Projecto Vercial

Frei Luís de Sousa


Frei Luís de Sousa nome religioso de Manuel de Sousa Coutinho, nasceu em Santarém cerca de 1556 e faleceu em São Domingos de Benfica, Lisboa, em 1632. Era um fidalgo cavaleiro da Ordem Militar de Malta. Esteve preso em Argel, vindo a conhecer na prisão Miguel de Cervantes. Libertado em 1577, regressa a Portugal, prestando serviços ao rei Filipe II de Espanha e vivendo dois anos em Valência. Regressa a Portugal e casa-se com D. Madalena de Vilhena, após o desaparecimento de D. João de Portugal, seu marido, na batalha de Alcácer Quibir. Assume vários cargos, como o de capitão-mor de Almada e o de guardador-mor da Saúde. Após a morte de sua filha, D. Ana de Noronha, separa-se da esposa e professa na Ordem de São Domingos, dedicando-se inteiramente à escrita. Almeida Garrett dedicou-lhe o drama Frei Luís de Sousa (1844).

Obras: Vida e Obra de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1619); História de S. Domingos (3 tomos publicados em 1623, 1662 e 1678); Os Anais de D. João III (1844); Vida de Soror Margarida do Sacramento (a obra perdeu-se); Considerações das Lágrimas que a Virgem N. Senhora Derramou na Sagrada Paixão; Vida do Beato Henrique Suso (tradução do latim).




VIDA E OBRA DE D. FREI BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES

FREI BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES E O PASTORINHO

Com a entrada do ano novo determinou começar a visitar o Arcebispado. Diziam-lhe os cónegos e desembargadores que era ó tempo do Inverno mui áspero naquelas partes, de muitas neves e frios intoleráveis; que lhe poderiam fazer dano irreparável na saúde. A isto respondia que o bom pastor não deixava de estar com suas ovelhas por medo das chuvas, nem frios, nem calmas, nem tempestades; porque então têm elas mais necessidade de sua companhia.

(...)

Era fim de Janeiro, tempo ventoso e frigidíssimo. Deixou o abrigo e chaminés dos seus paços, foi-se experimentar os maus caminhos e piores gasalhados das aldeias... Mas queixavam-se os seus que não podiam aturar a continuação do trabalho, dos caminhos, das invernadas; ele só, com trabalhar mais que todos; sofria desassombradamente todas as incomodidades; e nos caminhos, por fragosos e ásperos que fossem, era o primeiro que os acometia, pondo-se na dianteira.

Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na maior parte da jornada; e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava. Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo seu costume, que era caminhar quase sempre só pera se ocupar com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus.

Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho: e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o, e disse-lhe que se descesse abaixo pera a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante pera a esperar.

– Isso não! – respondeu o pastorinho, – que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mama-me o cordeiro!

– E que vai nisso? – disse o Arcebispo.

– A mi me vai muito – tornou ele, – que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva...

Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrecentou:

– Este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que, se este, com tão pouco remédio pera as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais que o descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desemparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?

Vida e Obra de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Liv. I, cap. XIV

 

PERFIL DO ARCEBISPO

Foi o Arcebispo D. Frei Bartolomeu de boa e bem proporcionada estatura, maior que meã. Conformava com ela a composição de todas os membros, cabeça grande, rosto comprido e descarnado, testa larga e alta, que abria em uma venerável calva. Os olhos eram pequenas e sumidos; a vista, em ambos torcida.

(...)

Tinha o nariz proporcionado com o rosto, direito e moderadamente levantado; a boca grossa, e o queixo e beiço inferior um pouco saído, quase ao modo que nos pintam os retratos aos príncipes da casa de Áustria.

Destas feições resultava uma certa majestade, que o fazia tão grave e venerável, que, de primeira vista, era de quem o não conhecia julgado por esquivo e intratável; mas, conversado, não havia maior brandura: era chão, fácil, humano mais do que se pode crer, efeitos da filosofia cristã e verdadeira virtude, que tempera e adoça o agro de natureza, e melhora e aventaja o bom.

