Projecto Vercial

Inês Lourenço


Inês Lourenço

Inês Lourenço nasceu no Porto em 1942. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalhou nos CTT e no Ensino Secundário.

Publicou os seguintes livros de poesia: Cicatriz 100%, Editora das Mulheres, Lisboa, 1980,.(prefácio de Maria Isabel Barreno); Retinografias, idem, Lisboa, 1986; Os Solistas, Limiar, Porto, 1994; Teoria da Imunidade, Felício & Cabral, Porto, 1996; Um Quarto com Cidades ao Fundo – poesia reunida (1980-2000) incluindo mais vinte inéditos, Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2000. A Enganosa Respiração da Manhã, Asa Editores, Porto, 2002.

Principais colaborações em Antologias: Antologia de Poesia Contemporânea, O Poeta e a Cidade, organizada por Eugénio de Andrade, Campo das Letras, Porto, 1996, 3ª edição, Asa Ed., Porto, 2001; Aproximações a Eugénio de Andrade, Asa Ed., Porto, 2000, 2ª edição, 2001; Vozes e Olhares no Feminino, Ed. Afrontamento, Porto, 2000; Das Tripas ao Coração, Antologia trilingue (português, francês e inglês), Campo das Letras, Porto, 2001; Homenagem a Júlio / Saúl Dias, Quasi Ed., V. N. Famalicão, 2001; Ao Porto, Colectânea de Poesia sobre o Porto, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2001; O Futuro em Anos-Luz – 100 anos – 100 poetas – 100 poemas, Quasi Ed., V. N. Famalicão, 2001; Assinar a Pele – Antologia de poesia contemporânea sobre gatos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001; EnCantada Coimbra – Antologia de poesia sobre Coimbra, D. Quixote, Lisboa, 2003.

Colaborou com poesia em diversas publicações portuguesas, como: JL-Jornal De Letras, Artes e Ideias, Cadernos de Serrúbia, Colóquio-Letras, etc. e também em revistas de poesia de Espanha, Itália e França (Página – cien años de poesia portuguesa, Tenerife, – Ánfora Nova-Mujer y Poesía, Córdoba, – Hablar/Falar de Poesia, Badajoz, – Bolletario 4, Modena, – Europe, Paris, 2000, etc.) com poemas que foram traduzidos nas respectivas línguas.

Coordenou e editou desde 1987, os Cadernos de Poesia – Hífen, com 13 números editados, na sua maioria, temáticos, publicação de carácter inter-geracional, em que têm participado, com colaborações inéditas, grande parte dos poetas portugueses actuais, bem como poetas de outras línguas.

Participou em diversos eventos dedicados à Poesia, entre os quais destaca: Bibliothéque Faidherbe, Paris, 2000; Encontros com Poetas, Fundação Eugénio de Andrade, 2000; Vozes e Olhares no Feminino, Porto 2001, Biblioteca Almeida Garrett, com Teolinda Gersão e Isabel Allegro de Magalhães, 2001; 4º Encontro Internacional de Poetas, Coimbra, Biblioteca Joanina, 2001.



POEMAS



Rua de Camões


A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

 
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

 
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

 
Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

 
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

 
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

 
Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

 
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

 
Não olhes para os rapazes
que é feio.

 

 
Estendais


Em alguns invernos mais chuvosos,
em Miragaia que foi a Madragoa de
Pedro Homem de Mello, o Douro
salta a margem e entra pelos arcos
onde se demora no rés-do-chão
das casas, por duas madrugadas.

Mas são os estendais, à janela
agitados pelo vento nas abertas da chuva,
que nos trazem a urgência e a constância
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,
onde os poliesteres aboliram os felpos, os linhos
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol
e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam
heróicas barrelas na espuma inocente do sabão.

 
Ícaro


Um cão pertence mais á Terra,
aos seus limites, até ao  último
rio. Mas ao que vive na casa
em frente, foi dado este nome
volátil. Quando só, ele constrói,
como quase todos os cães,
aquele  som agudo de sobrevoar
ausências, que faz do regresso
de qualquer lazarento dono,
o latido solar da alegria.

 
Satélite


Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
 prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os  rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite,onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.

 
Guilhermina Suggia
(variações sobre um retrato)

1.

No escarlate do vestido
entre os joelhos avulta
o versátil companheiro
que em voz grave lhe responde
desde esse Porto marítimo
da infância, muito antes
da era dos petroleiros e
da boçalidade dos banhistas.

2.

O arco descreve
o intenso itinerário
de Leipzig a Paris,
de Berlim a Varsóvia,
o fascínio dos palcos, o
secretismo dos camarins,
na arritmia do pulso
que o fulgor persegue.

3.

Num crescendo vibrátil
desenha o andamento,
seus motivos ascendentes de
harmónica tensão. E na pausa
final, que um ímpeto antecede
o arco se suspende
augúrio e êxtase.

