Projecto Vercial

Francisco Gouveia


Francisco Gouveia

Francisco Gouveia nasceu no Porto em 1953, tendo passado parte da infância em Tabuaço, Alto Douro. Licenciado em Engenharia Civil pela Universidade do Porto, é especializado em Administração Pública e Ordenamento do Território. Foi fundador e colaborador de vários jornais académicos do Porto na década de setenta e, posteriormente, continuou a desenvolver a sua faceta jornalística escrevendo para a imprensa regional de Trás-os-Montes, Douro e Beiras.

Apesar de escrever há mais de 30 anos, só em 1997 editou a primeira obra literária, baseado num manuscrito que produzira nos anos oitenta, A Lenda do Douro (novela), uma fantasia sobre a criação do mundo duriense. Seguiram-se as seguintes obras, também de ficção: Há névoa no rio (contos) em 1998, As Escadas do Céu (romance) em 1999, Pietà ou A Imitação do Mestre (romance) e Livro dos Poemas Pobres (poesia), ambos em 2000, e, já em 2002, Meiga, como a voz da montanha (contos serranos). Em 2003 saiu o romance histórico O Jardim Secreto (Editorial Bizâncio).

É membro da Sociedade Portuguesa de Autores e da Associação Portuguesa de Escritores, e algumas das suas obras fazem parte dos títulos aconselhados nos cursos de literatura de algumas Universidades do país. Está representado no Gabinete de Leitura de Pernambuco (Brasil), como um dos autores contemporâneos de língua portuguesa recomendados.


Alguns excertos de obras publicadas:

AS ESCADAS DO CÉU

Corria adiantada a metade do século, no tempo em que os comboios assobiavam faúlhas e os maquinistas escondiam as carantonhas enegrecidas e brilhantes do fumo e do suor.

Na Estação de Campanhã, a confusão instalada: por entre a maratona dos bagageiros e o desatino dos aldeões, de saco ao ombro e cesto à mão, a voz rouca e atabacada do chefe da estação a dar ordens para todo o canto e a rasgar o bulício com o apito esganiçado.

Vestido com a minha roupa domingueira, calções terilene e camisa de nailon, agarrado à mão de meu pai, aguardava na ânsia dos meus doze anos a chegada da besta negra e fumegante que me havia de levar à Régua. Ali esperava-me o meu avô para juntos embarcarmos numa trambia de camioneta que nos arrastaria até Tabuaço e, depois, até Pinheiros, fim de jornada e repouso mãe de uma origem a desvirtuar-se na cidade.

Era assim todos os anos na altura das férias. Aguardavam-me dois meses campestres, vivência que o tempo me gravou na memória com sulcos de lembrança perpétua.

A viagem até à Régua era um misto de eternidade e folclore, a durar tempo desapressado e embalado no entoar de vozes montanheiras, claras e sonoras, que expunham ao sol a vida de cada um, com a ingenuidade dos simples e a certeza dos sãos.

- Ó Zezinho, anda cá! Deixa o senhor em paz!...

E o miúdo, de nariz pinguento e faces rosadas, arregalava os olhos no esconde-esconde do encosto do assento.

- Diabo do rapaz que não está quieto!...

E, por cima do jornal, o viajante lançava-lhe um sorriso, com a resposta ladina de uma careta infantil.

- Deixe lá, minha senhora, que o miúdo não incomoda!

Mais à frente um grupo desnorteava das vindimas. O ano tinha sido fraco e esperava-se safra mesquinha. No calor da discussão saltava um pão de trigo e um naco de presunto que navalhas doutoradas dissecavam.

- É servido, patrão?...

Rodava o garrafão num vaivém ourado e a discussão aquecia.

Debruçado na janela a iludir o enjoo, face de coirato e mãos corpudas, o cavador trauteava:

 

Este rio é como o tempo

Fraco barco somos nós

Queremos voltar à nascente

Ele a puxar-nos pr’á foz

A lenta jornada da carruagem, agarrada à encosta do vale e obediente ao trilho de ferro, pressagiava um regresso à paz. Quanto mais penetrava no vale do Douro, mais sentia a pequenez, adivinhando a migalha que somos neste canto do mundo.

