Projecto Vercial

Tomás António Gonzaga


Tomás António Gonzaga (1744-1810?) nasceu no Porto, filho de pai brasileiro. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, foi juiz em Beja, ouvidor em Vila Rica, Minas Gerais, e desembargador na Baía. Acusado de participar na revolta de Tiradentes, foi desterrado em 1792 para Moçambique onde veio a falecer. Escreveu várias composições amorosas, a que chamou liras, quase todas dedicadas a Marília, a sua noiva D. Maria Doroteia Joaquina de Seixas, que foram publicadas sob o título Marília de Dirceu (3 vols., 1792, 1799 e 1812; o 3.º vol. não é da sua autoria). Outras obras: Tratado de Direito Natural; Cartas Chilenas (1863).




ALGUNS POEMAS


1

Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra;

não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de ouro
no fundo da bateira;

não verás derrubar os virgens matos,
queimar as capoeiras ainda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas;

não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo,
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo:

Verás em cima da espaçosa mesa
altos volumes de enredados feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros
e decidir os pleitos.

Enquanto resolver os meus consultos,
tu me farás gostosa companhia,
lendo os fastos da sábia, mestra História
e os cantos da poesia.

Lerás em alta voz, a imagem bela;
eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.

Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura,
que tens quem leve à mais remota idade
a tua formosura.



2

Nesta triste masmorra
de um semivivo corpo sepultura,
inda, Marília, adoro
a tua formosura.
Amor na minha ideia te retrata;
busca, extremoso, que eu assim resista
à dor imensa que me cerca e mata.

Quando em meu mal pondero,
então mais vivamente te diviso:
vejo o teu rosto e escuto
a tua voz e riso.
Movo, ligeiro, para o vulto os passos:
eu beijo a tíbia luz em vez da face
e aperto sobre o peito em vão os braços...

Conheço a ilusão minha,
a violência da mágoa não suporto;
foge-me a vista e caio,
não sei se vivo ou morto.
Enternece-se Amor de estrago tanto;
reclina-me no peito, e com mão terna
me limpa os olhos do salgado pranto.

Depois que represento
por largo espaço a imagem de um defunto,
movo os membros, suspiro,
e onde estou pergunto.
Conheço então que Amor me tem consigo;
ergo a cabeça, que inda mal sustento,
e com doente voz assim lhe digo:

«Se queres ser piedoso,
procura o sítio em que Marília mora,
pinta-lhe o meu estrago,
e vê, Amor, se chora.
Se a lágrimas verter a dor a arrasta,
uma delas me traze sobre as penas,
para alívio meu só isto basta.»




LIRA XXVII

Alexandre, Marília, qual o rio
que engrossando no Inverno tudo arrasa.
na frente das coortes
cerca, vence, abrasa
as cidades mais fortes;
foi na glória das armas o primeiro;
morreu na flor dos anos e já tinha
vencido o mundo inteiro.

Mas este bom soldado, cujo nome
não há poder algum que não abata,
foi, Marília, somente
um ditoso pirata,
um salteador valente:
Se não tem uma fama baixa e escura,
foi por se pôr ao lado da injustiça
a insolente ventura.

O grande César, cujo nome voa,
à sua mesma pátria a fé quebranta;
na mão a espada toma.
oprime-lhe a garganta,
Já senhores a Roma.
Consegue ser herói por um delito:
se acaso não vencesse, então seria
um vil traidor proscrito

O ser herói, Marília, não consiste
em queimar os impérios: move a guerra.
espalha o sangue humano
e despovoa a terra
também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
e tanto pode ser herói o pobre.
como o maior Augusto.

Eu é que sou herói, Marília bela,
seguindo da virtude a honrosa estrada:
ganhei, ganhei um trono:
ah! não manchei a espada,
não o roubei ao dono!
Ergui-o no teu peito e nos teus braços,
e valem muito mais que o mundo inteiro
uns tão ditosos laços.

Aos bárbaros, injustos vencedores
atormentam remorsos e cuidados;
nem descansam seguros
nos palácios, cercados
de tropa e de altos muros.
E a quantos nos não mostra a sábia História,
a quem mudou o fado em negro opróbio
a mal ganhada glória!

Eu vivo, minha bela, sim, eu vivo
nos braços do descanso e mais do gosto:
quando estou acordado.
contemplo no teu rosto,
de graças adornado;
se durmo, logo sonho e ali te vejo.
Ah! Nem desperto nem dormindo sobe
a mais o meu desejo!




LIRA XXVIV

Vou-me, ó bela, deitar na dura cama,
de que nem sequer sou o pobre dono;
estende sobre mim Morfeu as asas,
e vem ligeiro o sono.

Os sonhos que rodeiam a tarimba
mil cousas vão pintar na minha ideia;
não pintam cadafalsos; não, não pintam
nenhuma imagem feia.

Pintam que estou bordando um teu vestido;
que um menino com asas, cego e louro,
me enfia nas agulhas o delgado.
o brando fio de ouro.

Pintam que entrando vou na grande igreja;
pintam que as mãos nos damos, e aqui vejo
subir-te à branca Face a cor mimosa,
a viva cor do pejo.

Pintam que nos conduz dourada sege
à nossa habitação; que mil Amores
desfolham sobre o leito as moles folhas
das mais cheirosas flores.

Pintam que desta terra nos partimos;
que os amigos, saudosos e suspensos,
apertam nos inchados, roxos olhos
os já molhados lenços.

Pintam que os mares sulco da Baía,
onde passei a flor da minha idade:
que descubro as palmeiras, e em dois bairros
partida a grão cidade.

Pintam leve escaler e que na prancha
o braço já te ofereço, reverente;
que te aponta co dedo, mal te avista,
amontoada gente.

Aqui, «alerta»! – grita o meu soldado:
e o outro, «alerta estou!» lhe diz gritando:
acordo com a bulha... Então conheço
que estava aqui sonhando.

Se o meu crime não fosse só de amores,
a ver-me delinquente, réu de morte.
não sonhara, Marília, só contigo:
sonhara doutra sorte.


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