Projecto Vercial

Fialho de Almeida


Fialho de Almeida

José Valentim Fialho de Almeida, filho de um mestre-escola, nasceu em Vilar de Frades, Cuba, Alentejo, no dia 7 de maio de 1857, e faleceu em 4 de março de 1911 em Cuba, Alentejo. Foi para Lisboa onde frequentou durante seis o Colégio Europeu. Devido a dificuldades económicas da família, empregou-se em 1872 como ajudante de farmácia e com muito esforço conseguiu tirar o curso de Medicina na Escola Médico-Cirúrgica. Praticamente não exerceu como médico, tendo-se entregue à vida boémia e literária. Funda em 1880 a revista A Crónica, publicando vários artigos com o pseudónimo de Valentim Demónio. Colabora em vários jornais e revistas, destacando-se o jornal Novidades, O Repórter, Pontos nos II, Correio da Manhã, etc. Publica o primeiro conto em 1881, dedicando-o a Camilo Castelo Branco. As suas obras podem ser divididas em duas partes: Obras polémicas – Pasquinadas (1890); Vida Irónica (1892); Os Gatos (6 vols., 1889-1894); Lisboa Galante (1890); Livro Proibido (em colaboração, 1904). E ficção – Contos (1881); A Cidade do Vício (1882); O Pais das Uvas (1893).

Bibliografia: In Memoriam de Fialho de Almeida, Porto, 1917. Vila-Moura, Fialho de Almeida, Porto, 1917. Raul Brandão, Memórias, vol. I, 2.ª ed., Porto, 1919. Jacinto Prado Coelho, Introdução à antologia Fialho de Almeida, Lisboa, 1944. Clementina Ferreira de Sousa, Fialho de Almeida e as artes plásticas, Lisboa, 1954. Mendes dos Remédios Castelo Branco, “A expressão do cómico em Fialho de Almeida”, em Ocidente, vol. LX, 1961. Clara Rocha, As Máscaras de Narciso, p. 131.




CONTOS


O NINHO DE ÁGUIA

Na tarde anterior dirigia-me ao momento, caía a noite. Uma contemplação profunda fazia-se em torno e o campo adormecia. Sobre as árvores, o céu côncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas que exalam o último adeus. Por entre os caules seculares dos azinhais e carvalheiras, uns acharoados de incêndio ardiam em apoteoses fúlgidas, sobre que os braços do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos esqueletos. Caíam a prumo, duma banda e outra, formas de granitos áridos, mostrando nos recôncavos e na profundeza lôbrega dos barrancos os primeiros fantasmas da noite, com os seus capuzes de sombra de derrubados na fronte, e um escorregamento de passadas misteriosas, como de ronda sinistra, que desemboca na quietidão de uma viela, no silêncio da noite velha. Ao centro do abismo a vereda serpenteava, corcovando a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grés vermelho, donde os matagais irrompiam como hirsutos cabelos de uma cabeça decepada. Sobre a vegetação agressiva dos espinheiros e zambujais uma linha de água corria, fazendo mergulhos tímidos de segredos trazidos de fraga em fraga – e essa queixa contínua e chorosa das gotas caindo manso acrescentava uma nota saliente à sinfonia em surdina dos vegetais adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado começava dali a subir pelo irregular das colinas. Não podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito – vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha, à esquerda, sobes a encosta.

– É a última azinheira, tronco direito e vermelho, com a cortiça descascada. Leva corda para subires. Olhas para cima, aproximas-te sem fazer ruído, ouve – sem fazer ruído! dás com o ninho logo. Quando a noite se fecha, a águia chega, asas abertas, voo circular e gritinhos alegres de boa ménagère que volta com o dia ganho e um réptil no bico curvo, para os pequeninos esfomeados.

