douto padre Teodoro de Almeida, e iam à Rua dos Condes admirar as visagens descompostas das pastoras masculinas que figuravam no tablado do teatro nacional.

D. Jaime de Noronha, conde de Esposende, não participava da indiferença que os fidalgos portugueses de então professavam pelas ideias liberais que despertavam em França. Alguns volumes truncados de Rousseau, atravessando sub-repticiamente as fronteiras, tinham ido parar às mãos do moço fidalgo; e, lidos às escondidas do seu aio e confessor, haviam exaltado a imaginação de D. Jaime, fazendo com que ele acariciasse, a ocultas de todos, esplêndidos sonhos de regeneração social. Ninguém suspeitava das leituras furtivas do herdeiro da casa de Esposende, e o velho marquês, seu pai, homem rígido e inflexível, não imaginava que a educação esmerada, que mandará dar a seu filho, tivesse, como tinha, um complemento democrático.

Não porque o marquês de Esposende passasse também a sua vida em beatérios e genuflexões de cortesão. Espírito elevado e inteligência cultivada, contemplava com tristeza a torrente da filosofia, a qual, inundando e vivificando as classes populares, ervas mesquinhas que até aí tinham vegetado miseravelmente à sombra dos robles feudais, arrancava ao mesmo tempo os troncos caducos da realeza e da aristocracia. Percebendo perfeitamente que não havia resistir-lhe, o velho marquês lembrava-se com amargura do tempo em que a espada de um rico-homem era dique suficiente para as ondas da plebe, revoltas pelo vento de míseros motins.

A reunião dos estados gerais franceses, a altivez do terceiro estado, a adesão de uma grande parte da nobreza e do clero aos princípios democráticos proclamados pelo panfleto de Sieyés, o juramento do Jogo da Péla, a tomada da Bastilha, o regresso triunfal de Necker, a sessão nocturna de 4 de Agosto, a ida de Luís XVI para Paris, produziram um efeito completamente diferente no velho marquês e no moço conde.

Aquele espantava-se da cegueira dos monarcas europeus, que não esmagavam logo no princípio a hidra nascente das revoluções; este regozijava-se com a vitória dos princípios filosóficos, e lastimava não pertencer à nobreza de França para poder, como M. de Montmorency, fazer alegremente às ideias revolucionárias o sacrifício da sua riqueza e da sua hierarquia.

Percebendo que, por mais obstinadamente que Portugal se conservasse desviado do centro do progresso, haviam de chegar também cá raios fulgurantes do sol da liberdade, o marquês de Esposende tinha querido que seu filho juntasse aos privilégios do nascimento as prerrogativas da instrução. Por isso nenhum fidalgo da corte portuguesa podia rivalizar neste último ponto com D. Jaime de Noronha, cuja educação ia ser completada, no momento em que principiamos esta história, com uma viagem pela Europa.

Para solenizar a despedida do herdeiro da casa, tinha o marquês de Esposende reunido, no seu palácio de S. José de Ribamar, os parentes e amigos da sua nobre família. Nada se tinha poupado para dar honra à hospitalidade da casa dos Noronhas. Músicos da capela real, atraídos pelo oiro do marquês, faziam ouvir suaves concertos, enquanto os nobres senhores da corte de D. Maria I se entregavam às delícias da gastronomia. O serviço da mesa era feito com o mais esplêndido luxo e com o mais apurado bom gosto.

No momento em que entrámos sem ser convidados, coisa que nos não é proibida pelo rifão popular, porque o banquete não era nem de boda nem de baptizado, no momento em que entrámos chegava o festim à cena final.

Sobre as toalhas de finíssimo linho, entre os guardanapos ricamente bordados com brasões e flores, ostentavam-se salvas de prata de relevo admirável, carregadas de pratos de frutas, que espalhavam no ambiente da sala uma suave fragrância. As corbelhas de morangos gelados campeavam ao lado dos cestinhos de doces metidos em papel recortado, presente da abadessa da Esperança, próxima parenta da casa de Esposende. As finas compotas, resultado da indústria dos copeiros do marquês, misturavam-se com a marmelada feita pelas brancas mãos das freiras de Odivelas, desse convento de galanteadora memória.

O jantar, começado às quatro horas da tarde, tinha-se prolongado, e, apesar de se estar em !unho de I 791 , as sombras do crepúsculo tinham surpreendido os convivas, e tinham obrigado a acender as inúmeras velas de cera que serviam para a iluminação da sala. As luzes, cintilando nos cristais, fazendo brilhar em topázios e rubis líquidos os vinhos da Madeira e do Porto, iluminando com reflexos fantásticos os bordados caprichosos das casacas de seda dos cortesãos, davam à sala um aspecto maravilhoso.

