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Francisco de Paiva de Andrade


Francisco de Paiva de Andrade, ou Andrada (1540?-1614) nasceu e faleceu em Lisboa. Foi cronista-mor do reino e guardador-mor da Torre do Tombo. Era irmão de Diogo de Paiva de Andrade, grande teólogo da época. Dedicou-se à historiografia e à poesia lírica, de que existem várias composições inéditas na Biblioteca Nacional. Tornou-se de algum modo conhecido com a crónica em vinte cantos em oitava rima Primeiro Cerco de Diu, que narra o episódio da defesa da cidade de Diu na Índia por António da Silveira em 1583.

Obras: Vida e Feitos de D. Vasco da Gama; Primeiro Cerco de Diu (Lisboa, 1589); Crónica do muito alto e muito poderoso Rei destes Reinos de Portugal D. João III deste nome (Lisboa, 1613).




PRIMEIRO CERCO DE DIU


FAÇANHA DE JOÃO PIRES

Consumidor é o tempo insaciável
De tudo quanto cria a natureza;
Ou seja a cousa em si forte e durável
Ou feita com engenho e sutileza;
Ante este imigo, enfim, fica domável,
Antes de todo perde a fortaleza,
E à que parece mais constante e forte,
Também guarda seu género de morte.

Que grande império de ouro e de armas feito
Que vem fundada terra, que cidade,
Que espantoso imortal, que her6ico feito,
Que forte, que robusta mocidade,
Que dor posta no centro lá do peito,
Que desesperação, que saudade,
Que se cousa inda há mais dura e constante,
A resistir ao tempo foi bastante?

Tudo se rende enfim, tudo obedece
A este segundo fogo vagaroso;
Só contra suas forças prevalece
Um magnânimo esprito valeroso;
Porque este, quando a força desfalece,
Se torna mais feroz, mais animoso,
E o discurso do tempo ou morte esquiva
No somente o não gasta, mas o aviva.

Não é isto que digo cousa nova,
Mil exemplos cada hora o têm mostrado;
Ousado Pires, claro em ti se prova
Que o tempo não consume o peito ousado,
Antes co'o tempo cresce e se renova
E o domador geral dele domado;
Mostrá-lo-ão tuas obras nunca ouvidas,
Do teu esprito só favorecidas.

Com ímpeto feroz, com furor tanto
À bandeira infiel Pires se lança;
Do baluarte fora a deita quanto
A sua antiga e fraca força alcança,
E ajudados dos mais de que atrás canto
(Que aqui lhe d.o favor e confiança)
Ali donde o pendão purpúreo arranca,
Arvora logo a cruz vermelha e branca.

Eis o soberbo turco aceso em ira
Que aquela injúria tem em grande estima,
De novo abate a cruz, de novo a tira,
Ergue a sua bandeira e põe-na em cima.
Pires arde outra vez, geme e suspira,
E a sua companhia acende e anima;
Tenta outra vez co'os seus este combate
Ergue o pendão cristão, o turco abate.

Não se acaba com isto esta contenda,
Faz que de novo o turco e o cristão gema,
Porque o turco não quer que hoje se renda
A sua insígnia à cruz que 1 blasfema;
E Pires também quer que o turco entenda
Que esta é a razão que só se exalce e tema,
E três ou quatro vezes foi no ar visto
Ora o pendão do turco, ora o de Cristo.

Até que vendo o turco impaciente
Que não poder no ar durar erguida
A sua insígnia, enquanto a cristã gente
Tem, para erguer a sua, força e vida,
Já menos de honra que de ira ardente
Deixa a bandeira já mal defendida.
E volta o ferro contra a companhia
Que o fim do seu intento lhe impedia.

Qual faz que da espingarda o chumbo saia,
Qual meneia o luzente ferro agudo,
Trabalhando por que esta gente caia,
Que o seu esforço só tem por escudo;
Mas a esforçada gente no desmaia,
Que a vida estima já menos que tudo:
Quanto o perigo é mor mais se defende,
Também meneia a espada, a lança estende.

Canto XV, 1-9.


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