Os socalcos rasgados nas faces das montanhas, pousio de vinhedos sustentados pela rudeza dos muros lajeados, davam ao vale o ar sério de ser tratado, educado, altivo e imponente. Espantava-me que tal arrojo fosse obra de homens, iguais aos que me rodeavam na feira humana da carruagem, eles mesmos, ali distraídos, simples mortais, sem história e incógnitos.

O rio era o espelho do vale. Reflectia-lhe as faces encenando o céu num fundo verde e, calmo como um sábio, parecia segredar-me mistérios que alimentavam a imaginação do meu espanto.

- O menino é servido?...

E acordava daquele sonho com a velhota sentada a meu lado, a estender-me uma pêra luzidia.

- Não, muito obrigado!...

Mentia, discreto mas sem convicção.

- Ora, ora! Tome lá! Não faça cerimónia!

Aceitava e começava a aprender que "não" era palavra de pouco uso naquelas bandas.

Ao chegar à Régua, o abraço forte e efusivo do meu avô, o embarque na camioneta da carreira e ala, marginal fora até ao Espinho, na estrada do Pinhão, e daí em diante encosta acima trepando a serra.

A subida abria os horizontes e o mundo parecia crescer ante os meus olhos. Os socalcos cravados na montanha continuavam a fascinar-me o espírito, alimentado agora pela certeza do meu avô:

- São as escadas que levam ao céu...

E aquilo que na mente viciada de um adulto não passaria de uma alegórica brincadeira, ganhava forma de castelo mágico na consciência da minha meninice. Eram as escadas que conduziam ao céu e assim me ficaram gravadas até hoje.

O meu avô era um homem simples, rudeza amansada na calma das aldeias, cultivando a sabedoria da natureza e com o sol por seu único mandante; livre suficiente para saber o que dizia. E a pouco e pouco fui entendendo que só homens assim, generosos, consigo, com os outros e com a própria vida, poderiam ter erguido tal obra, desventrando metricamente o monte até aplainar solo de assento na vertigem dos abismos que a força da coragem tenteava e a merecer o aval de terra violada com consentimento, abençoando as videiras, fruto da cópula entre o homem e a serra.

O Douro foi assim edificado, por homens humildes que queriam conquistar o paraíso e, num acto de sacerdócio, pensaram ter deste modo vitória sobre a morte. O vale é um sonho fruto de um sonho. Ainda hoje, nas noites de luar, se podem distinguir as esfinges desses homens passeando fantasmagoricamente nas escadarias do vale, como que a dizer-nos ser verdade chegar-se ao céu encosta acima.

Os anos passaram, o meu avô morreu, eu cresci mas a memória não se apagou e, de cada vez que olho o vale, sou o mesmo menino de outrora.

Custa-me pensar que os homens já não acreditem que aquelas escadas levem ao céu. Possivelmente já nem no céu acreditam. Enrodilhados na sua mesquinha mediocridade, perderam o dom de sonhar.

Eu, por mim, continuo a acreditar no sonho do meu avô.

Os homens passam mas o céu ainda lá está. E as escadas também.

O meu avô tinha razão.

Sempre.

(in As Escadas do Céu, romance, 1999)