Era alvo de rosto: e, antes de chegar à muita idade, inflamado sempre em cor, mas a inflamação se atribuía a causa mais alta que natural: diziam que procedia de trazer a alma de continuo afervoradamente ocupada em Deus, de que dava testemunho no rosto e olhos, quase sempre levantados ao céu, o que também era causa de parecer maior o defeito que dissemos da vista.

Sendo moço, era miúdo e delicado de membros, que se duvidava se aturaria o trabalho da religião. Com a idade, engrossou e fez-se corpulento; e, como se se trocara em outro, assi se mostrou robusto de natureza e forças, sofredor de muito trabalho, de vigias, de estudo e penitências, que nunca largava.

A compreição era colérica e sanguinha, de que deram indício muitas doenças que padeceu de sangue, muito graves, sendo de admirável temperança no comer e beber.

Era de engenho sutil, claro entendimento e firme memória: livre em dizer a cada um o que entendia e, o que é raríssimo no mundo, sofrido e humilde em ouvir o que cada um lhe dizia de avisos e advertências, animoso em acometer as cousas de sua obrigação, acre e diligente na execução delas, constante em as levar a cabo, porque nenhuma acometia sem muito estudo e conselho, parte de verdadeira prudência.

Vida e Obra de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Liv. V, cap. VII


OS ANAIS DE D. JOÃO III

A FOME DE 1522

Padecia neste tempo o reino de Portugal calamitoso aperto de fome. Porque, quanto mais corria o ano de 22, em que vamos, tanto maior era o trabalho. Crecia a falta, gastando e comendo o povo esse pouco pão, que havia: Castela não podia ajudar, porque a esterilidade do ano de 21 fora igual nela. De França não vinha nada, respeito das guerras que trazia com o imperador. Os pobres do reino acudiam todos a Lisboa, arrastando consigo suas tristes famílias, persuadidos da força da necessidade que poderiam achar remédio onde estavam o rei e os grandes.

Mas aconteciam casos lastimosos. Muitos caíam e ficavam mortos e sem sepultura polos caminhos, de fracos e desalentados. Os que chegavam a Lisboa pareciam desenterrados, pálidos nos sembrantes, débiles e sem forças nos membros. Dinheiro não aceitavam de esmola, porque não achavam que comprar com ele: Só pão queriam; e este não havia quem o desse, porque algum que às escondidas se vendia era a quatrocentos e cinquenta reis o alqueire; o centeio a duzentos reis; o milho a cento e cinquenta, que para aquele tempo era como um prodígio. Viu-se que era açoute do Céu, em que, correndo muitos navios às ilhas dos Açores, onde as novidades haviam sido mui floridas, uns se perderam tornando, à vista da barra de Lisboa: outros, forçados de tormenta, alijaram ao mar o trigo; por salvarem as vidas.

Foi a origem deste mal não acudir o Céu com água em todo o ano de 21. Estavam os campos tão secos, que, como em outro tempo se despovoou Espanha por lhe faltarem as chuvas ordinárias, parecia que tornava semelhante desaventura. As terras, delgadas, se desfaziam em cinza; as grossas se apertavam e abriam em fendas até o centro. Assi, em geral, nem no Alentejo, nem no Algarve, nem na Estremadura chegaram as searas a formar espiga: em erva secaram e se perderam todas. E em Lisboa se padecia já tanto no Outubro de 21, que aconteceu passarem muitos homens oito dias sem tocar pão, comendo só carnes e fruitas. E por Janeiro e Fevereiro do ano de 22, em que vamos, se averiguou morrerem muitos pobres à pura fome, polas ruas e alpendres de Lisboa.

Abalavam estas misérias as entranhas de El-rei. Mandou fazer com tempo grandes diligências pera que decesse de Antre Douro e Minho e da Beira tudo o que se achasse de centeio e milho; e, não contente com isto, que todavia foi de muita importância, despachou navios, à custa de sua fazenda, com letras e dinheiro, que fossem carregar de trigo à França e Frandes.

Os Anais de D. João III, Liv. I, cap. XI



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