No rosto dos convivas brilhava a animação resultante das frequentes libações. O bispo do Algarve, que honrara a mesa com a sua seráfica presença, tinha as bochechas nédias e morenas, revestidas senão do verniz de santidade, pelo menos do verniz da divindade... báquica. O olhar humedecido brilhava resguardado das vistas dos profanos pelos verdes óculos sacerdotais. O conde de Pombeiro, sentado junto do moço bispo, falava pelos cotovelos, tomava um ar de Mecenas olhando para o brasileiro Caldas, Virgílio mulato do ilustre conde, que, sentado humildemente na extremidade da mesa, procurava no fundo dos copos do generoso Madeira um epigrama que o vingasse das sátiras do ímpio Manuel Maria, como ele chamava ao harmonioso Bocage.

No meio da alegria geral os rostos do marquês e do conde de Esposende mostravam uma certa tristeza natural neste momento, mas que espantaria todos os que conhecessem o carácter enérgico do marquês e o ardente desejo de viajar que o moço D. Jaime alimentava.

No rosto do marquês revelava-se a tristeza sombria e opressora, que um vago pressentimento às vezes nos desperta. O rosto de D. Jaime mostrava uma inquietação febril e a tristeza impaciente de um coração cheio de mocidade, que não pode ou não sabe ainda suportar a mínima desgraça.

As janelas da casa de jantar deitavam para o rio. Ou fosse o desejo de se saborear com a vista do formoso Tejo, vista de que, durante muito tempo, ia ser privado, ou fosse outro motivo qualquer, D. Jaime de Noronha não despregava os olhos das águas do pátrio rio, onde se balouçavam indolentemente e de longe a longe alguns barcos.

Felizmente fez-se sentir quase debaixo da janela uma bulha de remos, e logo uma viva alegria iluminou o rosto de D. Jaime pouco antes tão tristemente inquieto. O marquês olhou para ele, sorriu-se, e depois, levantando-se, deu sinal de finalizar o banquete.

– Se lhes apraz, meus senhores – disse dirigindo-se aos convivas -, vamos até às varandas ver o desembarque de meu irmão, que, se me não engano, acaba de chegar.

Todos acederam ao convite, e, precedidos pelo dono da casa, foram encostar-se aos parapeitos para presenciar o desembarque do irmão do marquês de Esposende.

Quando chegaram, estavam saltando em terra dois frades robustos, cujos hábitos contrastavam com os rostos asselvajados dos venerandos monges. Atrás deles desembarcou um figurão alto e gordo, corado, de voz possante, conservando com todo o rigor o trajar do tempo de D. José, e dando o braço a uma formosa menina, a qual, permitam-me a comparação, parecia uma pomba esvoaçando familiarmente ao lado dum javali.

– Boas tardes, mano marquês – bradou o robusto fidalgo, assim que viu aparecer na janela os convidados –, venho a arrebentar com fome. Passo por debaixo da mesa, hein? Não pude resistir à tentação de assistir a uma touradazita, que os meus campinos do Ribatejo me quiseram apresentar, e não me lembrou a festa cá de casa. Adeus, Jaime, adeus, meu rapazola, então vai-se girar lá por essas terras! Vais ver esses hereges malditos, que nem sequer sabem apanhar um boi à unha! Sempre queria que estivesses hoje na tourada! Aquilo é que eram bois claros, de fogo na venta! Davam tão boas sortes, que teu tio não pôde resistir à tentação de saltar para cima dum cavalo e de ir picar um touro. Senhor bispo do Algarve, beijo os pés de vossa excelência, e peço-lhe a sua sagrada bênção – continuou o palrador curvando-se respeitosamente. – Seja louvado e adorado o Santíssimo Sacramento. Amen.

Persignou-se devotamente, e depois continuou:

– Oh! conde de Pombeiro, por cá! Trazes contigo o homem das modinhas, o Caldas da viola? Ah! lá o vejo! lá o vejo! bor dias, meu amigo, aqui lhe trago um confrade.

E depois, voltando-se para um homúnculo roliço, vestido de cetim preto, que saíra do bote com um rolo de papéis debaixo do braço:

– Olá! salta um chorritho de sonetos e é dar honra à casa de D. Tomás de Noronha, senão mando-o a você e mais a musa com um pontapé travar conversa com as ninfas do Tejo, como vocês dizem, sôs orates.

