Projecto Vercial

António Ferreira


António Ferreira

Ferreira, António: António Ferreira (1528-1569) nasceu em Lisboa, estudando Direito na Universidade de Coimbra. Além de desembargador, cultivou a poesia, sendo o discípulo mais famoso de Sá de Miranda. Os seus poemas foram publicados por seu filho, Miguel Leite Ferreira, em 1598, sob o título de Poemas Lusitanos. Escreveu as comédias Bristo e Cioso, publicadas em 1622, e a tragédia Castro, publicada em 1587. É considerado um dos maiores poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa.









TRAGÉDIA CASTRO

(extractos)

ACTO IV

INÊS E O REI

CASTRO:
Meu Senhor,
Esta he a mãy de teus netos. Estes são
Filhos daquelle filho, que tanto amas.
Esta he aquella coitada molher fraca,
Contra quem vens armado de crueza.
Aqui me tens. Bastava teu mandado
Pera eu segura, e livre t'esperar,
Em ti, e em minh'innocencia confiada.
Escusarás, Senhor, todo este estrondo
D'armas, e Cavaleiros; que não foge.
Nem se teme a innocencia, da justiça.
E quando meus peccados me accusaram.
A ti fora buscar: a ti tomara
Por vida em minha morte: agora vejo
Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
Reaes tam piedosas: pois quiseste
Por ti vir-te informar de minhas culpas.
Conhece-mas, Senhor, como bom Rey,
Como clemente, e justo, e como pay
De teus vassallos todos, a que nunca
Negaste piedade com justiça.
Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem
Em tuas mãos se mete tam segura?
Que furia, que ira esta he, com que me buscas?
Mais contra imigos vens, que cruelmente
T'andassem tuas terras destruindo
A ferro, e fogo. Eu tremo, senhor, tremo
De me ver ante ti, como me vejo:
Molher, moça, innocente, serva tua,
Tam só, sem por mim ter quem me defenda.
Que a lingua não s'atreve, o sprito treme
Ante tua presença, porém possam
Estes moços, teus netos, defender-me.
Elles falem por mim, elles sós ouve:
Mas não te falaram, Senhor, com lingua,
Que inda não podem: falam-te co as almas,
Com suas idades tenras, com seu sangue,
Que he teu, faláram: seu desemparo
T'está pedindo vida: não lha negues
Teus netos são, que nunca téqui viste:
E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
A glória, e o prazer, qu'em seus spritos
Lhe está Deos revelando de te verem.

REY:
Tristes foram teus fados, Dona Ines,
Triste ventura a tua.

CASTRO:
Antes ditosa,
Senhor, pois que me vejo ante teus olhos
Em tempo tam estreito: poem-nos hora,
Como nos outros soes, nesta coitada.
Enche-os de piedade com justiça.
Vens-me, senhor, matar? porque me matas?

REY:
Teus pecados te matam: cuida nelles.

(...)

REY:
Ó molher forte!
Venceste-me abrandaste-me. Eu te deixo,
Vive, em quanto Deos quer.

CASTRO:
Rey piadoso,
Vive tu, pois perdoas: moura aquelle,
Que sua dura tenção leva adiante.


PACHECO, REY, COELHO

Oh Senhor, que nos matas! que fraqueza
Essa he indigna de ti? de hum real peito?
Vence-te húa molher, e estranhas tanto
Vencer assi teu filho? que já agora
Terá desculpa honesta: não te esqueças
Da tenção tam fundada, que te trouxe.

REY:
Não pode o meu sprito consentir
Em crueza tamanha.

PACHECO:
Mór crueza
Fazes agora ao Reyno – agora fazes
O que faz a pouca agora em grande fogo.
Agora mais s'acende, arderá mais
O fogo do teu filho. A que vieste?
A pôr em mór perigo teu estado?

(...)

REY:
Não vejo culpa, que mereça pena.

PACHECO:
Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REY:
Mais quero perdoar, que ser injusto.

