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Fernão de Magalhães


Fernão de Magalhães Gonçalves (1943-1988) nasceu em Jou, no concelho de Murça, Trás-os-Montes. Foi professor em Murça, Chaves e nas universidades de Granada, Espanha, e Seul, Coreia do Sul. Foi poeta, ensaísta e investigador. A sua obra ensaística é basicamente dedicada a Miguel Torga. Obras: Sete Meditações sobre Miguel Torga (Coimbra, 1976), Manifesto por uma Literatura Legível I (Coimbra, 1979), Manifesto por uma Literatura Legível II (Coimbra, 1980), Andamento (poesia, Coimbra, 1984), De Fernão Lopes a Miguel Torga (Granada, 1985), Ser e Ler Torga (Lisboa, 1987), Memória Imperfeita (poesia, Lisboa, 1987), Nueve Poemas (poesia, Granada, 1987), Júbilo da Seiva (poesia, Coimbra, 1988), Modo de Vida (Braga, 1988), Assinalados (Braga, 1989), Algumas Cartas (Braga, 1990), Obra Poética - Antologia (Viana do Castelo, 1992), Ser Torga (Porto, 1992), Ser e Ler Miguel Torga (Porto, 1998)




MEMÓRIA IMPERFEITA


STABAT MATER I

Um dia (talvez um dia só) eu fui menino
era de tarde e havia sol (há sempre sol na
memória de ver-te a cada instante
vigilante aos
prodígios do meu próprio destino)

e eu joguei no Largo à minha idade
aos arcos e aos piões aos
polícias e ladrões e
à pura liberdade

e não voltei ao Largo hoje
resta a árvore bravia que me fiz
o caule que construiu a sua história
mudando a tua memória no
ar que respira e na raiz.



STABAT MATER II

Um dia deixaste de poisar os olhos sobre os objectos
próximos e demorava-los nos cantos altos e nas junturas
do telhado.
os tens gestos de levar o lenço às pálpebras esvaziavam-se
da consciência do momento em que o xaile negro te caía
de um ombro e ias mergulhar-te na escuridão do quarto.
nas rugas da tua boca desenhava-se para sempre a atitude
de presenciar aquela hora em que se cumpriu a tua solidão.

um dia deixaste de ir e vir da cozinha para o quarto dele
com esse andar pesado e atento de quem conhecia cada tábua
do soalho e a calcava com pressão diferente.

olhavas a figueira do pátio que secara sem explicação.

um dia desceste os quatro degraus da varanda
antiga e foste chorar voltada para a parede branca.

rio de silêncio sem margens sem origem.


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