Não havia que replicar a tão peremptória intimação e Deus sabe o que teriam que aturar os pobres ouvidos dos convidados do marquês, se este não bradasse:

– Deixemo-nos disso, tagarela. Sobe, anda que tenho pressa de te apertar a mão, e de dar um beijo na minha gentil sobrinha, na minha formosa Inês.

Daí a pouco fazia o Sr. D. Tomás de Noronha a sua entrada triunfal na sala do banquete, arrombava amigavelmente com um robustíssimo abraço as costelas do seu mano, sumia nas mãos agigantadas a mãozinha quase feminina de D. Jaime e saudava com um vozeirão, que lhe seria invejado pelo famoso pregador frei João Jacinto, o resto da companhia.

Inês, que viera quase pendurada do braço paternal, beijou ternamente seu tio, cumprimentou, fazendo-se muito corada, o primo viajante e depois, encostando-se ao parapeito da janela, enquanto as outras pessoas se sentavam à mesa ou em torno dela se agrupavam, para fazerem companhia a D. Tomás, entregou-se à suave contemplação das águas do Tejo, sobre as quais a lua, que se erguia majestosa no azul horizonte, desdobrava um rico manto prateado.

– Doa tourada! guapa tourada, com mil demónios! – bradava entusiasmado D. Tomás de Noronha, acompanhando o discurso com frequentes libações e dando provas ao mesmo tempo de um apetite devorador – ainda não vi bois tão valentes desde a célebre tourada de Salvaterra, em que levou o diabo o conde dos Arcos... Tu não te lembras disso, Jaime? pudera, como te havia tu de lembrar, se foi no tempo desse negregado marquês de Pombal, que Deus tenha por muitos anos nas profundas do inferno a conversar com o diabo! Ó senhor bispo do Algarve, não se zangue por eu ter sempre na boca o nome do inimigo. Prometo dar este ano um vestido novo à Senhora do Cabo e um resplendor ao menino Jesus, coisa de se ver e que não envergonhe o nome de D. Tomás de Noronha. Hei-de fazer penitência e já lhe assevero que não torno a pronunciar o nome do anjo rebelde. Mas, como eu te ia dizendo, Jaime... espera, espera... onde diabo se meteu aquele maldito?

– E essa ideia entristece-a? – perguntava D. Jaime em voz baixa à formosa prima, encostando-se também ao parapeito da janela.

– Não sei, primo. Diga-me: será pecado ter sempre no pensamento o nome de um homem? balbuciá-lo, até de envolta com as orações? Eu receio ofender a Deus...

– Ó demónio – trovejou o vozeirão de D. Tomás – pois tu pões-te a conversar com tua prima e deixas-me ficar no meio da história? E tu, Inês, não vens jantar?

– Obrigado, meu pai, não tenho vontade – respondeu balbuciando a tímida donzela.

– Eu não sei como vocês fazem isso, vivem sem comer. Pois, como eu te ia dizendo, Jaime... anda para aqui, homem, senta-te ao pé de mim... foi tourada boa deveras! que pena tenho de ti, meu sobrinho – acrescentou D. Tomás melancolicamente -; ires tu por essas terras fora, sem poderes pregar uma farpa num boi, sem ao menos veres uma tourada! Pobre rapaz!

– E tem razão, meu tio, hei-de sentir vivas saudades da minha pátria. As novidades que encontrar em terras estrangeiras, não me hão-de fazer esquecer o que me vejo obrigado a deixar.

E levantou os olhos para o sítio onde conversara com sua prima, porém, com grande espanto seu, não divisou junto da janela o perfil gracioso da encantadora Inês. Desde então foram perdidas para ele as palavras sentenciosas do tio D. Tomás; só vagamente percebeu que o bom do fidalgo chegara, por uma transição um tanto escabrosa, a dar-lhe óptimos conselhos sobre picaria. Felizmente o pai de Inês lembrou-se de impugnar o método do marquês de Marialva; a este desacato de equitação pularam indignados o conde de Pombeiro e um velho fidalgo primo dos Esposendes. A discussão correu tempestuosa, mas sumamente instrutiva e comfesso que não percebo como D. Jaime, em vez de escutar e de admirar os mestres, se aproveitou da ocasião para fugir da sala e ir, guiado por esse instinto dos namorados que nunca os engana, parar ao jardim do palácio.

