Projecto Vercial

Frei João dos Santos


Frei João dos Santos (1570?-1625?) terá nascido em Évora e falecido em Goa. Era frade da Ordem dos Pregadores, partindo para a Índia como missionário. Regressou a Portugal em 1607, voltando a Goa em 1622, onde viria a falecer.

Obras: Etiópia Oriental e Vária História de Coisas Notáveis do Oriente (Évora, 1609: esta obra foi traduzida para francês e publicada em 1684 com o título Histoire de l'Éthiopie Orientale traduite de portugais de R. P. Jean dos Santos, réligieux de S. Dominique); Os Comentários da religião dos Rios de Cuama; Relação do Descobrimento das Minas da Prata da Chicova, escrita em o ano de 1618.




ETIÓPIA ORIENTAL

NA ILHA DE MAROUPE (SOFALA)

No meio da ilha de Maroupe, de que atrás falei, meia légua das casas em que mora o senhor da ilha com toda sua gente, está um bosque muito fermoso, mais de üa légua em roda, de arvoredo silvestre, tão alto, que se vai às nuvens e tão basto e copado por cima, que não dá lugar ao Sol pera entrar nele, polo que em algüas partes é escuro e medonho. Aqui dentro é casa e morada de leões, tigres, onças, elefantes e porcos monteses.

Um dia, fomos dentro a este bosque, eu e o padre meu companheiro, para vermos üa caçada de porcos que o dono da ilha quis fazer, por respeito de nos recrear e fazer mimo; pera o que mandou ajuntar mais de cinquenta escravos e vassalos seus. caçadores, assi pera segurança de nossas pessoas, como pera o efeito da caça, os quais iam todos armados de arcos, frechas e azagaias e algüas espingardas: e desta maneira atravessámos o bosque, em que achámos muitos porcos. e deles foram mortos três, e tomados alguns leitões pequenos. Também encontrámos elefantes e tigres e alguns búfaros, que todos se desviaram de nós e fugiram, com que muito folgámos.

Em üa cova fomos dar com um cachorro, filho de tigre, de idade de um mês, pouco mais ou menos, o qual trouxemos connosco para casa, e logo na noite seguinte veio a mãe pelo faro até as portas da casa onde estava o filho, bramindo tão raivosa, que parecia querer-nos comer e matar a todos, e desta maneira continuou quatro noites, até que o filho morreu, por falta dos cafres, que o não quiseram criar, pelo ódio que têm a estas feras; e, depois de morto, foi lançado no campo para aquela parte do bosque donde a mãe vinha em busca dele, e ao outro dia não foi achado, do que presumimos que a mãe o achou e o levou ou comeu, porque dali por diante não tornou mais a bramir nem rodear a casa de noite, como dantes fazia com muita ferocidade.

Estando nós um dia à tarde assentados nesta ilha, à porta da casa com o senhor dela, veio a nós um cafre, seu escravo, e disse se queríamos ver seis leões que tinham àquela hora passado o rio, da terra firme para a ilha; que nos levantássemos, porque eles vinham atravessando o vale que estava junto das casas.

Eu e o padre meu companheiro quase que estivemos em dúvida de os ir ver ao campo: mas o senhor da ilha e o caçador nos asseguraram, dizendo que os leões e os tigres daquela ilha não cometiam gente algüa, nem lhe faziam mal, salvo se acaso se encontravam com ela ou se os assanhavam, e a causa disto era porque lhe sobejava a caça, de que andavam enfarados, por haver na ilha infinita. Então nos levantámos e os fomos ver de um alto que estava junto da casa, mas não lhe vimos mais que meios corpos e as cabeças levantadas, por causa da muita erva que no vale havia; e assi foram passando pera a parte do bosque, tão seguros e confiados como senhores do campo e das armas.

Aquela mesma noite, já pola madrugada, ouvimos grandes latidos de tigre e roncos de leão, mui perto das casas em que dormíamos; e o caso foi que um leão veio seguindo um meru, até que o apanhou junto das nossas casas. E, estando comendo nele, acudiram três ou quatro tigres e rodearam o leão para lhe apanhar a presa, e isto dizem os cafres que fazem os tigres ordinariamente, andando pelo rasto do leão, quando mata a caça, pera comerem os sobejos que lhe ficam depois que se farta; de maneira que assi o faziam estes aqui. Mas o leão, como não estava ainda farto, roncava-lhe como cão que está comendo muito sôfrego, tendo outros diante que lhe querem tomar o que come; e de quando em quando fazia que remetia aos tigres, de que eles fugiam algum tanto, mas logo tornavam a perseguir o leão com latidos, pera que largasse a caça, mas contudo nenhum deles ousava chegar a pegar nela.