Decorar todo este itinerário, prometendo não esquecer a melhor cautela, iria devagarinho, muito devagarinho, sem chapéu, descalço mesmo, olhando para cima e em direitura à azinheira de tronco vermelho e nu de cortiça. Tinha então doze anos, era rubro e selvagem, de grenha fulva, dentes pequeninos e brancos, que eriçavam de gumes o meu riso escarlate e feroz – de korrigan vingativo. Achavam-no o orgulho de u rei e a pouca educação de um herdeiro presuntivo. Era de poucas palavras, vinham-me ao sol alegrias colossais que transbordavam de mim como o rufo de um tambor extravasa de caixa de ar; todos os meus músculos amplos e duros na contracção, contornados nas linhas altivas de um atleta imberbe, amavam luta e se tonificavam na carreira. Passaram até ali numa herdade, entre boiadas de que uma mansidão poderosa se abala glorificando a forca, a rabeira dos arados, plena liberdade montesa, onde o homem regula as pancadas do seu coração pelo ritmo tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoés e hilariantes. Manhã nada, já eu estava a pé, sentado a banca da cozinha com os ganhões da herdade, diante da açorda patriarcal que o alho impregna de odores vermífugos. Vestia como eles a camisola de lã, o largo chapéu de borla e os grossos sapatos cardados, pião na algibeira, uma cicatriz transversal na testa, de pedradas antigas. Era imperioso e adorado; de resto abusava, dizia sempre – quero, porque quero! Quando eu dormia, minha mãe ia beijar-me, e de uma vez, acordando sob um desses beijos, que são como ninfas albas caídas no mármore de epidermes frias, voltei-me e disse enraivecido:

– Os homens não se beijam, apre!

Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo, cantando, fazia-se apoteose da postura recente de uma galinha amarela, que desposara. Fui-me a ele e torci-lhe o pescoço.

– Para não mangares comigo. Toma!

A eira, diante do monte da herdade, era um plano inclinado, dura e polida, sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando até baixo. Nunca conseguiam trazer-me limpo – que tinha um ódio insofrido pelos fatos novos e pelos peitos engomados, considerando a gravata um traste inútil, de que me servia para amarrar chocalhos ao pescoço das ovelhas. Só anos depois acreditei que o mundo que eu não conhecia, o outro, fazia dessa tira de seda uma fronteira perigosa – por muito infestada pelo contrabando.

Nessa dia, mal deram cinco horas e me apanhei fora da escola, deitei caminho ao montado. Tinha à cintura uma corda de linho com aselha, para subir à arvore, e no bolso uma navalha de podar com gume de fouce. Todas as precauções foram por mim empregadas. Ao dobrar da rocha, descalcei os sapatos e tirei o chapéu. Meti a navalha no peito e desenrolei da cintura a corda. Depois, resolutamente, dirigi-me à azinheira. Lá estava o ninho, era enorme e construído sobre três pernadas robustas – Como sobre os três dentes de uma forquilha. Eu nunca vira coisa igual, a falar sinceramente. Tinha o feitio oval de um berço e ficava tão alto, tão alto que fazia vertigens. Era preciso subir até lá. Atirei a laçada à primeira bifurcação do tronco, icei-me.

Depois, escarranchado na pernada mais sólida, joguei o laço às ramarias superiores e fui subindo. Á medida que me elevava, a ascensão entrava a dificultar-se; folhas em tufos compactos prendiam-me os cabelos, os ramos oscilavam sob o peso do meu corpo, e de quando em quando soavam estalidos ameaçadores. Mas via já bem o ninho de águia; Primeiro um alicerce de quatro ou cinco ramos de sobro, cruzados; depois um leito de folhas secas e pequenas hastes; sobre o leito folhas macias de trevos, de tamujes e fenos – e, forrando delicadamente o estojo, uma colcha de penugens brancas que a águia arrancava do peito, nos seus transportes de mãe. Com insano trabalho cheguei-lhe ao pé. Pulava-me o coração no peito, e qual não foi a minha alegria ao ver aconchegadas no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas e tremendo de frio, duas aguiazinhas implumes, disformes ainda, mas de vigorosas proporções! Cerrara-se de todo a noite. Um claro luar com reflexos metálicos atravessava as vaporizações do arvoredo, penetrando-as de uma poeira de átomos cintilantes. Nas faias da ribeira, os rouxinóis faziam jogos florais arremessando-se os sonetos mais rítmicos; o veio cristalino dos regatos ia contando às folhagens húmidas dos balseiros e canaviais uma lenda antiga de fadas azuis e tesouros mouriscos, narrativa muito em segredo, ente murmúrios de beijos que ao longe mansamente se perdiam.