A lua iluminava com os seus pálidos raios as estátuas pagãs, os tanques de mármore e as ruas de buxo do vasto jardim. Ao longe no Tejo a casta Diana parecia ter sacudido o seu manto sobre as águas, deixando cair milhões de pérolas, que brincavam à superfície. Não corria uma aragem e o silêncio do jardim, a serenidade dessa noite luminosa, contrastava de um modo notável com o ruído da sala do banquete.

O conde D. Jaime cedeu involuntariamente ao doce encanto da tranquilidade. Era esse o porto donde ia sair pela primeira vez, para seguir viagem no proceloso mar da existência. Esse anjo de asas brancas, anjo impalpável que se chama felicidade, não ficaria ali escondido por trás dessas estátuas sossegadas, enquanto ele ia procurá-la no turbilhão do mundo?

Pensando assim, o moço conde tinha afrouxado o passo; encostou-se a uma estátua de Vénus e ficou-se a mirar silencioso a sombra que o luar projectava no chão da rua. Lembrou-se da cena instantânea que se tinha passado junto da janela do salão e suspirou.

Respondeu-lhe um outro suspiro, suspiro tão ligeiro que se diria ter sido soltado pelos lábios de mármore da estátua pagã.

Mas ao mesmo tempo uma outra sombra cruzou-se entre as da estátua de D. Jaime e um vestido branco roçou ao de leve pelo corpo do mancebo.

– Inês! – murmurou ele.

– Primo!

– Foi Vénus que desceu do pedestal? – perguntou o conde sorrindo.

– Galanteios, primo?

– Verdades, formosa Inês!

– Aqui está porque as damas não acreditam nos homens. Julgam-se obrigados a dizer madrigais destes a todas as senhoras, de maneira que nós nem podemos distinguir o amor verdadeiro do cumprimento banal. Ora diga-me – continuou ela um pouco enfadada – porque foi agora incomodar Vénus? Quando o encontrei estava meditando acerca da mitologia?

– Diz bem, prima; foi o espírito que atraiçoou o coração. Esta linguagem insípida dos poetas contemporâneos não serve para exprimir os verdadeiros afectos da alma. Não foi nesse estilo que Saint-Preux escreveu a Júlia as suas cartas imortais.

– Ai, primo! – tornou Inês melancolicamente – quem se poderá fiar nos seus juramentos, se a luz do amor que brilha nos seus olhos é bem ténue ao pé das labaredas da sua imaginação, labaredas que alimenta constantemente com essas perigosas leituras? Diga-me' para que lê o primo essas obras estrangeiras, que põem em perigo a sua alma e perturbam o seu repouso?

– Engana-se, prima – tornou Jaime com um ligeiro movimento de impaciência – os livros de Rousseau, do eremita de Ermenonville, são as mais sublimes manifestações da ideia de Deus. A sua leitura deleita a alma e tranquiliza o espírito.

– Que heresia! O primo nem receia a Santa Inquisição, nem teme lançar a sua alma no fogo do inferno, lendo os livros desses amaldiçoados que insultam o seu rei e ofendem o seu Deus?

– Não sei realmente – respondeu Jaime com um tom um pouco desabrido, por causa dessas pieguices devotas, que ofendiam as suas ideias filosóficas – não sei realmente como a prima fala em coisas que não entende.

– Tem razão – tornou Inês ofendida – sou uma pobre rapariga que não sabe senão o que sua mãe lhe ensinou: ser boa, amorável, temente a Deus e respeitadora das santas crenças de seus pais. É pouco, não é verdade? A quem lê esses livros, onde as heroínas falam a elevada linguagem das paixões romanescas, deve parecer bem sem-sabor uma donzela, que só sabe dizer o que o seu coração lhe dita e amar deveras, oh! bem deveras! um ingrato que lho não merece. Também que me importa – continuou a pobre menina sem poder conter as lágrimas e desatando a chorar perdidamente – vá viajar, esqueça-se de mim, apaixone-se por algumas dessas estrangeiras que lêem essas cartas de Júlia, enquanto eu só leio as minhas orações, e, depois de ter gasto o seu coração e a sua mocidade nesses amores fictícios, volte a Portugal e procure a sua prima, que a há-de encontrar ou na lousa de um túmulo ou nas grades de um convento.

– Oh, perdoa-me, Inês – balbuciou Jaime caindo-lhe aos pés e procurando desviar-lhe as mãos dos olhos chorosos – fui um louco, um infame, mas não chores. Pede-to quem tanto te ama.

– Deixe-me, o senhor é um... mau; já lhe não dou um presente que lhe queria dar.

