Projecto Vercial

Carlos Nogueira Fino


Carlos Nogueira Fino

Carlos Nogueira Fino nasceu em Évora em 25/11/50 e residente no Funchal desde 1959. É docente do departamento de Ciências de Educação da Universidade da Madeira. Obras publicadas: XXIII Poemas de Ilhamar, (Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1987), prémio Leacock 1987; Simbiose (Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais,1988), e ilustrações de Celso Caires; Este Cais Vertical, (Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1989) Iniciação à Luz, integrado na antologia ILHA 3, (Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1991); Contemplação do Olhar, (Funchal, Colecção Cadernos Ilha, nº 6, 1992); (Pre)Meditação, (Editora Signo, P. Delgada, Açores, 1992); Alquimias, integrado na antologia ILHA 4, (Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1994); Segundo Livro de Ishtar, (Editora Limiar, Porto, colecção Os olhos e a memória, nº 66, 1994); Arco e Promontório, (Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1997) prémio cidade do Funchal Edmundo de Bettencourt de poesia, 1996); Poema do Alto do Milénio, (incluído na revista Limiar de poesia, nº 10, 1998); Inquietação da Água, (Editora Limiar, Porto, colecção Os olhos e a memória, nº 77, 1998); Maratona & Outros Poemas, (Câmara Municipal do Funchal, Colecção Livros de Cordel, nº 3, 1999).


ALGUNS POEMAS PUBLICADOS EM LIVRO


há-de haver um mar brando
um sono de planície nem que seja um manto incandescente
de nuvens
e as maçãs das palavras recolhidas da boca a fingir
de vertentes

há-de haver um mar
e os soluços verdes do vento construtores de navios
de entrar pelo mar dentro como em terra própria
o verde das velas mas os pés enxutos mas os gestos
brandos
e uma mulher de cabelos de flâmulas
desperta

o cesto da gávea é no cume da ilha onde os olhos doem

(XXIII Poemas de Ilhamar, 1986)

 
 
 
a cidade tem língua
podes senti-la introspectiva na boca
se por acaso mãos
abstractas te aflorarem a linha das águas
ou dos olhos
e um mar incestuoso te envolver em labirintos

deita-se de coxas entreabertas
no tálamo das praças sob o dossel dos pássaros
e deixa correr apartando os cabelos a seiva
e a pressa das ribeiras
despida de buganvílias mas sôfrega

e tem braços
de mel
correndo nas axilas
sem sinais de pudor

(XXIII Poemas de Ilhamar, 1986)

 
 
 
vem escolher o encanto para que o mar nos respire
quando a calma sufoca vem
prender esta visão de inquietante alegria no silêncio mais
alto
para que seja farol na ponta de um desejo alado

esquece o mar absurdo
os barcos de papel eternamente longe os olhos ancorados
os passos como pedras para os braços crescerem verticais
e os sonhos inautênticos
o mar das armaduras submersas por enquanto vem
içar as gaivotas para que as possas baixar quando quiseres
se um céu apenas negro for preciso

vem dormir sobre mim com o peso das coisas arribadas
o peso de nascerem sem mastros as noites e ser ainda cedo
e ser sempre tão cedo ao pé do mar que os olhos nem repousam
nem as espadas se cumprem erectas na fímbria de água
dos desejos

vem dormir sobre mim ainda é esta a manhã de quando o mar
unificava
as escarpas e as mãos os cumes e os destinos os anseios
e as vozes
e é tempo de enfrentar a distância das coisas aqui
onde as coisas não cabem mas todos os rumos se concentram

(Este Cais Vertical, 1989)

 
 
 
sabemos este ofício de voltar às águas
mas não o de esvair os olhos de silêncios

sabemos como abrir os poros
e dissolver as vértebras
mas não como encurtar uma distância tão íntima nos dedos
como a curva de um longo adeus imponderável

sabemos este cais
onde assentamos as árvores despidas
uma a uma
para que a íntima luz das ondas as penetre
com a raiz fugaz do inacessível

sabemos este ofício de ficar à tona
do fundo do que somos

(Contemplação do Olhar, 1992)

 
 
 
não devia falar-vos destes gritos
que me abrem súbitos caminhos através da carne
nem talvez destes braços que se precipitam nas águas
mas apenas dos muros
de pedras e raízes sobre as margens diáfanas
que separam as coisas

não devia falar-vos dos pássaros
nem do seu modo oblíquo de descer nas palavras
nem da nesga de azul a teimar do húmus
um último diadema de esperança

mas do verde perpétuo da floresta imóvel
onde crescem as vozes
e rebentam as chagas

olhai
o crescimento
o medrar do sono mais do que o florir das lâmpadas
os pássaros emboscados na alma das crianças
as máquinas a tecer as máquinas o ardor as
cicatrizes

olhai os nossos traços que avultam destes ramos
que às vezes estremecem de vertigens submersas
e sobram desta luz de pura síntese

((Pre)Meditação, 1992)

