António Cândido Gonçalves Crespo nasceu nos arredores do Rio de Janeiro, Brasil, a 11 de Março de 1846, e faleceu em Lisboa a 11 de Junho de 1883. Veio para Portugal com dez anos de idade. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, sendo colaborador da Folha, jornal de que era diretor João Penha, poeta a introduzir em Portugal o Parnasianismo. Em 1879 foi eleito deputado às Cortes pelo círculo do Estado da Índia. A poesia de Gonçalves Crespo foi influenciada pela escola parnasiana. Tendo casado com a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, escreveu em colaboração com ela o livro Contos para os Nossos Filhos.
Obras: Miniaturas (poesia, 1870); Nocturnos (poesia, 1882); Contos para os Nossos Filhos (com Maria Amália Vaz de Carvalho, 1886); Obras Completas (1887).
ALGUÉM
Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais de Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
E, se na Terra existe, é porque existo.
Esse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!
Quando, alta noite, me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.
Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! esse alguém
É de meus olhos a esplendente aurora;
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!
Miniaturas
O ROSÁRIO
Quando à noite contemplo taciturno
estas contas antigas, o rosário
das minhas orações,
vejo em minh'alma o poema legendário
dos velhos tempos das longínquas eras
de santas devoções.
A cruz ebúrnea, onde agoniza o Cristo,
é de um lavor subtil que nos revela
um génio magistral,
obra de monge em merencória cela,
piedoso artista há muito adormecido
em velha catedral.
Tem séculos; talvez que nestes contas
passasse outrora suas mãos esguias
a castelã senil,
pensando triste nos saudosos dias
em que a seus pés um menestrel vibrava
o mimoso arrabil.
Talvez que este rosário minorasse
as saudades da noiva lacrimante
que debalde esperou
em cada nau, que vinha do Levante,
o seu donzel amado que partira
e nunca mais voltou.
Sobre a cota de um jovem cavaleiro,
que o beijava por noite estreladas
pensando em sua mãe,
ele assistiu às guerras das cruzadas,
atravessou talvez a Terra Santa
e viu Jerusalém.
Talvez alguma freira, em triste claustro,
de seus anos na doce primavera
só dele confiou
seus loucos sonhos de falaz quimera,
e, apertando o rosário ao peito ansioso,
consolada expirou.
Isto o que leio no rosário antigo;
e, quando melancólico lhe beijo
as contas de marfim,
no ar escuto indefinido arpejo,
e então a crença, a mística toada,
murmura dentro em mim.
Miniaturas
A SESTA
Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.
Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.
Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.
Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.
A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.
Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...
O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,
que dorme a sinhá!
Miniaturas
UM NÚMERO DE INTERMEZZO
Ria tomando o chá em torno à mesa
Da Sociedade a flor;
E no campo de estéticas opostas
Discutia-se o Amor.
«O amor deve ser etéreo e puro»,
O conselheiro diz:
Sorrindo a conselheira um ai! abafa
Com gestos de infeliz.
Diz o cónego: «o amor destrói, mas quando
Sensual, já se vê!»
A donzela pergunta ingenuamente:
«Reverendo, porquê?»
A condessa murmura em voz dolente:
« O amor é uma paixão.»
E lânguida uma chávena oferece
Ao pálido barão.
Era vago um lugar em torno à mesa
Era o teu, minha flor!
Tu, só tu, poderias, se quisesses.
Dizer o que era Amor!
Miniaturas
ESTA PALAVRA SAUDADE
Junto de um catre vil, grosseiro e feio,
por uma noite de luar saudoso,
Camões, pendida a fronte sobre o seio,
cisma, embebido num pesar lutuoso...
Eis que na rua um cântico amoroso
subitâneo se ouviu da noite em meio:
Já se abrem as adufas com receio...
Noites de amores! Que trovar mimoso!
Camões acorda e à gelosia assoma;
e aquele canto, como um antigo aroma,
ressuscita-lhe os risos do passado.
Viu-se moço e feliz, e ah! nesse instante,
no azul viu perpassar, claro e distante,
de Natércia gentil o vulto amado...
Nocturnos
Quando canta a Maldonado
E os quadris saracoteia,
Não é mulher, é sereia,
Não é mulher, é o pecado.
Ao vê-la, pois, enleado
Perco o siso, o verbo, a ideia,
E um desejo audaz se enleia
Neste peito meu bronzeado.
Chamei-te sereia! engano!
Nunca tolice maior
Borbotou do lábio humano.
Que toda a sereia, flor,
Finda em peixe... e ou eu me engano,
Ou tu acabas... melhor.