– Louquinha! Prometendo eu arrepender-me sinceramente e não tornar mais a dizer coisas que te ofendam!...

– Promete? – acudiu Inês, desviando as mãos dos olhos e mostrando o seu rosto infantil inundado de lágrimas, onde principiava a despontar um sorriso, meigo íris do amor depois dessas tempestades deliciosas.

– Juro-o.

– Veja lá!

– Pelos teus olhos!

– Mau, também não sabe senão dizer finezas. Olha, Jaime continuou ela tirando do peito uma cruz de oiro esmaltada e lançando-lha ao pescoço – esta cruz foi herança de minha mãe; guarda-a por amor de mim...

– Nem um só instante me hei-de separar dela.

– E faz bem! herege como é, se não fosse esta cruz, como havia de resistir às tentações do demónio?

– Bastava-me para isso a recordação de um anjo.

– Aqui está a sua capa, senhor conde – bradou . uma voz grossa a pouca distância – pode-lhe fazer mal o sereno.

Inês soltou um grito e fugiu espavorida. D. Jaime, furioso, deu um pulo, e, ao levantar-se, viu diante de si com a cara mais ingénua deste mundo e estendendo-lhe a capa com um sorriso obsequioso, o seu desastrado interruptor.

Era um criado alto e magro, trajando a libré da casa de Esposende, de cara encovada, e nariz comprido e sorriso ingénuo aos cantos da boca. Se Lavater lhe observasse a fisionomia, conheceria logo o criado teimosamente serviçal.

– Quem te mandou cá vir, Vasco António? – bradou D. Jaime enfurecido. – Pediu-te alguém alguma coisa?

– Vossa excelência bem sabe que o dever de um criado é prevenir e adivinhar as ordens que há-de receber. Se o senhor conde fizesse essa observação a um criado novo, mas a mim, que sirvo a casa de Esposende desde que vossa excelência nasceu!

– Mas quem diabo te inspirou essa maldita ideia de vires ter comigo?

– Quando eu vi passar vossa excelência, formei logo tenção de lhe vir trazer a capa. Vossa excelência podia constipar-se e não há doença tão perigosa como uma constipação. O senhor conde é moço, não se importa com estas coisas, mas a mim, que tenho experiência, cumpre-me velar pela saúde de meus amos. Ponha vossa excelência a capa.

Conversando e discutindo, tinham-se posto ambos a caminho para o palácio; D. Jaime andando rapidamente para se ver livre das importunações de Vasco; este dando largas passadas sem alterar a gravidade do seu andar, o que lhe era permitido pelo comprimento das suas pernas, e estendendo a capa, a fim de aproveitar a ocasião propícia de a pôr nos ombros de seu amo. D. Tomás, se os visse, imaginaria que o bom do Vasco, possuído de súbito entusiasmo pela tauromaquia, queria passar à capa o conde de Esposende, que se esquivava ao divertimento.

– Mas quem te pede conselhos, com mil demónios? – continuava o conde.

– Ponha vossa excelência a capa, olhe que não se há-de arrepender. É Vasco António quem lho assevera.

– Vai-te com os diabos – bradou o conde exasperado.

– Jaime – disse uma voz sonora e firme ao lado deles.

O conde e o escudeiro seguiam um longo parreiral, que do jardim ia ter ao palácio. De trás de um dos pilares, que sustentavam a latada, saiu um vulto c a figura bem conhecida do marquês apareceu de repente ao pé dos dois discutidores.

– Jaime, tenho que falar contigo.

O conde inclinou-se e parou. Vasco, obedecendo a um gesto do marquês, continuou o seu caminho para o palácio, mas, ao passar por ao pé de D. Jaime, aproveitou a ocasião, lançou-lhe rapidamente a capa aos ombros, e, alargando as pernadas, pôs-se a distância o mais depressa possível, não sem resmungar por entre os dentes:

– Cabeças levianas! cabeças levianas! Se não fôssemos nós, os criados velhos, não sei que seria feito destes fidalgos!

O marquês, com uma das mãos metida na algibeira do colete e com a outra apoiada na bengala, esperou que Vasco António desaparecesse, e, depois, dirigindo-se a Jaime:

– Ouvi a sua conversação com sua prima, senhor conde!

– Meu pai! – balbuciou Jaime estupefacto.

– E dela concluí, além de muita pieguice, que o herdeiro da minha casa se tem deixado seduzir pelas ideias fatais do século em que vivemos.

– Eu, senhor marquês!