Dava trindades o sino da aldeia – e as aspirações pairavam naquele calado ar em que borboletas negras saltitavam, traçando sinais de mulheres predestinadas. A lua, na tela do céu esmaiado, lembrava, com as suas ranhuras, a mascara da comédia de uma ópera cómica, que a luz da ribalta ilumina. Ergui os olhos – acabava de ouvir um grito. Vi a águia pairar um momento por sobre a minha cabeça, de asas abertas, cujas rémiges em cutelo siflavam como velas de um moinho em actividade. Depois aquele vulto negro desceu perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o bico de gumes curvos, para me ferir. Agarrado à corda dei um salto, abandonando o ninho, e fiquei suspenso na árvore um instante, a dez metros do chão pedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer? A corda por curta não chegava ao chão. Deixar-me cair era morrer. De repente, porém a enorme pernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente vim baixando. Quando pousei no chão, com os dois filhos da águia no peito da camisola e a navalha nos dentes, senti um prazer sem limites. Tinha destruído um felicidade e praticado a façanha de subir à azinheira, sem outro auxílio mais do que uma pequena corda nodosa e fina. Levaria os implumes para a herdade e criá-los-ía com carne e sangue fresco de cordeiro. E eles cresceriam, alcançando as poderosas formas dos pais – bico adunco e córneo, a terrível garra contráctil, simetria elegante nas asas, que um jogo muscular movimenta com inexplicável destreza. E pertencer-me-íam, estariam na gaiola por minha vontade, comeriam se eu quisesse. esta ideia de ter alguém sob a minha obediência encheu-me de orgulho. Podia fazer mal sem ter medo das queixas que arrancasse. E vinham-me tendências para oprimir, para espicaçar, para expor à tortura. Também meu pai me batia! que sofressem! Na azinheira a águia ia de ramo em ramo, soltando, a cada investigação inútil, o seu grito melancólico. Corria as arvores próximas, voejava quase á flor do terreno, batendo com as asas dos tojais da selva, e indo em todos os sentidos como alucinada. Depois abriu as asas horizontalmente com um pulo, susteve-se nas penas como um pára-quedas, e com firmeza cortou o ar obliquamente subindo à região das nuvens. De quando em quando, na calada do campo morto, o seu grito de mãe roubada ouvia-se na escuridade, como o silvo de um barco em perigo que pede socorro.

A minha paixão daquela noite foram os filhos da águia.

Persistia na ideia de criá-los – de os fazer gente, dizia eu. Tinha os olhos quase fechados com uma orla amarela e a nictitante espessa, meio descida, o pescoço nu oferecia um desenho esguio, andavam de rojo, dando pequeninos gritos em busca da penugem quente da mãe. Meti-lhes à força miolos de pão pelo bico, que eles bolsaram escancarando a goela em carantonhas de graça infinita. Em seguida, servi-lhes água, mas recusavam tudo, os biltres e se os deixava um momento, punham-se a girar de cabeça alta, à procura do aconchego que não sentiam. Minha irmã, que, apesar do mistério em que eu envolvia as minhas operações, conseguira espreitar o que eu fazia, trouxe-me então a ideia de meter as aguiazinhas debaixo da galinha que na capoeira chocava os ovos que fora pondo.

Ela pensa que são já pintainhos, e as águias vão crescendo, crescendo... E dás-me a mais pequenina, sim?

– Dá!... uma figa.

Quando nos mandaram deitar ás oito horas, tudo estava feito – A galinha consentira em adoptar os dois órfãos e a coisa ia bem! Não pude dormir em toda a noite com a ideia nos pequenos. Se a galinha os picasse, e se os deixasse cair no cesto!... os gatos lançar-se-iam furiosos contra esses dois desamparados e devorá-los-iam, rosnando. – Aplicava o ouvido: se ouvisse chiar saltava logo da cama. Quanto tempo levariam a crescer? Um mês ou dois – estávamos a catorze. E contava pelos dedos – era tanto tempo ainda! Mandaria fazer um carro, que os filhos da águia puxariam. E com que inveja ficariam os rapazes da escola, vendo-me arrebatado pelos voláteis, como esses deuses que representava Manual Enciclopédico! No dia seguinte, ergui-me cedíssimo, havia estrelas ainda. E mesmo descalço fui, pé ante pé, até á capoeira, para investigar do que havia. Os moços, na eira faziam já girar os bois na retracagem dos calcadouros, e ouvia-se na altura o angelus vibrado pela cotovia. Acocorei-me devagarinho ao pé do cesto estendendo as duas mãos ao longo da palha.

A galinha dera sinal e, cheia de cólera, as penas alvoroçadas precipitou-se contra mim a bicada, implacavelmente, até me fazer sangue. Às apalpadelas percorria a cama de palha em que os ovos se aninhavam; achara apenas uma das aguiazinhas. Diabo!...