 
4.

No atelier londrino
de Mallord Street,
o pintor fixa o instante
de uma metamorfose.
Na tela cresce a silhueta
unida ao Stradivarius,
num corpo mútuo
de exótica mariposa,
olhos cerrados no meridional
abraço. Nem Pablo,
o virtuoso, nem qualquer outro
amante, desatará jamais
esse abraço sem fim.


I Will kiss thy mouth
 
Do fundo da cisterna
a tua voz eleva-se e nenhuma
masmorra abafa este ardor
por ela aceso, no derradeiro véu,
a minha pele.  Nem as proféticas
maldições, nem o teu repúdio,
nem a luxúria do tetrarca
me impedem de cumprir
o mandamento primeiro
da paixão: a colheita
da tua face.

 
Última véspera


Agora que um longo inverno se aproxima
com os seus labirintos de sombra,
regresso àquela véspera
de onde se parte sempre,
acesos os afluentes da espera
ou as fulvas crateras da guerrilha.

 
Agora que as asas do silêncio
se insinuam, na crescente mancha
dos espelhos, recebo os teus olhos
como um recém-nascido, vulnerável
e  combalido pela luz recente, recebe
a água do seu primeiro banho.

 

Miramar


Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.

 

Vagas


A colcha da cama desfeita é agora mais leve e mais clara.
As sandálias brancas enviaram
ao armário, a sombra
impermeável das botas. No lugar
do gorro de lã, demora-se hoje
um leve chapéu de palha. Algumas
plantas secaram, mas o calor dos
corpos libertou os lençóis
da sua humilde tarefa, lançando-os
longe como vagas de Agosto.

 

Vítimas

O gato reinava no terraço
entre hidrângeas, sardinheiras e
muros, silencioso e súbito
na ferida que rasgaria
algum gorjeio. Muitas mortes de asa
incauta, na cobiça de larvas ou insectos
em sucessivos Maios, justificaram
o fulgor das garras, o espinho
certeiro entre veludos. Agora
que se foi o vivaz caçador, na garra
letal dos anos, novos bandos
de pardias inundam
o terraço sem gato.

 

Cantiga


O gosto irrecuperável dos frutos secos nos invernos da infância,
o estalido das cascas
quando partíamos
aquelas pulsações de madeira,
sarcófagos mais que perfeitos
arrancados a
algum coração de árvore.

 

Remorso


Durante a leitura nocturna
descia, às vezes, as escadas
e procurava no escuro, dentro
de um cesto, uma forma
redonda. Na quadra iluminada
do quarto, mordia depois a maçã
vermelha escura. Era enorme o ruído
dos dentes, no silêncio dessa hora
tardia e irremediável a culpa
de ter destruído aquela polpa húmida
de onde pendia o descarnado pé
no íntimo saber de pequenas sementes
que podia perfeitamente
ter apodrecido em paz.

 
As Tristes Claridades
O Verão expulsa o húmido alento
das casas. Desertas desfazem
o tépido novelo que as habita
em refúgio. Pastoras dos sentidos
estão agora de olhos cerrados. Ficará
algum pequeno insecto, predador
de ausências, até que alguma
lâmpada, de súbito acesa
lhe ilumine o corpo ressequido. Cinzas
que não voltam ao mar.

 
Prado do Repouso


Adoece os olhos este bric-à-brac marmóreo, os
esmaltes, as jarras, a caótica
cenografia dos jazigos, hoje
que todos garantem a sua última
propriedade horizontal. Habitamos
um corpo, tão fácil de ferir, túnica
de sangue, escudo de água, para
o fulgor da vida foi-nos dada
esta veste, não se sabe
para que perecível eternidade.

 
Bonjardim


1.

Uma janela de guilhotina
golfava na rua, vozes
de barítono rouco e contralto
agreste, num vibrato de raivas
do libreto diário, onde há muito
ou há pouco, se teriam amado.

2.

Ao entrar no quiosque
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclet? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola, de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém, um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.

3.

Vindo do Marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.

 
Post-Card
(os velhos, os pombos, os gatos)


Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, às vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais - o Sindbad, a Pardoca - com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.

 
Ária


É belo o tempo de Inverno,
no silêncio, a lenha húmida
das maternas canções da chuva.
Na lentidão de Janeiro
fica mais longe a morte. As aves
habitam nos beirais
como príncipes destronados.

 

Glenn Gould
a Thomas Bernhard


Procuras o som, a morte de ti mesmo,
centro do teu corpo a percussão que sonhas
límpida,
respiras como as cordas vibram
nessa invenção de vozes
mutuamente perseguidora.

 
Célere e luminoso expulsas da pauta
os ornatos falsos, os amantes fáceis,
desapossado estás de ti e possuído
pela audível construção impossivelmente perfeita
Steinway Glenn, Glenn Steinway só para Bach.


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