– Não o negue! bem sabe que o seu mestre Rousseau detesta principalmente a mentira.

– Não o negarei decerto – tornou D. Jaime, erguendo altivamente a cabeça – os apóstolos das grandes verdades não temem apregoá-las à face do mundo inteiro.

– E é um filho da casa de Esposende quem assim se exprime! disse o marquês amargamente. – Bem culpados fomos para que o Senhor nos fulminasse com os raios da sua cólera, permitindo que os legionários da legião aristocrática proclamem como virtudes a deserção das fileiras sagradas! Onde estão as tradições cavalheirescas da nossa raça? Onde o espírito que nos animava e que nos fazia formar em valorosa falange para rodear o sólio dos nossos reis? Dispersados pelo egoísmo os tripulantes da alterosa nau da monarquia, despedaçados os mastros pelo sopro do tufão da morte, que sobre nós arrojou o marquês de Pombal, esse baixel gigante, que desprendia as brancas velas, iluminadas esplendidamente pelo fulgurante sol da glória nacional, vai prestes a soçobrar nas ondas populares.

– Mas... – balbuciou Jaime, atónito da extraordinária veemência de linguagem do marquês.

– Tu vais viajar, meu filho – continuou o marquês adoçando um pouco a voz – e vais ver na França o fruto das utopias que proclamas. Fidalgo e cristão, verás o diadema de S. Luís pisado aos pés da plebe desprezível! Cavalheiro e português, presenciarás os infortúnios de uma rainha, da filha dos Césares, da bela e virtuosa Maria Antonieta. Vendo as tuas doutrinas proclamadas por esses tigres, hás-de envergonhar-te delas. E, se não tens pejo de ser colega de um marquês de Lafayette, e de um duque de Lauzun, hás-de corar de ser colega de Bailly e de Barnave, esses rebeldes plebeus.

Jaime calou-se. Aproveitando-se do seu silêncio e fingindo tomá-lo como adesão às suas doutrinas, o marquês beijou-o, e, dando-lhe o braço, dirigiu-se para casa.

Quando ali chegou, apertou-lhe a mão e disse-lhe:

– Vai-te despedir dos nossos convidados e vai-te deitar, que tens amanhã que te levantar cedo. Adeus! Lembra-te sempre de que és fidalgo e lembra-te de que és cristão.

Jaime ficou silencioso. Quando o marquês se retirou, dirigiu-se para a sala murmurando:

– Que estranho pressentimento me invade! Parece-me que se apaga de todo a lembrança do meu viver anterior e um novo mundo de ideias me entra na imaginação. Será o que Deus quiser.

E entrou na sala do banquete.

No dia seguinte partiu D. Jaime de Noronha com o seu aio para Itália, país por onde devia começar a sua peregrinação.


Pinheiro Chagas, As Duas Flores de Sangue



A FLOR SECA

AMOR!... AMOR!...

(MEMÓRIAS DE UMA MULHER CASADA)

Sentei-me com desalento numa cadeira, e deixei pender a cabeça nas mãos. Senti quando é horrorosa a soledade quanto se tem vinte anos e um coração ardente. Nessas noites de temporal, em que é tão suave a reunião familiar, via – me eu só, abandonada, entregue a todos os pavores que a solidão inspira, num aposento, que mais parecia túmulo de mortos que habitação de vivos. Era esse quarto o símbolo da minha existência, tal como o destino ma fizera, cárcere sombrio e lúgubre onde eu tinha que encerrar todas as aspirações da minha juventude, todo o fogo vital que me incendia o sangue.

Ergui a cabeça para respirar desafogadamente, porque esses pensamentos haviam – me oprimido o coração, e dei um grito de terror. Defronte de mim um vulto pálido mirava – me como que aterrado. Lágrimas silenciosas deslizavam – lhe pelas faces.

Era a minha imagem que se reflectia num espelho em que eu ainda não reparara. Sorri – me do engano; ergui – me e dirigi – me ao espelho. «Pois és tu, Margarida, – exclamei eu – és tu a criança descuidosa, que há pouco dançavas nos bailes com tão mimoso colorido nas faces? És tu a flor das salas? Como estás desbotada, rosa das valsas! Definhas à sombra; mas que sol te poderia reanimar?»