Então, sem medo já que dessem por mim corri a abrir a lucarna, e o dia entrou humedecido pela neblina cheirosa da manhã. Estava apenas uma águia, era certo!... Dei um berro de novilho marcado a ferro candente, que ressoou por toda a casa. Queria outra águia por força, por força, por força! Queria a, ao pontapé a tudo, ébrio de uma raiva sanguínea. E num formidável choro rolava-me pelo ladrilho todo nu. Todo o meu grande desejo era que me atendessem e viessem todos, surpreendidos, saber o que havia. A voz de minha mãe chamava pelas criadas; entrei a sentir nos quartos ruídos bruscos que se arrastavam e saias que se enfiavam à pressa. Já gritava menos, conseguira o meu fim, tinha incomodado e metido susto a todos de casa.

metido susto a todos de casa. Era bastante! Agora, iriam todos procurar a minha águia, haviam de ma encontrar por força, ou arranjar-me outra novazinha em folha, como aquela. Apre!

Quando de repente me chegou o grito da mãe roubada, grito brusco e quase surdo, como se o coasse uma laringe extinta. Toda a noite o ouviria, ora perto ou distante, sempre com uma nota de ira impotente e suplicação desprezada, na tenebrosa calada do matagal. Fui para a lucarna, instintivamente atraído, à escuta.

Era um grito intermitente, primeiro muito fraco e repetido, como de alguém a gemer – gri! gri! gri! – após, subitamente, essa voz dilatava-se, enrouquecida, fazendo quase um bramido. Uma mulher não expressaria melhor a angústia, o desespero e a morte. Corava o oriente como uma epiderme sadia traduzindo a comoção dum beijo; nas moradas dos ninhos, entre decorações de folhagem e carícias de poética doçura, as famílias de pássaros de melros, de pintassilgos, rolas, rolas e poupas, chilreavam felizes e singelas, deslumbradas na irradiação do céu.

Só ela, a águia, ia chamando embalde pelos seus, através da vastidão do éter, em que a vibração luminosa ondulava, e apunhalada no seu único amor como essas cruéis imperatrizes que Deus castiga no único ponto vulnerável da sua alma.

Com os olhos alongados, via-se rastejar à flor do solo, pelas chapadas e penhascos, extenuada e rouca, despregando as asas oblíquas, de enormes rémiges em cutelo, como tectos de lares despovoados pela assolação da morte.

– Coitadinha! – dizia eu comovido. – Coitadinha!...

Então fiquei entorpecido num constrangimento profundo e singular, que nunca tinha experimentado. Sentia na goela o embaraço inexprimível que é nas crianças o prólogo do choro soluçante e inconsolável, sob que a alma germina em bons impulsos e leais dedicações, como na terra se abrem as flores primaveris, sob o influxo das primeiras chuvas.

Antes que viessem surpreender-me corri a vestir-me, e resoluto, os olhos cheios de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois a aguiazinha. Minha irmã chamou-me, soluçava.

– Olha, morreu!... – disse-me toda aflita, mostrando-me o cadáver da outra águia, que, durante a noite, com mil precauções, tinha ido roubar ao cesto.

Por isso achei falta – gritei colérico, batendo o pé. E aos urros, crescendo contra ela de punhos cerrados, dizia-lhe golfando impropérios:

– Maldita! Má! Peste! Nosso Senhor há-de castigar-te, deixa estar.

Ai de mim! Na capoeira, a galinha raivosa, reconhecendo o outro enjeitado à luz da manhã, acabava de o matar à bicada, lançando-o fora do cesto.

Então desatei a chorar. Nunca fora tão desgraçado, nunca!...Nem quando me davam açoites com o chinelo, o que estava debaixo da cama de meu pai, a rir-se de mim pelo buraco ignóbil da tomba. E agora, que fazer?

Meti no seio da camisola os dois enjeitadinhos mortos, e a correr atravessei a eira, sem dar bons-dias a ninguém. O dia começava. Rasgando as escuridões em que se envolveria, o panorama saía das nebrinas dissipadas a golpes de sol aqui e além, nas cristas dos outeiros. Desci a correr a ladeira do monte, pendores suaves donde o olhar abrangia, para todos os dados, perspectiva do mais belo matriz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e faias, mais para além, hortejos alegres onde chiavam noras e se espiralava o fumo dos casais, vinhedos sem fim bordando sinuosidades bucólicas, brancas ermidas pousadas nas montanhas, e perdendo-se na serenidade esfumosa do horizonte, povoações que na luz iam fazendo mais e mais nítidos os seus delineamentos. A paisagem tinha agora uma nitidez de gravura. As aldeias sorriam para o noivado da natureza em festa, enquanto, duma banda e outra, grandes massas de arvoredo abriam destaques surpreendentes.

