Gabriela Rocha Martins nasceu em Faro em 1948. Tem formação superior na área do Direito e em Ciências da Documentação, foi representante no Algarve da Fundação Natália Correia, correspondente redatorial do jornal Letras & Letras, presidente da direção do Prémio Litterarius, Racal Clube, e é a principal responsável pelas Bienais de Poesia de Silves. Tem obra publicada em Portugal e Espanha, em livros, colectâneas, antologias, revistas literárias e no ciberespaço, mormente: .delete.me. livro de poesia (ed. Folheto & Edições Lda); O Fulgor da Língua Ciberpoema; I Antologia de Poetas Lusófonos; Os Dias do Amor (Antologia); Entre o Sono e o Sonho, II Vol. (Antologia); IV Antologia de Poetas Lusófonos (no prelo) e Antologia de Homenagem a Amato Lusitano (no prelo); revista Litterarius; revista Oficina da Poesia, n.º 12; SULscrito, n.º3; Cuadernos Tellira e Se Lo Dije A La Noche Poesia Juan Carlos Garcia Hoyuelos (Burgos).
Sobre o seu livro .delete.me., em Abril de 2008, Luciano Caetano da Rosa, leitor de Língua Portuguesa, na Universidade de Berlim, escreveu:
«Saltam rapidamente à vista alguns aspectos na tua produção literária, tanto do ponto de vista formal como temático. Do ponto de vista formal, nota-se uma certa predileção pelo gosto lúdico que se exerce num virtuosismo gráfico com vista a desprender várias leituras simultâneas, com trabalho sobre o significante (o conceito de Saussure).
(...) Estas características formais estão em sintonia com o concretismo de certos poemas, ora concretismo sinestésico, ora concretismo minimalista. As metáforas de cariz superlativo relacionam o longínquo com o propínquo, nem sempre sem raiva pelos absurdos da existência.
(...) Com efeito, ouve-se na arte poética de Delete.me ora ecos de mestria simbolista, ora uma heteronímia difusa numa passagem bem pessoana, ora explicitamente um roteiro de influências (Carlos de Oliveira, Neruda, Eugénio de Andrade, entre outros...). Opondo-se ao "jogo subtil das palavras" há "um silêncio no outro lado da palavra não escrita", ou seja, o poema pode viver bem alto, até acompanhado por outras manifestações artísticas (música, escultura...) ou remeter-se à expressão sigética suprema, quer dizer expressão do silêncio, por mais audível que este seja.
(...) A presença de temas muito exóticos (como a huri, beldade muçulmana paradisíaca) pode justificar-se por Silves, a velha Xelb, outrora grande metrópole ibérica. Enfim, a poesia como ascese pode, finalmente, fecundar prosas poéticas, e até literatura infantil, para terminar num registo em que a memória se torna constitutiva.»
POEMA
deliberada mente
olho o vagabundo do outro lado da rua
tenho pena
não dele
mas de mim
sentado no chão tem o absoluto do nada e
eu?
reservo.me na serventia de tudo
olho a cigana do outro lado do passeio
invejo as palavras com que tece
nas mãos
ilusões e
eu?
presa ao presente em que o nada se compraz
no absurdo das intenções
a cabeça reserva.me a dúvida
o cansaço das estórias recriadas
repisadas
ninguém tem o direito de ser
um mísero ímpio feito em deus
senhora
o vinho corre!
deixá.lo correr
alguém pergunta
porquê?
o bêbado bebe
na solidão de si
se for o caso
ou talvez não e
porque não?
o vagabundo olha.me
estendo a mão a que a cigana revestiu de cacos
deixo.lhe um sorriso
preso à imensidão de um olhar
profundo
que não ouso
não sei colar os cacos que a cigana
forjou
o não é a palavra proscrita
no sim de uma vida
sem desígnio
perseguem.me os fantasmas da escrita
a maledicência transfere o golpe mortal
choro o animal ferido
rio.me do pontapé dado a um irmão
de raça
alimento.me de ossos e
peles
como uma predadora imersa
em ladainhas de bem querer
não ouso
prefiro o salto do vagabundo que
me estende a mão para segui.lo
ao encontro oculto da cigana
sou
sapato
gato
rato
a ínfima parcela de um choro
que não choro
de uma gargalhada
que não dou
coloco a cabeça entre as mãos
aperto.a
não me detenho em nada
não ouço nada
prefiro a algazarra do demónio
onde encontro o absurdo do não ser
em perfeição
não magoa
matei a alegria
matei a cigana
matei o vagabundo e
não percebi que ao fazê.lo
matava.me
fiquei reduzida ao nada
feliz
no espaço que circunda
o estar no meio do conflito
deixem.me entregue às minhas loucas
fantasias onde bebo
(e porque não?)
os néctares que me aprouver
deixem.me
ser
a ausência
a verdade
falsa do trio que desenhei
o vagabundo
a cigana e eu
três marginais no destino
estou tão cansada de ser
valorizo hoje
amanhã destruo
a sobreposição de comportamentos e
de atitudes
como manda a santa madre igreja
os anjos
os arcanjos
os santos
os demónios
el.rei e
senhor
sou muito bem comportada
respeito a cor
o grito
o silêncio
o absurdo
a redundância
tudo começa a fazer sentido
ausento.me em cansaço
olho o outro lado da rua
não vejo o vagabundo
terei sonhado?
a cigana sumiu
terei efabulado?
não me revejo
estarei acordada?
é necessário que alguém vigie
os extra.terrestres acabam de ocupar
o centro da avenida
têm olhos redondos
nariz redondo
orelhas redondas
barriga redonda
a boca
é afiada
ah! têm duas línguas
bífidas
como as serpentes que procuram a estrada
cabeças erguidas na morte
as cadeiras
aprumadas
continuam à espera que o espectáculo comece
os actores não comparecem
[alguém inverteu os papéis]
apagam.se os projectores
deliberada
mente.