 
 
 
não devia falar-vos destes gritos
nem destas cicatrizes de onde brota a ilusão da terra
para o lúcido canto do fascínio

mas da indecisão de as separarmos do modo de as dizermos

não devia falar-vos do silêncio
nem como se nos crava na garganta e despoja as palavras
e nos despe o ardor
que avulta agora exposto sobre as ervas

mas dos astros silenciosos que pairam sobre o solo
onde repouso os lábios
e onde ligo as veias

olhai
as suas luzes
o brilho das corolas que se abrem para dentro
das almas onde ondulam os prados infindáveis
os olhos a buscar os olhos o horror da
imensidade

olhai
o crescimento
a água que unifica o chão que desagrega
as serpentes solares que nos afagam os dedos
a habitação das formas pelos corpos o amor o
abandono

olhai a transcendência nocturna e transbordante
dos traços que deixamos nos sulcos que nos fazem
e avultam deste olhar de puro espanto

((Pre)Meditação, 1992)

 
 
 
imagina uma cidade incólume
e os mortos de um estranho apocalipse
incandescendo em privado

eu sei todo
o silêncio é urdidura
todo o poema uma armadilha
mas às vezes as cidades brilham
como o brilho dos mortos tenuemente nas janelas
e as areias repousam sobre as coisas
etéreas
entre as cinzas

todo o olhar é um engenho
a capturar os olhos às vezes a cidade
é a incerta direcção da morte
contida no seu íntimo
um movimento sob os organismos das palavras
e o ar uma ilusão de quartzo
estagnada nas narinas

ishtar
é como o gume que separa os corpos
quando se penetram
e o laço que acorrenta as armas divididas
todo o olhar
entontece

imagina a cidade
as sinapses das ruas com os traços das almas
a imensa e celular presença contradita
pelas manchas de sangue da inocência a pedra sobre
pedra
o rio

(Segundo Livro de Ishtar, 1994)

 
 
 
outra ilusão as
águas

desejo-te corpo de poema habitação e lâmina
anunciação da terra pelo centro da testa
fio de números
lúcido rosário de coisas incontáveis
construção de sinais inquietas incursões nas sombras

e em pleno abrir
o transepto solar
a abside do espanto sobre as mãos em ogiva
o azul dos caminhos
sob a pele

e um plano de ignorados misteres
cerzir os livros soletrar os lábios falar às
superfícies
dançar enquanto as mãos se enfunam
e os olhos se dilatam
subir pelas nervuras ao alto do sentido escutar
o eclodir do próprio nome
ouvir-te enquanto as folhas crescem
e o tempo é uma esfera viva e rumorosa

outra ansiedade
as sílabas
o modo como cantam o fervor e os braços
as pálpebras sublimes
as frases justapostas ao universo da língua
a alva do silêncio
o som que o exorciza

desejo-te como
se o desejo fosse como a pedra
e as flâmulas do dia o procurassem
uma súbita linha de clivagem um assalto de fogo
na garganta um reino dividido um tenso
voo de flecha
um olhar em sucessivas dobras sobre os olhos

e um pássaro mortal
em pleno golpe

(Arco e Promontório, 1996)

 
 
 
e penso nos pedúnculos
de onde a sombra inflama as incontáveis
pétalas

a seiva inalterada
o solo ensanguentado

olho-me nos olhos
de onde um livro soletra
as folhas inquietantes
e os gestos que as águas encaminham
rente à inocência

penso vertiginosamente no teu corpo
na sôfrega emoção da lâmina
nas veias que a penumbra invade sem que tu
resistas
nos flancos ondeantes onde o olhar
se rompe

e penso intensamente na metamorfose
a acontecer nos signos do meu corpo
o vértice do chão onde interrompes
o curso do meu nome
com a tua pura presença inacabada

o fogo no meu pulso
como um lírio

(Arco e Promontório, 1996)

 
 
 
como a água
meu amor
também as asas nos sacodem
no final do beijo

quantas páginas faltam?

se a fronteira é das águas quem reprime a espuma
onde começa a praia?

no meu espelho o que via
era um homem de rosto voltado
de rosto voltado
para sempre
e uma linha de ombros onde as águas
e os teus lábios de espuma meu amor
me embaciavam

também ouvi chamar a isso
entardecer
idade
inclinação do sol

mas também cicatrizes ou sulcos como preferires
essa teia onde os dias marcam os seus signos
como as águas no solo meu amor
até furarem

(Inquietação da Água, 1998)

 
 
 
a que se aproxima subindo escadas invisíveis é
a minha amada
a que afaga a minha ânsia que nunca cicatriza

ela dispõe unguentos sobre a minha terra
e os lábios sobre as sombras que atravessam
o meu rio

ela é o musgo
e envolve num olhar perfeito as minhas árvores sonâmbulas
tocadas pelo ardor dos pássaros mortais

ela navega
erecta sobre os muros o murmúrio das sebes o lento
entardecer das fontes o eterno regressar das nuvens
aos redis

é o tecto de colmo o leito chão da noite

a minha amada
é a que fia persianas até cobrir os olhos de uma névoa
única
e canta enquanto as árduas estrelas se consomem

a que me beija os pulsos onde as sarças ardem
doendo como as rosas

(Maratona & Outros Poemas, 1999)


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