Iam tranquilamente pelos terrenos ceifados os carneiros dos rebanhos, alongando o pescoço, a fofa corpulência tufada da lã patente em camas de espiraizinhas miúdas.

Alguns velhos guias experientes e graves, focinho erguido, a grossa cornadura em anéis de diâmetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um dandy, chocalho pendente por correias de couro cru, a orelha inquieta, olhavam vivamente o largo, bebendo os sons e procurando-lhes a origem solícitos, como quem tem sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos pequeninos. Acima da redondeza das ancas de alguns, cabritinhos fulvos, de grandes orelhas horizontais, uma meiguice cândida na vista, erguiam-se a prumo furando caminho, as maxilas entreabertas, por onde se escapa um queixume tenuíssimo – me! me! – alguma coisa como os rudimentos da cartilha do rebanho. Vários preguiçosos, estacados a meio da corrente, mergulhavam o focinho na água, bebendo. Poucos tinham já passado e cortavam a dente as gramíneas alastradas nas barranceiras. O velho cão descansa, numa postura séria de patriarca, enquanto nas meias-tintas dos planos secundários, o pastor, de manta ao ombro e polainas encarquilhando na tomba dos sapatos cardados, tinha o seu ar pasmado de montanhês, olhando a catarata de ouro fundido que o sol jorrava do nascente, numa apoteose de cáusticas vivas – olhar em que se estagnava a silenciosa doçura dos olivais cinzentos e se reflectia a concepção panteísta de um Deus amantíssimo, que fecunda os trigos das searas, preside às crias e vem de noite, mansamente, com o seu capuz de estrelas derrubado para diante, lançar a benção ao gado que dorme, inoculando no sonho do pastor o esmalte de um sorriso de ceifeira, vermelha como as cerejas húmidas de Junho.

Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude saltar num pulo de lobo, e, sem me deter, entrei a trepar a pedregosa encosta, na direitura do ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de tojeiros e silvados, cabeças de rochedos pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo a quem ia. E aquele recanto, plutónico e brusco, desenhava-se numa como penumbra de floresta, que de cima caía filtrada pelos amontoados da folhagem. Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região, equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis, que na planície entoava o poema sinfónico da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha, quando muito, o eco repetia a última sílaba, num murmúrio tímido, como rezado à roda de um féretro, e morria.

Pela montanha, troncos penitentes e negros orando de braços abertos. Nos pegos da ribeira, as reticulações verde negras dos limos deixando evolar a putrilagem das febres más. Silêncio abrasado, pesando.

Quando cheguei ao ninho, arquejava. E, antes de erguer a vista sobre ele, detive-me um instante, olhando à roda com um terror sombrio, que o remorso envenenava. Se a águia desse comigo podia matar-me à bicada. E teria razão – ai de mim!

Estava sozinho. Não se via dali o monte já. De repente, casualmente, sem mesmo querer, dei como a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei tremendo ante a raiva silenciosa que paralisava a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim, para delacerar-me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança cruel.

Olhámo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques enormes de varetas curvas. A imobilização porém continuava e o pescoço permanecia caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra – a mesma indiferença.

Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à primeira pernada da árvore. Quando atingi a altura do ninho, pude olhar bem de perto a águia agonizante, que um frémito vago percorria. Era poderosa e magnífica, de enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges se aguçavam como punhais, na ponta. Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de encontro aos frouxéis alvinitentes em que os filhinhos tinham visto a primeira luz. A cabeça um pouco chata descaía adiante num bico de bordos dentados, e sobre a íris de oiro a nictitante ia descaindo na sombra da agonia, como um apagador sobre a luz do círio pascal.

A águia morreu nesse dia, à mesma hora em que as outras aves voltavam cantando aos ninhos, para dormir com a prole. Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos de meu pai, pude ver nos cimos da azinheira gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando na sombria folhagem da árvore. E vinham-me então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!

Vai completar-se um ano que a tua filha desceu à cova, ó minha mãe! E, vendo-te curvada no teu luto, pobre mulher envelhecida de lágrimas, sublime por toda uma vida de abnegação sem exemplo, para mim fico pensado que deve ser cruel o Deus que tu adoras, se nunca teve remorsos de haver roubado também. – o Ninho de Águia.

1881 – Vila de Frades



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