Estando eles nesta contenda, chamou-nos o senhor da ilha, dizendo-nos que fôssemos ver a briga das feras, que era muito para ver: o que nós logo fizemos e, estando vendo e esperando o fim dela, mandou o senhor da ilha a dois escravos seus, caçadores, que presentes estavam, que fossem tomar a presa ao leão, os quais foram, dando grandes brados e apupos, pera que se fossem as feras e deixassem a caça. O que os tigres logo fizeram, tanto que viram a determinação dos caçadores, mas o leão nunca se quis bulir, nem teve dever com os caçadores, antes se deixou estar bem devagar comendo e roncando aos caçadores que se chegavam; os quais tornaram a voltar e disseram ao senhor que o leão não estava ainda farto, porque, enquanto o não está, tendo a caça morta diante de si, não a larga, ainda que o matem, porque é mui sôfrego e carniceiro; mas, depois que se fartou, ele mesmo se levantou e se foi passeando mui devagar, e tão seguro como quem não temia coisa viva. E depois que desapareceu, foram os cafres e trouxeram o meru quase todo, porque o leão não lhe tinha comido mais que o pescoço e muita parte dos peitos e alguns bocados das ancas. E o leão não tornou ali mais nem os tigres.

Estes tigres têm mui grande faro de cousa morta, porque muitas vezes vinham ao adro da igreja do Espírito Santo de Sofala a desenterrar os defuntos que estavam enterrados de fresco e os comiam, como eu vi por três vezes: pola qual razão mandava sempre fazer as covas muito fundas.

Üa manhã se achou neste mesmo adro um tigre morto em cima de üa cova, com as unhas metidas na terra, começando de cavar e abrir a cova. Este era tão velho, que já tinha os dentes todos quebrados e podres, e estava tão magro, que não tinha mais que a pele e o osso, e muita parte do corpo pelado ou gasto. Tinha mais de vinte sinais de feridas velhas e algüas de palmo, que deviam ser doutros tigres com quem tinha pelejado, o que eles ordinariamente fazem sobre o comer. De modo que este veio aqui morrer, ou de velho, ou de fome, ou de tudo junto.

Etiópia Oriental, Liv. I, cap. XXI.

 

OS RIOS DE QUELIMANE E DE LORANGA E COSTUMES DOS SEUS HABITADORES

Quelimane é um braço do rio Zambeze, fermoso e aprazível, de pouco fundo, como já dissemos. Tem de largura, na boca, pouco mais de üa légua: A sua barra tem somente três braças de água, pola qual razão não podem por ela entrar naus de alto bordo, e essa foi a causa por que nela se perdeu a nau S. Luís. A terra que corre ao longo dela é rasa, sem outeiro algum. Da barra pera dentro obra de duas léguas, tem um porto bem assombrado de campo raso, no qual estão üas casas, palmar e horta de um português chamado Francisco Brochado, de quem já falei atrás. que era capitão destes rios.

Este porto é refúgio de toda a gente que navega pera este rio; porque nestas casas acham gasalhado os cristãos graciosamente, e em particular os portugueses, onde descansam, dormem e se recolhem das calmas, que nestas terras são mui grandes.

Perto destas casas está üa povoação pequena de cafres gentios e mouros pobres que vivem aqui à sombra dos portugueses que vão e vêm por este rio, onde os marinheiros, que ordinariamente são mouros, também acham abrigo e gasalhado pera se refazerem dos trabalhos do mar, e alguns deles tem ali suas mulheres.

