Pedro António Correia Garção (1724-1772) nasceu em Lisboa no dia 13 de junho 1724 e faleceu na mesma cidade no dia 10 de novembro 1772. Frequentou o curso de Direito da Universidade de Coimbra, mas teve de abandonar os estudos, tornando-se oficial de secretaria e redator da Gazeta de Lisboa. Foi preso por razões desconhecidas e morreu pouco antes de ser libertado. É considerado um dos mais importantes poetas neoclássicos da literatura portuguesa. Pertenceu à Arcádia Lusitana, utilizando o pseudónimo de Corydon Erimantheo. As suas poesias foram publicadas em 1778 num só volume intitulado Obras Poéticas. Escreveu duas comédias: Teatro Novo e Assembleia ou Partida.
CANTATA DE DIDO
Já no roxo oriente branqueando,
As prenhes velas da troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido,
Pelos paços reais vaga ululando,
C'os turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta;
Com medonho fragor, na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam nocturnas, agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atónita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
De defunto Siqueu, com débeis vozes,
Suspirando, chamar: Elisa! Elisa!
D'Orco aos tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares,
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética, delira,
Pálido o rosto lindo
A madeixa subtil desentrançada;
Já com trémulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As ilíacas roupas que, pendentes
Do tálamo dourado, descobriam
O lustroso pavês, a teucra espada.
Com a convulsa mão súbito arranca
A lâmina fulgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja o tenro, cristalino peito;
E em borbotões de espuma murmurando,
O quente sangue da ferida salta:
De roxas espadanas rociadas,
Tremem da sala as dóricas colunas.
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaiada, sobre o leito
O corpo revolvendo, ao céu levanta
Os macerados olhos.
Despois, atenta na lustrosa malha
Do prófugo dardânio,
Estas últimas vozes repetia,
E os lastimosos, lúgubres acentos,
Pelas áureas abóbadas voando
Longo tempo depois gemer se ouviram:
«Doces despojos,
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentiam,
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.
«Dido infelice
Assaz viveu;
D'alta Cartago
O muro ergueu;
Agora, nua,
Já de Caronte,
A sombra sua
Na barca feia,
De Flegetonte
A negra veia
Surcando vai.
SONETOS
1
Cheios de espessa névoa os horizontes,
Espantosas voragens vem saindo!
Foi-se o Sol entre as nuvens encobrindo,
Voltando para o mar os quatro Etontes
Caiu a grossa chuva pelos montes,
Os incautos pastores aturdindo;
E engrossados os rios vão cobrindo
Com embate feroz as curvas pontes
Com medonho estampido, navorosos.
Os longos ecos dos trovões soando.
A rezar nos pusemos temerosos.
Parou a chuva; correm sussurrando
Os torcidos regatos vagarosos;
Não me atrevo a sair, fico jogando.
2
Ao som dos duros ferros que arrastava,
A lira de ouro Corydon tangia:
De Márcia o doce nome repetia,
Mas no meio do canto soluçava.
No rosto macerado, que enfiava,
O lagrimoso pranto reluzia,
E nos olhos, que aos altos céus erguia,
O pensamento intrépido voava.
Não se assombra de ventos insofridos,
Nem com ousado lenho arar intenta
O pólo do futuro nebuloso;
Menos chora terrenos bens perdidos.
De pouco um peito grande se contenta:
Antes quer ser honrado que ditoso.
EPÍSTOLA
Se não te enjoas de comer sem pompa
Em toalhas do Minho, em pobre mesa
Onde não tine a rica porçolana,
Nem cansa os olhos trémulo reflexo
De burnida colher, de refulgente
Britânico saleiro, caro Amigo,
Sábio, ilustre Sarmento; ou não te assusta
O suspeito convite de um poeta
Afeito a dura fome, a duro frio,
Cujo humilde tugúrio Noto açouta,
E Áfrico lhe arrepia as leves telhas,
Hoje podes cear na Fonte Santa:
Alegres beberemos. Na cozinha
Estala a seca lenha, brilha o fogo;
O negro bicho ou negro cozinheiro,
Enroscado no espeto fica assando
Um lombo corpulento. Agora deixa
As sérias reflexões, as esperanças
Da branca vara, da soberba toga,
Das rascoas vizinhas, lumes fátuos,
Que observas com teu longo telescópio.
A desabrida noite nos convida
A que juntos passemos poucas horas
Em doce trato, em doce companhia.
Teremos bons parceiros, cartas novas,
E em ruivos castiçais de pechisbeque
Arderão duas cândidas bugias.
Já na mesa fumega o precioso
Natural elixir do rico Oriente,
O bom chá quotidiano, mais pedido
Que o pão de cada dia, nesta casa.
(...)