«O amor!» suspirou uma voz íntima, e o quarto iluminou – se com vagos e ignotos clarões, e a tempestade como que se acalmou por encanto, e a sua voz expirante balbuciou aos meus ouvidos: «O amor!» E as linhas do papel arredondaram – se também em graciosas curvas, e murmuraram: «Amor! amor! amor!» Voejaram no quarto invisíveis pombinhas cândidas, e eu ouvia – lhes o harmonioso bater das asas. O rosto, reflectido no espelho, desfranziu – se num sorriso, e expulsou as nuvens que lhe toldavam a fronte.

– Que loucuras! – balbuciei.

E levantei – me, peguei num castiçal, e dirigi-me à biblioteca a procurar um livro, que me distraísse o espirito destes perigosos devaneios.

A livraria era uma casa pequena, toda cercada de estantes, que vergavam ao peso de formidáveis infólio. Tirei ao acaso o primeiro volume que se me deparou. Era o segundo tomo dos Trabalhos de Jesus. Isso exactamente eu desejava. O túmulo prometia-me um admirável exorcista contra o demónio cor de rosa que ameaçava perseguir-me. Volte pé ante pé, e entrei no quarto. Coloquei o pesado alfarrábio à cabeceira do meu leito, e principiei a despir-me.

Já não ouvia gemer o vento, nem estalar a trovoada. Tive curiosidade de ver o aspecto da atmosfera e, meio despida, corri à janela e entreabri um postigo.

A janela deitava para o jardim. Cessara de chover, e a lua, filtrando os seus raios por entre as nuvens, banhava os canteiros no seu mágico fulgor. O vento abrandara, e transformara-se numa brisa suave, que agitava as folhas nascentes das árvores. Parecia-me assistir à transição do inverno para a primavera, e cheguei a pensar que esse momento era o momento exacto em que findava o reinado dos gelos, e principiava o das flores. A natureza, cansada da luta, deixava-se embalar no regaço da primavera, que surgia coroada de estrelas, e cintilante de poesia e de amor! Amor, sim; essa doce palavra vi-a claramente escrita no vidro em letras de prata por um raio luminoso, que se desprendeu languidamente do seio doa namorada Febe.

Cerrei a janela, e corri para o leito. Ao passar por diante do espelho, relanceei para ele a vista, e divisei um rosto que me sorria com os olhos banhados em vaga languidez. Involuntariamente escondi o seio com os braços cruzados, e, toda trémula e risonha, meti-me na cama, lançando logo a mão a ponderoso volume de Fr. Tomé de Jesus. Abri ao acaso e li:

«Ó amor divino, como prendes, quando na alma te acendes: como cativas, quando à alma descobres alguma parte da formosura de tua face divina! Sem te ver claramente a alma peregrina, só pelo que de ti a vida sente, e pode com tua graça experimentar, como fica livre de si e das prisões da terra, e cativa de ti, e presa de teu amor! Estas tuas amorosas e suaves prisões tanto a atam e possuem, que até dos corporais sentidos lhes mudas o gosto em ti, porque tudo lhe trazes sujeito à tua mão, e obediência do teu amor. Se quer dormir, tu a acordas, se quer descansar, a aguilhoas, se que comer, lhe tiras o sabor, se quer conversar , a apartas; toda a prendes, toda a queres, tudo lhe defendes; sempre amigo, sempre cioso; porque todo te dás, e toda a tomas; todo te entregas, e toda a prendes.»

Deixei descair o livro, cujas páginas rescendiam não sei que namorados eflúvios; sentia volitarem em torno de mim silfos e fadas, que pareciam, ocultos na sombra, segredar uns aos outros dulcíssimas harmonias. O clarão suave da vela parecia oscilar brandamente ao meigo e perfumado sopro desses habitantes do ar. As letras do livro eram outras tantas teclas, que suspiravam melodiosamente as mais voluptuosas árias de Bellini e de Rossini com letra de Fr. Tomé de Jesus. Fui cerrando os olhos, como se o fluído magnético, que enchia o quarto, me oprimisse as pálpebras. A vela estava quase expirando, e, nas vascas da agonia, projectava clarões fantásticos nas cortinas vermelhas do meu leito. Suspirei brandamente, fui-me deixando adormecer, murmurando a palavra: «Amor!... Amor!»


Pinheiro Chagas, A Flor seca




A MORGADINHA DE VALFLOR

SABES LÁ O QUE É O AMOR!...

LEONOR:

Oh! se tu soubesses como eu o amo... Bem vês que não me podes fazer esperar mais tempo... Deixa-me passar... Não te disse já que o amava?

MARIQUINHAS: colocando – se resolutamente diante da porta e endireitando – se com certa energia:

Ah! é muito! Também eu, minha senhora, também eu o amo!

