Projecto Vercial

Diogo Ferreira Figueiroa


Diogo Ferreira Figueiroa (1604-1674): era criado do futuro rei D. João IV e cantor da capela do Paço de Vila Viçosa. Após a Restauração, mudou-se com a família real para Lisboa. Como poeta, foi autor de Desmaios de Maio em Sombra do Mondego, publicado em Vila Viçosa em 1635, e de Teatro da Maior Façanha, e Glória Portuguesa, publicado em Lisboa em 1642. Esta última obra, dedicada ao príncipe D. Teodósio, filho de D. João IV, apresenta-se sob a forma de epopeia com seis cantos em oitava rima, e canta o fim do domínio filipino em Portugal e o início da dinastia de Bragança.




TEATRO DA MAIOR FAÇANHA, E GLÓRIA PORTUGUESA

(extractos)

CANTO I


ARGUMENTO

Descreve-se o estado em que se achava Portugal antes da feliz aclamação del-Rei Dom João o IV, nosso Senhor. Queixa-se o Tejo de tantos presentes males, e se lhe dão esperanças de ver-se livre deles.

1
O mais raro prodígio, o mor portento,
Que da Fama a vagante agilidade,
Contra as injustas leis do esquecimento
Aos bronzes consagrou da eternidade:
Da lusa esfera um novo firmamento
Na restaurada pátria liberdade,
Com presumida fúria, altivo canto,
Se emplectro humano cabe assunto tanto.

2
Vós, Tágides galhardas, quanto belas
Que entre cristal da veia fina
Mais que a pedaços neve, sois estrelas,
Para que as tenha a esfera cristalina:
Vós que habitando as águas cifrais nelas,
das filhas de Mnemósine divina
Envejas de outra cópia mais perene
Que a que se bebe em águas de Hipocrene.

3
A causa é vossa, ninfas soberanas,
Quando à vista da grande bizarria
Deste auge das proezas lusitanas
Se dobra o preço a vossa galhardia;
Vós pois sede as que em cópias mais que humanas,
Me inspireis a facúndia, e melodia,
Para que em vós grandíloqua, e suave,
No canto, eleve grande, e admire grave.

4
E vós belo Teodósio, que na alteza
Dessa gentil presença idolatrada,
Já dais a respeitar hüa grandeza
De tantos desejosos suspirada;
Vós, que no régio aspeito dais certeza
daquela sempre augusta, e sempre amada
Benignidade, própria aos ascendentes
De que sois cópia em rasgos preminente;

5
Vós Príncipe sublime, que na glória
Dessa, em tudo, Cesárea gravidade
Estais eternizando na memória
De um Teodósio segundo a saudade,
Vós, que em ditoso assunto a larga história
Sois de hüa superior felicidade,
Dado em penhor, por mimo soberano
Ao sempre Augusto sólio Lusitano:

6
Dessa, se inda mínima galhardia,
Já grande em tantas mostras, de importância,
Um pouco se divirta a fantasia
De minha lira ouvindo a consonância;
Que se humilde, talvez, sem harmonia
Também agradam faltas de elegância.
Porque nem sempre a Glauco a sombra Eolo,
Nem sempre o arco de ouro encurva Apolo.

7
Vereis como de um tronco dessa planta,
A que sois tronco, e flor entre as maiores,
Cantando, no sujeito, doce encanta
As águas a Aganipe, ao Pindo as flores;
E como no fervor de fúria tanta
A lira pondo cordas superiores,
Vence em cadências mélicas subindo
A Aganipe o furor, a fúria ao Pindo.

8
Que como em tanto assunto, em brio ardente,
Dos Lusitanos vossos há proezas,
E generoso, a estas dignamente
Já estais avaliando por grandezas,
Enquanto pelo estilo mais corrente,
Vou destas referindo as gentilezas,
Excelso não será persuadir-vos,
É grandeza com estas divertir-vos.

9
Entre o bramir das ondas mais horríveis,
Que em desatadas fúrias de inclemência
Puderam furibundas, e terríveis
Ir-se alterando em golfos da insolência,
Desde hüa Sirte em outra, inacessíveis
Por vários precipícios da impaciência,
Já no extremo perigo em que anelava
O naufragante Luso flutuava.

10
A força de rigores, que na instância,
Da mais desenfreada tirania
Por soltas tempestades de arrogância
Se entumeciam bravos e porfia:
Entre hüa nunca vista exorbitância
Dos males que a dilúvios padecia,
No distrito dos Lusos adstigidos
Tudo era soltar ais, voar gemidos.

11
De aquele envelhecido vitupério,
Que tanto à Lusitânia malquistava,
Em ver-se que oprimida ao rei Hispério
Tão graves exortações dissimulava;
O titular sentido, o injusto Império
Mil descontentes ais desentranhava
Do peito, que abrasado em viva fúria
Bramia na opressão de tanta injúria.