Toda a demais terra polo sertão dentro é povoada de cafres macuas, sujeitos a um cafre chamado Galo, que tem nome de rei, mas seu reino é pequeno, de poucos vassalos e menos sustância. Este rei tinha um irmão, chamado Sapata, o qual se tinha feito mouro quando ali fui ter, e por esta rezão era malquisto e odioso a todos os cafres, porque, ainda que estas terras estão inçadas de mouros e vivem nelas como naturais, quer Nosso Senhor que nenhum cafre se faça mouro, porque os tem em pouca conta, e dizem que é gente baixa e que mais honrados são eles que os mouros; e assi, raramente se verá cafre que se torne mouro, nem eu o vi nestas partes, fazendo-se cada dia cristãos, aos quais têm por gente nobre e honrada; e assi comummente chamam aos Portugueses Musungos, que quer dizer Senhores. São pretos, de cabelo revolto, mas não adoram ídolos; são amigos dos Portugueses, e bem inclinados.

Com estes cafres confinam outros, que habitam as terras que correm ao longo de um rio chamado Loranga, cuja boca está a cinco léguas de Quelimane, indo correndo a costa pera Moçambique. Este rio é mui aprazível e tem üa enseada é barra muito boa, onde os pangaios entram e saem francamente, e nela há muito peixe, o qual não é pescado dos naturais da terra, porque não ousam sair fora do rio a pescá-lo em suas almadias, que são pequenas, e somente pescam em covãos que armam no rio e nos esteiros que entram pola terra, onde tomam peixe miúdo.

Este território de Loranga é povoado de cafres macuas gentios, pretos de cabelo crespo : os mais deles trazem cornos feitos do mesmo cabelo, e muitos deles são pintados pelo corpo com ferro e tem as queixadas furadas por galantaria como os macuas de Moçambique. Entre estes vivem alguns mouros pretos, os mais deles pobres, e quase semelhantes aos cafres em seu modo de viver.

Toda esta terra é sujeita a um cafre, chamado Bano, e a seus irmãos, que vivem nela repartidos em diversas aldeias. São todos comummente bem dispostos e bem inclinados. O seu principal trato e comércio, que tem com os portugueses, é de marfim, arroz, milho, painço, inhames e outros muitos legumes que esta terra cria em grande abundância. Os portugueses lhe levam panos, estanho e contas de várias cores, de barro vidrado, com que os cafres se vestem e Fazem galantes.

As fazendas desta terra são searas de mantimentos que lenho dito, e estas granjeadas pelas mulheres, com tanto ou mais cuidado que entre nós pelos homens, porque elas roçam, cavam, semeiam e colhem as novidades. Os homens passeiam, conversam, pescam e caçam e levam boa vida, e daqui vem serem as mulheres desta terra escassas, e os homens liberais.

Há nesta terra palmares, de que os cafres não sabem tirar vinho, nem outro proveito, mais que os cocos pera comerem. E, posto que a terra é fértil e de grandes pastos, tem pouca criação de gados, porque estes cafres são de pouco trabalho e mais dados a bailes e festas que a granjearias; contentam-se com o comer ordinário de arroz ou milho e legumes. Também comem ratos, cobras e lagartos e zombam de quem os não come.

Criam-se nestas terras muitos tigres, onças, leões, elefantes, búfaros, merus, veados, gazelas, muitos gatas de algália, infinitos bugios e manos, e os cafres caçam todos estes animais e comem-lhe a carne. Nos campos e matas há muito manjericão, madressilva, mosquetas e jasmins de suave cheiro.

Estes cafres, no que toca a religião, adoram um só Deus que está no Céu, crêem na imortalidade da alma, não negam a providência divina, crêem que há demónios e que são maus, e que todos os bens vêm de Deus; e com tudo isto são grandes blasfemos, porque, quando as novidades não respondem como querem, ou lhes não sucedem as cousas a seu gasto, dizem mal de Deus e que faz o que não deve, e outras palavras semelhantes.

A esta terra foi ter o padre Frei Tomás Pinto, da ordem dos Pregadores, inquisidor da Índia, quando se salvou da perdição da nau Santiago, e aqui lhe faleceu um seu sobrinho que levava consigo, pelo qual respeito alguns cafres principais da terra o foram visitar; e, querendo-o consolar do seu nojo, lhe disseram que Deus o fizera muito mal com ele em lhe dar tantos trabalhos na sua perdição e agora em lhe matar o sobrinho, e que não se fiasse dele, porque era mau: mas o padre, acudindo péla honra de Deus, lhe disse o que em tal matéria convinha. e facilmente os convenceu, porque não são homens de muitas respostas nem réplicas.



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