LEONOR: – tomando – lhe as mãos e encarando – a longamente:

Tu!... (Largando – lhe as mãos de súbito, com uma inflexão desdenhosa e amarga). Criança, sabes lá o que é o amor! Lago que a brisa encrespa, e que já se julga oceano! (Tomando-lhe de novo as mãos). Amas? Deixa-me ver os teus olhos; incende-os a febre por acaso? Amas? Deixa-me ver o teu rosto; devasta-o a palidez funérea? Sabes o que são as longas insónias, as noites sem repouso, os dias sem distracção? Sabes o que é esquecer uma mulher orgulho, família, crenças, tradições, para toda se entregar a um pensamento que a persegue? Para não seguir na terra outro rumo que não seja o que lhe marca essa estrela fatal? (Passando-lhe a mão pela testa). Tens a fronte lisa, o rosto sereno... Por onde passou a tempestade? (Com meiga tristeza). Olha bem para mim! Não me conheces? Sou a Morgadinha, sou, mas então que queres? Amei, foi o destino... (Desviando-a impetuosamente de si com uma das mãos; enquanto afasta o rosto para o outro lado). Oh! Não ames nunca uma criança... Deixa-me passar, quero vê-lo.


MARIQUINHAS – desviando-se com o rosto banhado em lágrimas, como quem cede a uma influência omnipotente, estendendo para Leonor os braços suplicantes:

Olhe que vai matá-lo!

LEONOR – voltando a cabeça com ímpeto:

Que importa! Cuidas que não morro também?


Pinheiro Chagas, A Morgadinha de Valflor



POEMA DA MOCIDADE


O PRIMEIRO BEIJO

Primeiro beijo, perfumado, ardente
Primeira estrofe da gentil canção,
Que, em doidas horas de prazer fervente,
A flor dos lábios vem dizer «paixão!»

Ténue murmúrio, a suspirar carícias!
Aéreo sopro respirando ardor!
Meigo prefácio dessas mil delícias
Do gosto etéreo dum primeiro amor!

Beijar, a furto uma boquinha airosa,
Fugir, ceder à tentação fatal,
Bem como a abelha a voltear medrosa
Por entre as rosas do gentil rosal,

Que poisa, e suga a perfumada essência
Da flor tremente dum gozar sem sim;
Roubar assim, d'almo prazer de ardência
A puros lábios virginal carmim!

É sonho louco de ventura e enleio!
É ver nas trevas o esplendor do céu!
De casta virgem pudibundo seio
Palpita, rasga da inocência o véu!

Os lábios tremem da gentil donzela,
Refogem, voltam de delírio a arfar!
Oh! nessas horas amorosa estrela
Inunda a vida de fulgor sem par!

Depois extingue-se a visão brilhante;
Voltam as trevas, quando morre a luz,
Finda o romance da existência amante
Da fria campa em solitária cruz!
.........................
.........................

Etérea emanação da Divindade!
Sonho encantado dum primeiro amor!
Tímida flor, que o sol da mocidade
Inunda com seu plácido fulgor!
Minha ingénua visão, dize quem há-de
Manchar-te as vestes de brilhante alvor?

Quem se não curva ao poderoso império
Dum meigo olhar, fulgente, enamorado?
O amor então é divinal mistério,
É puro incenso, ardendo resguardado
No coração, turíbulo sagrado,
Urna singela dum perfume etéreo!

Um beijo ardente, que traduz ternura,
É santo, é puro, porque é santo o ardor;
Em torno à virgem, num primeiro amor,
Respira – se um ambiente de candura,
Onde paira sorrindo a imagem pura
Do meigo arcanjo do infantil pudor!

A impureza é na orgia, é no devasso
Que escarnece do amor e da virtude,
Que nos prega moral no tom mais rude,
E entra no lupanar, trémulo o passo,
A prostituir, em repugnante abraço,
A casta flor da etérea juventude!

Vergonha sobre o ímpio, que despreza
Mimosas afeições do coração,
Gentil grinalda de infantil simpleza,
De puras flores virginal festão,
E vai, cingindo a croa da impureza,
Sentar – se no festim da corrupção.

Vergonha sobre o hipócrita, o decrescente,
Tartufo, que se envolve em castos véus
Ao nome de paixão, louca, fremente!
O Amor é santo, porque vem de Deus,
E um beijo louco, apaixonado, ardente,
Faz sorrir de prazer anjos nos céus!

Pinheiro Chagas, Poema da Mocidade



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