12
Que desacerto é este, suspirava;
Com soluços talvez interrompendo
As sentidas palavras, que lhe atava
O concurso das lágrimas correndo;
Que desacerto é este, porfiava?
Que fúria contra os Lusos concorrendo
Lhes traz, por força de astros mal propícios,
O crédito por tantos precipícios?

13
Possível é, que a bélica eminência
Do não vencido esforço Lusitano,
A cuja formidável inclemência
Fica frio o furor mais inumano,
Venha por um defeito da imprudência,
Assujeitar-se a ofensas de um tirano
Por indultos do fado rigoroso,
Só de incêndios da pátria cobiçoso?

14
Possível é, ques os lusos desterrados
Por seu mesmo valor, por inimigos,
Impérios em que feros, e arriscados
Domaram tantos bárbaros imigos;
De Neptuno, e Vulcano alvoroçados,
Desestimando os hórridos perigos,
Não sintam padecer; que mal tamanho!
Tão graves sem razões do jugo estranho?

15
Que aquele esforço, e brio destemido
Da intrépida ou sadia Portuguesa,
Chegue a pedir do Lauro merecido,
O márcio preço, a pesos de riqueza?
E que não só o prémio conseguido
De tanto estranho imigo entre a fereza
Não veja sem tesouro, mas que chegue
A ver, que inda o valido se lhe negue?

16
Quando pelas coroas merecidas
Deram, dizia, os brios Lusitanos
Mais, que o grande valor das próprias vidas,
Arriscadas nos Campos Mauritanos?
Quando por outras bocas que as feridas
Abertas pelos golpes inumanos
Dos bárbaros da Aurora, tantas vezes
Pediram a seus Reis os Portugueses?

17
Mas ai, sentido reino desditoso
Dizia, dando aos ares um suspiro
Que nasce o mal de um mal tão rigoroso,
De um já perdido bem, porque suspiro,
Que se algum tempo fostes venturoso
De que hoje o não sejais, nada me admiro,
Que então tínheis por Pais Reis Lusitanos,
E hoje sofreis intrusos Castelhanos.

18
O Clero com subsídios molestando
Mil ais desentranhava sem efeito,
Com mal sofridas ânsias lastimado,
A soluços abrindo o triste peito,
Não valia ao Monástico encerrado,
Queixar-se do pedido mal aceito,
Que era força, se injusto, em ser pedido,
Sem mais contradição ser admitido.

19
Precipitado quási o sofrimento
A vista dos efeitos pouco humanos,
Com que a pátria infestava o iníquo intento
Do insolente rigor dos Reis Hispanos,
Ao nobre atribulava o sentimento,
De ver que sobre danos, e mais danos,
Havendo contra a pátria alheios Cinas
Contra esta havia Lusos Catilinas.

20
Chorava-se o avarento enfurecido
Nas ondas da ambição, que a própria ira
Lhe ia formando em ver-se perseguido
Pelo que em tantos anos adquirira;
Sentia o rico o tributo, e mal sofrido
O da Palestra de Hermes, que suspira
O ver-se ir consumindo com tributos
De sentimento os olhos nunca enxutos.

21
Clamava o pobre queixas divulgando
Do executado insulto rigoroso,
E só se via alegre e triunfando
A injusta sem razão do poderoso;
Que para o Céu Astreia tresladando
A justiça de um voo pressuroso,
Da tirania injusta por indultos
Tudo eram latrocínios, tudo insultos.

22
E em tantos males bravos, e terríveis,
Em tantas Babilónias de inclemências,
Abominando as traças insofríveis
De tão desatinadas insolências;
Ainda os próprios montes insensíveis,
Sentindo, se com mudas aparências,
Com vales, fontes, rios, sempre amargos,
Pareciam chorar males tão largos.

23
De aquela, a vezes, trémula verdura,
Pomposa ostentação das verdes fontes,
Faltos, sem graça, pobres de frescura
Em triste confusão; calvos os montes;
Vestidos de aspereza tosca, e dura
Formando-se olhos mil, nas vivas fontes,
Que das entranhas suas rebentavam
Com descontentes lágrimas choravam.

24
E as fontes, que já claras, e fermosas
Pela estendida veiga atravessando,
Foram de prata serpes graciosas
A verde selva, a giros retalhando;
Naquele grave tom, com que saudosas
Agora se iam turvas escoando
Por entre os pardos seixos, que encobriam
De articular suspiros pareciam.

25
De pouco alegres mostras revestido,
Só de ásperos abrolhos povoado,
Parece, que entre queixas de ofendido
Estava triste o campo, triste o prado;
Estava triste o vale, antes florido,
Que inda que mudo, a vezes lastimado
Pedia voz ao côncavo dos ecos
Para queixar-se triste aos montes secos.


Diogo Ferreira Figueiroa, Teatro da Maior Façanha e Glória Portuguesa, Lisboa, Oficina de Domingos Lopez Rosa, 1642.

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