Projecto Vercial

Jerónimo Corte Real


Jerónimo Corte Real (1530?-1588) terá nascido em Lisboa de uma família nobre (põe-se também a hipótese de ter nascido na ilha Terceira, Açores) e faleceu em Évora. Serviu como militar em Marrocos e na Índia. Tornou-se conhecido com o Segundo Cerco de Diu, poema em vinte e dois cantos dedicado ao rei D. Sebastião e publicado em 1574. O poema celebra os feitos militares de D. João de Castro e de D. João de Mascarenhas no cerco que a cidade de Diu sofreu em 1546. Escreveu também em quinze cantos e em castelhano a Austríada, publicada em 1578, e o Naufrágio de Sepúlveda, publicado em 1598. Os poemas têm um tom laudatório e relevam da poesia épica. O autor reflete a decadência do império português nos finais do século XVI.

Obras: Sucesso do Segundo Cerco de Diu, Estando D. João de Mascarenhas por Capitão da Fortaleza (Lisboa, 1574); Austríaca ou Felicissima Victoria Concedida del Cielo al Señor D. Juan de Austria en el golfo de Lepanto de la Poderosa Armada Otomana en el Año de Nuestra Salvación de 1572 (Lisboa, 1578); Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor De Sá Sua Mulher (Lisboa, 1594); Auto dos Quatro Novíssimos do Homem, no Qual Entra também uma Meditação das Penas do Purgatório (Lisboa, 1768).

Outras páginas sobre o autor:

  • O Naufrágio de Sepúlveda na narrativa romântica do brasileiro Pereira da Silva: Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI)



    SEGUNDO CERCO DE DIU


    CANTO VI

    COMO OS INIMIGOS BATIAM A FORTALEZA

    O Sol ardente em seu fogoso carro
    Quase meia jornada já cumpria,
    Quando lá pelos ares se levanta
    Um alarido horrível, que penetra
    As nuvens e alto céu: os vivos gritos
    Espalhados nos ares vão buscando
    As côncavas cavernas dos mais altos
    E solitários montes, e nos vales
    Mais fundos e vazios; com ajuda
    Da triste e namorada Eco formam
    Com ímpeto diversos apelidos.
    Das contrárias paredes começaram
    Disparar basaliscos, e salvages
    Quartaus, espalhafatos, leões grossos
    Com que as altas montanhas estremecem.
    O principal que ofendem é a distância
    Do Apóstolo que a mão meteu no lado
    De Cristo, e todo o lanço Que ali dela
    Corre até Santiago, porque viram
    Ser estes três lugares menos fortes.
    Danificados mais e mal seguros
    De todas estas partes lhe respondem
    Com mui furiosos tiros. Cobre um fumo
    Escuro e infernal as fortalezas.
    Súpitos e mortais ardentes fogos
    Luzem com grande pressa em ambas partes:
    O capitão ordena um contramuro
    Dentro naquela parte combatida:
    De parede tão grossa, que medidos
    Tinha dezasseis palmos, e de entulho
    Três côvados. Repairos fez mui grandes
    Com fortes contracavas no baluarte
    São Tomé: porque viu que a ele vinham
    Determinados com violenta fúria.
    Ferve a gente lá dentro, cresce a obra,
    Uns madeira acarretam, outros abrem
    Com forças e com ferro a dura terra,
    Fazendo contraminas. Outros correm
    Com grande pressa ao muro, e as estancias
    Povoam de arcabuzes, lanças, dardos,
    De pólvora, pelouros e outras muitas
    Proveitosas maneiras de peleja.
    Os capitães acodem diligentes
    Onde os tiros cruéis fazem mor dano.
    Is ali com mil repairos fortificam
    Lugares dos pelouros derrubados.



    CANTO XV

    À ESPERA DO SOCORRO

    Trabalhos, aflições, grandes angústias,
    Desconsolações, males e misérias
    Socorre-as Deus então, quando mais clara
    L mais certa se mostra a desventura.
    Os prenósticos tristes emudeçam
    E pasmem com mortal espanto a gente
    Ou a cruel fortuna se nos mostre
    Com áspero, feroz, bravo semblante.
    Firme esperança em Deus tenhamos sempre,
    Pois nele certa está misericórdia
    L Quando em nossos males, esquecido
    Se mostra, então nos dá mor o remédio.
    As naus tardavam já em vir do Reino
    E a esta causa em Goa se enxergava
    Na gente popular uma tristeza
    Nascida do temor que o grande cerco
    Nos corações vulgares tinha impresso.
    Traspassa um grande espanto as tristes almas
    Daquelas que na guerra os caros filhos
    E seus maridos têm aventurados
    A desastrado fim cada momento;
    Os templos frequentados eram delas
    Com lágrimas pedindo a Deus socorro
    E com voz alta e triste à Virgem pia.
    Chamavam com fervor que lhe valesse,
    Tomando-a por terceira em tal perigo.