PIETÀ ou A Imitação do Mestre

E viu: Jesus, – deitado sobre o regaço da mãe, Maria, que o segurava com o braço debaixo das costas -, pendia a cabeça inerte para trás, olhos virados para o céu, talvez para o Pai, numa expressão de paz, divina, mas misturada com o humano espanto da morte. O corpo, esguio, magro, morto, parecia imponderável nos braços da mãe. Maria tinha a expressão da resignação, ressaltando dos olhos cerrados o interior de um olhar que deveria estar junto da alma de seu filho, numa estranha telepatia que não era só dom de quem tinha nos braços o filho do Criador. Era um dom de todas as mães, e a ventura dos filhos que terminam os seus dias junto de quem foi a origem deles. Entre ambos, havia esta mágica transposição, como se almas dos dois se entrelaçassem por momentos, como se os espíritos dialogassem um pouco mais para além do limite momentâneo que separa a vida da morte, e que aqui se fundia numa única emoção. O desalinho das túnicas anunciava a agitação interior que invadia Maria, porque, mesmo sendo ela sabedora, – desde o primeiro laivo de luz que lhe iluminou a fecundidade do ventre -, do fim destinado a quem dentro dela ganhava corpo e que tinha vindo com a missão de ensinar ao mundo o caminho recto e ao Homem o trilho de luz da sua própria humanização, não foi capaz de conter a angústia e a revolta por tal perda. Maria, seria assim como todas as mães, e também como ela, Ana, que perdera igualmente o seu. Maria não estava ali representada como a mãe de Jesus, de um Jesus filho de Deus, mas como uma mãe vulgar, de um filho humano, mortal, uma mãe como todas as mães do mundo, uma mãe com toda a revolta de quem perde quem mais ama. Mas, – e ao contrário da raiva que explode nas mães assim espoliadas que questionam dolorosamente o porquê da injustiça lhes levar o fruto do seu ser, e negam a existência do Deus em que, até então, acreditavam, – não se apercebia no semblante de Maria qualquer indício de raiva contra o pai do seu filho. Apercebia-se sim, na serenidade dolorosa do rosto conformado e profundamente triste, que Maria perdoava a Deus. E Ana sentiu que, naquele momento, Deus estaria a aceitar o perdão, envergonhado, talvez, por chamar para junto de si o filho que também era dela. Agora, Ana não se desiludiu, e teve a certeza de que afinal o artista que tal escultura fizera, era bem diferente do que imaginara na Capela Sistina.

Aquele Jesus era o seu Jesus, filho de Deus, mas, ao mesmo tempo, filho como outro qualquer. Aquela Maria era a sua Maria, mãe de Jesus, mas como qualquer outra mãe. Aquele Deus, – que lá não estava mas que se pressentia no brilho etéreo do bloco dourado da mármore -, era o seu Deus, imensamente generoso, capaz de perdoar todos os pecados do mundo, e que, naquele momento, clamava também pelo perdão que, – segundo o entendimento de Ana -, não era devido ao facto de ter consentido que lhe matassem o filho porque era necessário que o Homem, com este acto, – que Deus pretendia como exemplo último da espoliação da vida -, compreendesse do fim que devia dar à desumanidade, ou não fosse ele o ser mais perfeito da criação. Assim, o martírio do próprio filho deveria ser o último acto do que queria banido no mundo que criara. Contudo, seria sempre um acto sem perdão: o de tirar, violenta e cruelmente, um filho a sua mãe.

Aquele Deus estaria ausente da escultura, – talvez por pudor do artista que decerto não saberia representar o Deus envergonhado.

Mas pressentia-se o Deus que, também, queria ser perdoado.

(in Pietà ou A Imitação do Mestre, romance, 2000)


SOBRE O CARÁCTER DOS SERRANOS

Não se brinca com a dignidade de um serrano.

Desde o berço que as serras lhe limitam o mundo, paredões inexpugnáveis para lá dos quais só a fantasia consegue transpor.

O homem da planície pressente no horizonte a imensidão do universo. O serrano só pode imaginar o lado de lá, por isso, desde novo que o sonho lhe invade o espírito e a dureza agreste das vertentes lhe molda a alma. Cresce sólido como o granito das encostas e, à força de lhes desafiar a vertigem, vai aprendendo e cultivando uma relação intrínseca e cúmplice entre a vontade e a coragem. Daqui nasce a altivez da sua dignidade, que insiste em manter virgem, e a reacção enérgica contra quem a tente beliscar, bem supremo que é a sua própria essência. O montanhês não gosta que com ele brinquem quando fala a sério, nem que o tomem a sério quando brinca. Sabe separar os dois extremos, não os confunde e deles não extrai meio-termo.

É ser de grandes silêncios, e é mau juízo confundir tais estados com a ignorância, pois estes são a sua forma de entender e interpretar a humildade e o respeito, inseparáveis do apagamento pessoal a que se condena quando tais qualidades lhe são reclamadas. Assim, ferir a sua dignidade é tentar contra o seu bem mais precioso, força guardiã dos caminhos que trilha neste mundo.

É, também, sobre a conquista e roubo deste pedaço da alma, a dignidade humana, que falam os contos deste livro.

(in Meiga, como a voz da montanha, – contos serranos, 2002)


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