Projecto Vercial

Conde de Ficalho


Francisco Manuel de Melo Breyner (1837-1903), Conde de Ficalho, historiador da botânica em Portugal, escreveu uma biografia de Garcia de Orta e outra de Pêro da Covilhã. Foi também ficcionista, distinguindo-se com a obra Uma Eleição Perdida, publicada em 1888, que contém a novela do mesmo nome e alguns contos regionais de ambiente alentejano.




UMA ELEIÇÃO PERDIDA


A CAÇADA DO MALHADEIRO

Tínhamos ido – o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro do Vale Fundo e eu – em busca de um porco, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma mancha pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.

O malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não estava; mas ali os cães pegaram com força no rasto, e em baixo no vale achámos-lhe as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, e de vale em vale, até que, quando nos decidimos a voltar – sem ter visto um pêlo do porco – estávamos a duas léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em Dezembro, já ao cair da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo do lado do sul, anunciavam uma noite de água.

– Nós com um tempo destes não deitamos às Pedras Alvas senão alta noite – disse o mestre Domingos.

– Não deitamos é certo! – respondeu o malhadeiro. – Má raios partam o porco! – acrescentou, para se consolar.

– Mas que há a fazer?

– Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O Tio João sempre há-de ter alguma coisa que se coma, e um lume prà gente se enxugar.

– Pois vamos lá.

As nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais, sobre o verde-negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato, e o mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães, tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz ténue da tarde algumas poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta da asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as espingardas estavam carregadas de bala, bem acomodadas debaixo do braço, com as fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para atirar a galinholas.

– Má raios partam o porco! – dizia de vez em quando o malhadeiro.

Era noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se desenharam diante de nós no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães – estávamos na Crespa. O Tio João veio à porta, conheceu a voz do outro malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa com a nora e os netos pequenos; o filho andava trabalhando longe dali, e não recolhera.

Improvisou-se rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre. E quando acabámos de cear e nos chegámos para o lume, acendendo os cigarros, penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono da chuva, e as lufadas do sul, assobiando na telha-vã da malhada.

Naturalmente falou-se de caça – o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros caçadores da serra.

– Oh! Tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? – disse o ferreiro depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.

– Fiz... fiz... – disse o velho como quem meditava.

– Você devia-nos contar esse caso esta noite.

– Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.

– Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar tão bem a preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.

– Pois conto – respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro a uma brasa.

Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara, enérgica, sulcada de rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Vale Fundo, estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda fumavam. A chama, levantando e abaixando, projectava-lhes as sombras, desmesuradamente grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico.

– Isto por aqui no tempo dos franceses esteve mau... muito mau! – começou o malhadeiro. – Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi; mas depois quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes, nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai quis ficar aqui.

– Pra onde há-de a gente ir? – dizia ele. – E depois isto é cá desviado, não vêm cá.

Eu, ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezassete. Estava aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive, era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os seus vinte ou vinte e um.

Passou tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava falquejando umas alvecas aqui na empena, a Inês que tinha ido à fonte... à fontinha lá abaixo na umbria, sabes Joaquim?... a Inês veio fugindo ladeira acima, e chegou aí esfalfada, dizendo: – Aí vêm... aí vêm!

E vinham. Aquilo sorte é que se tinham desviado da estrada, perderam-se e vieram a corta-mato, direitos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um – estou-o vendo – um alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído aos cantos da boca, trazia um lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça. Meu pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo:

– Esconde as espingardas.

Fui àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-lhes, passei à porta de trás, e fui meté-las na palha da arramada. Quando voltei já os franceses estavam dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão – vino... vino... – e faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...

O velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa, que não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história adquiria uma intensidade de vida, uma actualidade singular.

– Os franceses – prosseguiu o Tio João – comeram, beberam, estavam já alegres, rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.