    NAUFRÁGIO DE SEPÚLVEDA


    CANTO I

    RETRATO DE D. LEONOR DE SÁ

    Criava-se Lianor, crescendo sempre
    Em suma perfeição, suma beleza,
    E crescendo só nela as outras graças
    Por grandes fermosuras repartidas,
    Produziam-se dos seus fermosos olhos
    Efeitos mil, e extremos diferentes,
    Que olhando davam vida, e outras vezes
    Olhando cem mil vidas destruíam.
    A branca cor do rosto acompanhada
    De uma cor natural honesta e pura,
    E a cabeça de crespo ouro coberta,
    Lembrança do mais alto céu faziam.
    Praxíteles nem Fídias não lavraram
    De branquíssimo mármore igual corpo;
    Nem aquele, que Zuxis entre tantas
    Fermosuras deixou por mais perfeito,
    Não se igualava a este, antes ficava
    Abatido, e julgado em pouco preço;
    Que mal pode igualar-se humano engenho
    Co'aquilo, em que Deus tal saber nos mostra.
    Da boca o suave riso alegra os ares,
    Mostrando entre rubis orientais perlas
    E sobre tudo, quanto a natureza
    Lhe deu perfeito, a graça se avantaja.
    No peito ebúrneo as pomas, que em brancura
    Levam da neve o justo preço e a palma,
    Apartando-se, deixam de açucena
    Alvíssima um florido e fresco vale.
    Quem pode (sem perder-se) louvar cousa
    Onde não chega humano entendimento?
    Oh, fortuna cruel, que fim tão triste
    Guardaste para uma obra tão perfeita!



    CANTO VI

    MANUEL DE SOUSA PARTE DE COCHIM

    Com vela inchada vai a nau cortando
    O transparente campo de Neptuno,
    Impelida por Zéfiro; atrás deixa
    Um rasto de salgada branca escuma;
    Foge-lhe a conhecida terra; fogem
    Num momento a grão praia, o porto, a gente:
    Altas frondosas árvores de vista
    Se perdem já, e em névoa se convertem:
    A costa já se vê toda confusa,
    Mal distintos os montes e agras serras,
    E quanto mais se aparta, tanto em grossos,
    Turvos, densos vulcões, tudo se muda.
    Ao norte deixa já todas as terras,
    Do soberbo Idalcão Rei poderoso,
    E deixa Baçaim, cidade insigne,
    Soberba em outro tempo, humilde agora.
    Da cidade Taná, pouco distante,
    Deixa as grandes ruínas, que do tempo
    (Amigo de mudar estados) foram
    Convertidas em vil, triste dissenho.
    Em três mil e trezentas casas, nela
    Telas de ouro e de prata se teciam,
    Com sedas outras mais de várias cores;
    Agora já não tem mais que a memória.
    Também deixa Salsete, e o animal fero,
    Feito de pedra, igual a um alto monte;
    E o estranho e admirável edifício
    Debaixo de alta rocha fabricado.
    Obeliscos gerais da natureza,
    Sem artifício humano, aqui se mostram;
    Obra, onde se vê claro o saber alto
    E aquela alta divina omnipotência.



    CANTO VII

    A TEMPESTADE

    Cobre-se ó céu de grossas negras nuvens,
    Os ventos mais e mais cada hora crescem,
    Já se escurece o céu, já. com soberba
    Inchadas grossas ondas se levantam.
    A nau começa já passar trabalho,
    Já começa gemer, e em tal afronta
    O apito soa, brada o mestre, acodem
    Com presteza varões no mar expertos.
    Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
    Levanta lá no céu furiosas ondas;
    Austro bramando corre ali com fúria,
    Dando um balanço à nau que quase a rende,
    Vem com grande furor Bóreas raivoso,
    Comete por davante, o passo impide,
    Encontra as grandes velas, e, por força,
    Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
    Rompe-se por mil partes o céu, e arde
    Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
    Um rugido espantoso vai correndo
    Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
    Arremessam-se lanças pelos ares
    De congelada pedra em água envolta;
    Com espantoso ímpeto, e rasgadas
    As densas negras nuvens raios cospem:
    De um golpe as velas vêm todas abaixo.



    CANTO XVII

    MANUEL DE SOUSA ENTERRA D. LEONOR NA PRAIA

    Apartando co'as mãos a branca areia
    Abre nela uma estreita sepultura
    Torna-se atrás alçando nos cansados
    Braços aquele corpo lasso e frio.
    Ajudam as criadas as funestas
    Derradeiras exéquias, com mil gritos.
    Ai duro tempo! (dizem),como apartas
    Para sempre de nós tal fermosura!
    Na perpétua morada tenebrosa
    A deixam, levantando alto alarido,
    Com salgado licor banhando a terra,
    Aquele último vale. todas dizem.
    Não fica só Lianor na causa infausta,
    Que de um tenro filhinho se acompanha,
    Que a luz vital gozou, quatro perfeitos
    Anos, ficando o quinto interrompido.
    Ali co'a morta mãe o filho morto
    Ambos com morto amor em cerra jazem,
    Ela lhe nega o branco amado peito,
    E ele o doce, materno, amado gosto.
    Ambos na solitária praia ficam,
    Junto das grossas ondas sepultados,
    Deixando ao mundo um triste raro exemplo
    De perversa, cruel, ímpia fortuna.


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