Projecto Vercial

Garcia Monteiro


Manuel Garcia Monteiro (1859-1913) nasceu na cidade da Horta, ilha do Faial, Açores. Estreou-se aos quinze anos de idade como poeta com a publicação de várias composições na imprensa local. A sua peça Sem Cerimónia é levada à cena no teatro Faialense em 1880, tinha o autor vinte anos. Devido a dificuldades económicas, parte para Lisboa arranjando um lugar como prefeito num colégio e estudando na Escola Politécnica. Por questões de saúde, vê-se obrigado a regressar aos Açores. Em 1883 funda o jornal O Açoriano, dedicando-se inteiramente ao jornalismo. Nove meses depois, parte para os Estados Unidos da América a tentar a sorte. Fixa-se em Boston, trabalhando como tipógrafo e continuando os estudos. Forma-se em Medicina, que exerce nos E.U.A., e colabora em várias publicações nacionais e estrangeiras. Publicou as colectâneas Versos (Horta, 1894) e Rimas de Ironia Alegre (Boston, 1896). Os seus poemas, através da sátira e da ironia, visam a crítica social, estando, nesse aspecto, muito próximos de Eça de Queirós.




VERSOS


O COMENDADOR NEVES


Desdobrei o jornal uma hilariante crítica
de Ramalho Ortigão apupava a política,
como um Gavroche audaz, simpático, nervoso.
Levantei a vidraça: era um dia radioso!
Sentia-se a expansão da vida, um sentimento
na natureza, alegre e toda cm movimento.
Via-se o campo em roda activo e pitoresco.
Era na aldeia. Um ar vivificante, fresco,
regalava os pulmões. Os pássaros chilreavam
numa doida alegria, erguiam-se, esvoaçavam;
o sol banhava em cheio uma seara loura,
vinham cantos joviais das lides da lavoura.
E, a passo, mansamente, o pêlo ao sol brilhando,
numas terras ao longe os bois iam lavrando.

Eu lia o folhetim. O estilo de Ramalho,
neste imenso bem estar do dia e do trabalho,
vibrava, castigando uns figurões sem siso
com a ortiga da troça e o látego do riso.
Ouvi fora, na rua, umas risadas breves...
Debrucei-me à janela e avistei o Neves,
gordo, de chapéu alto - altivo e escarranchado
num burrinho cinzento O animal, coitado,
tísico, muito velho, ajoujava-se ao peso
do Neves – bom cristão, mas cabeçudo e obeso.
Era comendador e herdara dumas velhas.
Para apressar o burro, erguia-lhe as orelhas,
dava-lhe! E, ao caminhar, a alimária tristonha
revelava no olhar a íntima vergonha
de trazer sobre si tão volumoso bruto.
Ele vinha a cuspir e a chupar no charuto.
Cara enorme, barbeada, o cabelo cortado
à escovinha, o nariz vermelho e esparrado.

Apresentava sempre uns ares carrancudos.
Tinha olhar de sagui e ouvidos cabeludos.
Era feio. Um jornal chamou-lhe orango-tango;
ele leu, Ficou rubro e disse: – «Não me zango.»
E em seguida exclamou: – «Marotos!» E desfez
o jornal, esfregou-o. Andou ralado um mês.
Trazia, como sempre, o casaco cinzento,
velho, desabotoado, o colete sebento
e umas calças azuis, largas, anti-modernas,
para lhe acomodar a grossura das pernas.
«Não queria saber da moda dos janotas.»
Em baixo aparecia o elástico das botas
já ruço e desfiado.

Vinha pois muito sério
o Neves, a fumar, com cara de mistério,
notando, espiando tudo. E de instante a instante
vergastava, furioso, a alimária arquejante
e, alargando com custo as pernas mais e mais,
atirava-lhe ao ventre as botas colossais.
Descobriu-se ao passar um velho camponês,
ele correspondeu, inchando-se e cortês.
O cura apareceu a andar devagarinho,
nédio, fez-lhe um aceno... – «Olá, sr. padrinho!»
balbuciou um rapaz, à espera do outro lado,
de barrete na mão, humilde, envergonhado;
o Neves deu-lhe a mão e o moço, com respeito,
pôs nela um beijo farto e foi-se satisfeito.
Aproximou-se o cura e vários eleitores;
o Neves fez-se bom, amável. – «Meus senhores...
E apertou logo a mão a todos um por um.
E, manhoso: - «Não sei se me escapou algum...»
O burro ia escutando, irónico e paciente.
Via-se a sujeição no olhar da pobre gente,
que dava sempre o voto ao sor comendador...
Ele gozava o efeito. E com ar protector,
foi-lhes dizendo: «Adeus!» num tom muito velhaco.
Fez promessas a três e a um deu um pataco.
Que magnífica cena!

Os dois iam passando,
burro e comendador. Defronte o Brás, orando,
assomou logo à porta a rir com os fregueses.
Não tardava a eleição. Havia quatro meses
que se afagava o povo. Era um desassossego.
O cura, o sacristão, uns moços sem emprego,
um bacharel poeta e um brasileiro rico,
com fome de comenda e irmãos com fome, o Chico;
tudo o que pretendia algum favor do estado,
tudo andava lidando, ansioso, atarefado,
«para salvar o povo, a pobre humanidade»,
como disse em mau tipo o Clarim da Verdade.
O Neves igualmente andava em lida e isto
por pretender também o hábito de Cristo.
Eu desatei a rir. O Neves, que figura!
Isto dava ao Bordalo uma caricatura.