Eu vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; e quarto ou cinco deles agarraram-se a meu pai e depois de uma luta deitaram-no ao chão. Eu tinha levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por outros dois. O loiro ria-se, com um riso mau, mas dizia – quis-me a mim parecer – que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande de inquirir, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim ataram-me com um baraço e com a minha cinta.

Às moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...

À mesa ficaram dois franceses, bebendo.

Eu ouvia minhas irmãs chorar lá dentro, chamando-nos, que lhe acudíssemos; e via o pai deitado no chão, com a camisa rasgada, e as mãos atadas atrás das costas. Na luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas, e, dos olhos muito fitos, vi correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue.

Não posso dizer o tempo que isto durou; mas pareceu-me muito.

Quando os franceses saíram, rindo e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam para o pai; a mim pegaram-me, e, assim mesmo atado como estava, levaram-me à porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou; mas em lugar de lhes mostrar a trocha que vai direita à estrada, mostrei-lhes a que desce para a ribeira. Essa trocha era a mais seguida das duas – eles não desconfiaram, deitaram as espingardas ao ombro, e desceram vale abaixo.

A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava, e, quando a Mariana me desatou, disse-me só:

– As espingardas.

Fui à arramada buscá-las, e quando vim já o pai tinha o polvorinho a tiracolo; apontou para o outro polvorinho que eu enfiei, e, tirando da arca o saco das batas, esteve-as dividindo, deu-me um punhado delas e meteu as outras na algibeira. Saímos sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga era – salvo seja – como uma criatura; quando estava numa porta nem latia, nem mexia um cabelo. A ponta dos farrejais abaixou-se; desafivelou a coleira do chocalho da cadela e deitou-a fora. Nós íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales mais ásperos. Lá abaixo, aos matões do barranco do Alendroal é que os apanhámos. Vimo-los de longe numa volta da trocha. Meu pai não falava, fez-me sinal que fosse à meia encosta da umbria, que ele ia pela soalheira; e quando nos apartámos, numa voz ainda trémula, disse-me só estas palavras:

– Não atires, sem eu atirar.

Eu meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas. Era uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo. Fui... fui, até que cheguei bem a tiro. Já nesse tempo atirava bem.

Desde pequeno que andava com meu pai, e você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?

– Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala!

– afirmou o ferreiro.

– E era! – continuou o velho. – Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra encosta. Os franceses iam em baixo no vale, todos numa linha porque a trocha era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e caiu de bruços. Os outros pararam; eu apontei bem um, dei ao dedo, e ele caiu, redondo. Ao segundo, tiro viraram-se para o meu lado; então o pai – para me livrar – apareceu-lhes no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta direito a ele, mas era um bastio de mato muito forte, não puderam romper, e, deixando os dois mortos, abalaram a correr pelo vale.

O pai chamou-me e fomos juntos sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos, de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do Sovereiral.

Quando os topámos foi já no barranco do Algeriz, ali ò açude do Moinho Velho. Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do barranco – mesmo onde tu mataste-la porca grande a semana passada, Joaquim.

Era quase à queima-roupa; caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que restavam ficavam direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na direcção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima da minha cabeça. Nós separámo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos carregando. Quando atirámos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro, perdêmo-los.

Fomos para um cabeço e ficámos ali toda a noite. Eu estava cansado, era uma criança, pra ali me deitei. Mas o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava com o frio e com a fome, via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.

Logo ao romper da manhã abalámos. Os três franceses tinham tido toda a noite para fugir; mas aqui na serra quem não é prático, jamais de noite, não avança caminho. Pode um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim deram-nos trabalho; atalaiámos pelos cerros; rastejámos os vales e as passagens dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado; até a cadela – Deus me perdoe – já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando os vimos lá muito em baixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.

Quando voltámos para a malhada, já os grifos andavam no ar às voltas, às voltas, por cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.

Meu pai ao entrar em casa não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.

O lume ia-se apagando, sem que – presos à narração – nos lembrássemos de o atiçar; e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas, iluminavam vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado sobre os joelhos o pequenito adormecido.



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