COELHO:
Injusto he quem perdoa a pena justa.

REY:
Peque antes ness estremo, que em crueza.

COELHO:
Não se consente o Rey peccar em nada.

REY:
Sou homem.


COELHO:
Porém Rey.


REY:
O Rey perdoa.

PACHECO:
Nem sempre perdoar he piedade.

REY:
Eu vejo húa innocente, mãy de hús filhos
De meu filho, que mato juntamente.

COELHO:
Mas dás vida a teu filho, salvas-lh'alma,
Pacificas teu Reyno: a ti seguras.
Restitues-nos honra, paz, descanso.
Destrues a traydores; cortas quanto
Sobre ti, e teu neto se tecia.
Offensas, senhor, publicas não querem
Perdão, mas rigor grande. Daqui pende
Ou remedio d'hum reyno. ou quéda certa.
Abre os olhos às causas necessarias,
Que te monstramos sempre, e que tu vias.
Cuida no que emprendeste, e no que deixas.
O odio de teu filho contra ti,
Contra nós tal será, como qual fora,
Fazendo-se, o que deixas por fazer.
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os.
Assi lh'amansarás grã parte da ira.
Senhor, por teu estado te pedimos:
Polo amor do teu povo, com que t'ama,
Polo com que sabemos que nos amas:
Mais estas razões fortes, que essa mágoa
Injusta, que depois chorarás mais,
Perdendo esta occasião, que Deos te mostra.

REY:
Eu não mando, nem vedo. Deos o julgue.
Vós outros o fazei, se vos parece
Justiça, assi matar quem não tem culpa.

COELHO:
Essa licenca basta: a tenção nossa
Nos salvará cos homens, e com Deos.

CHORO:
Em fim venceo a ira, cruel imiga
De todo bom conselho. Ah quanto podem
Palavras, e razões em peito brando!
Eu vejo teu sprito combatido
De mil ondas, ó Rey. Bom he teu zelo:
O conselho leal: cruel a obra.


POEMAS LUSITANOS

SONETOS

1

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir comprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu fostes fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


2

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco üa aima só, pouco üa vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

3

S'erra minh'alma, em contemplar-vos tanto,
E estes meus olhos tristes, em vos ver,
S'erra meu amor grande, em não querer
Crer que outra cousa há ai de mor espanto,

S'erra meu esprito, em levantar seu canto
Em vós, e em vosso nome só escrever,
S'erra minha vida, em assi viver
Por vós continuamente em dor, e pranto,

S'erra minha esperança, em se enganar
Já tantas vezes, e assi enganada
Tornar-se a seus enganos conhecidos,

S'erra meu bom desejo, em confiar
Que algu'hora serão meus males cridos,
Vós em meus erros só sereis culpada.

4

Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome de amor. doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.

Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.

Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.

A minh'alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.

5

Se meu desejo só é sempre ver-vos,
Que causará, senhora, que em vos vendo
Assi me encolho logo, e arrependo,
Que folgaria então poder esquecer-vos?

Se minha glória só é sempre ter-vos
No pensamento meu, porque em querendo
Cuidar em vós, se vai entristecendo?
Nem ousa meu esprito em si deter-vos?

Se por vós só a vida estimo, e quero,
Como por vós a morte só desejo?
Quem achará em tais contrários meio?

Não sei entender o que em mim mesmo vejo.
Mas que tudo é amor, entendo, e creio,
E no que entendo, e creio, nisso espero.


6

(À morte da esposa)

Ó alma pura enquanto cá vivias,
Alma, lá onde vives, já mais pura,
Porque me desprezaste? Quem tão dura
Te tornou ao amor que me devias?

Isto era o que mil vezes prometias,
Em que minha alma estava tão segura?
Que ambos juntos Da hora desta escura
Noute nos subiria aos claros dias?

Como em tão triste cárcer' me deixaste?
Como pude eu sem mi deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?

Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Porque correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te!


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