Pus-me então a pensar n burro é um animal
que trabalha a valer e não pratica  mal;
é humilde, paciente, acomodado e sóbrio,
um filósofo até – e é um pesado opróbrio
assentar-se-lhe em cima um animal humano!
Não consta que roubasse ou que fizesse dano,
a não ser pela fome; e eu nunca tive ideia
que algum burro comprasse os votos de uma aldeia,
nem sei que este animal, herói de muita lenda,
pregasse alguma vez na albarda uma comenda.

Vejam que diferença entre o jumento e o homem.
Basta só comparar o modo por que comem-
o burro come pouco, é sóbrio; ora o Neves
diz «que não se dá bem com as comidas leves»,
e, a exemplo do cura, um homem de virtude,
farta-se como três – «para gozar saúde».
]á o vi num jantar comer sofregamente,
insaciável, bestial, e olhar toda a gente
espantada. Depois da última eleição
alta noite acordou com uma indigestão;
veio um doutor do centro; esteve incomodado.
O Clarim deu notícia honrosa.

E vê-lo, irado,
lendo uma folha oposta?... Ele não sabe ler;
soletra, descompõe... E então para escrever
u nome por inteiro, é mesmo uma maçada!
Lança primeiro em roda a vista desconfiada;
põe os óculos de ouro, olha, pega na pena,
molha-a, cai-lhe um borrão, perturba-se... Que cena!
Suja as mãos, o papel, garrancha o nome extenso
e ergue-se atarantado e limpa-se no lenço.

Mas isso... ele dispensa as belas faculdades...
Ural O Neves possui várias propriedades,
trinta contos de réis a juro e em inscrições,
é sempre do governo e ganha as eleições.
O Direito e o Clarim, no nosso passado,
chamaram-lhe «homem probo, um cidadão honrado,
pai do povo...»; e ele, vendo alguém dos dois jornais,
diz, modesto: – «Gostei.» E que publiquem mais.

Na tenda orava o Brás; e um velho que eu conheço
Exclamou: – «Ora esta! O mundo está do avesso!»
E c de facto, pensei eu; o diabo, por veneta,
deu algum pontapé enorme no planeta
e o planeta tremeu, saltou fora do eixo!
Isso aí para o céu ou há grande desleixo...

Mas o sol irradiava, o azul era puríssimo,
os campos tinham vida, um bem estar suavíssimo.
Achei mais irrisório o Neves, mais casmurro,
e fez-me dó o ar sentimental do burro,
tísico, resignado, e prometi vingá-lo
com o alexandrino e o lápis do Bordalo.

Defronte a discussão tornara-se animada.
Encheu a mercearia enorme gargalhada;
dissera o Brás: – «Se o mundo endireitasse... Ó diacho!
ficava o burro em cima e o Neves por debaixo!»

Horta


RIMAS DE IRONIA ALEGRE


UM MODO DE VER

Ela entrou, a sorrir, brejeira, com mistério,
Chegou ao pé da filha e disse-lhe ao ouvido:
«Parabéns! Arranjei-te um óptimo marido.»
A pequena espantou-se. «O Santos Desidério!»

Este Santos viajou pelo Celeste Império.
Tem seus contos de réis; mas vive aborrecido
Por ser imberbe e calvo. «O caso é divertido!»
Exclamou a pequena. E a mãe: «O caso é sério!»

E pôs-se a enumerar as boas qualidades,
O rendimento, o luxo, as ricas propriedades,
E a traça das mamãs, «morrendo por obtê-lo.»

A filha ouviu; e então, com modo sobranceiro,
Apenas observou que aquele cavalheiro
Era rico de bens - mas pobre de cabelo.

Horta




TALENTO BUROCRÁTICO

Palavra que o Eusébio é um rapaz astuto;
não é um imbecil, como há alguém que o pense.
Tinha um ar de quem anda em busca do Absoluto
e andava era a cismar na manga do amanuense.

Mal vagou o lugar Foram dez cães a um osso,
e ele é que o abocou. Ora o comendador
(o tal que usa um grilhão pendente do pescoço)
influiu; mas o Eusébio inda operou melhor.

Foi aberto concurso, a bem da velha prática;
e o Eusébio (por si, sem ter quem o guiasse)
Fez no requerimento onze erros de gramática –
sete de ortografia e quatro de sintaxe.

Assim li num jornal. Os outros concorrentes,
sem um erro sequer, estavam muito abaixo:
o Eusébio apresentou asneiras convenientes
e foi ele, bem visto, o que alcançou despacho.

Ei-lo pois amanuense. Agora vai casar-se.
Comprou já chapéu alto e um valioso anel.
O pai gaba-o e diz: «É pena não formar-se!
Fazia-se dali um rico bacharel.»

É um moço prendado e é justo o seu alarde;
e então (e ele c que o diz) não tem sequer um vício...
Não há quem puxe um D como ele no Deus Guarde,
nem quem faça também mais erros num ofício.

Em contas, nem Falar; é mesmo prodigioso;
não conheço ninguém mais Forte na tabuada:
aquilo é segurinho, exacto, escrupuloso...
três vezes três são seis; dez, noves fora, nada.

Em suma, é um zeloso, um óptimo empregado.
Foi acertada a escolha; e só me desconsola
que ele não possa ser mais bem utilizado.
Que penal Uma aptidão que dava um mestre-escola.

Boston



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