Projecto Vercial

Isabel Cristina Pires


Isabel Cristina Pires

Isabel Cristina Pires nasceu em Pampilhosa, concelho de Mealhada, no dia 20 de Agosto de 1953. Licenciou-se em Medicina em 1976 pela Universidade de Coimbra, especializando-se em Psiquiatria em 1985. É actualmente directora clínica do Hospital Psiquiátrico do Lorvão. Principais áreas de interesse no campo da Psiquiatria: Sexologia (desde 1991 co-responsável pela Cons. de Sexologia na Maternidade Byssaya Barreto em Coimbra) e Sono (desde 1993 psiquiatra na consulta de Sono do LEPS do Hospital dos Covões em Coimbra), com comunicações e artigos científicos e de divulgação em ambas as áreas. Obras: Universal, Limitada, (contos, Ed. Caminho, 1987 – prémio Caminho de Ficção Científica e prémio Revelação da revista Mulheres); A árvore das Marionetas (romance, Ed. Caminho, 1989); A Casa em Espiral (contos, Ed. Caminho, 1991; 2ª ed. Círculo de Leitores, 1997); A Roda do Olhar (poesia, Ed. Caminho, 1993); À Porta de Nárnia (poesia, Ed. Caminho, 1995); Cobra de Papel (poesia, Ed. Caminho, 1997). Colaborou nas seguintes antologias: Anuário de Autores Não-publicados (Assírio & Alvim, 1985 e 1987); antologia alemã 27 Contistas Portugueses (1993).


COBRA DE PAPEL

CIDADE

O livro em viés para o raio de sol, a nódoa
na mesa de jantar. 0 marido
que pende estrangulado do telhado, a viola
que tange nas mãos do pensador, o brilho
na carne maltratada da vizinha, o garfo
que pica o prato azul e branco. O nó
que aperta todas as janelas, a secretária coxa
que olha em volta, o alfinete
de ama no bulício das seis horas, o tambor
nas mãos do tarata triunfante, a mescla
de céus entre os telhados, o copo
de espaços entre os bares ao fim da noite, a serpentina
de céus entre os telhados, o copo
de espaços entre os bares ao fim da noite, a serpentina
errante, o cavalo que passa, o navio sequioso
de manhã, a mala de viagem, a dança
à roda da garagem, a luz violeta
de certos cemitérios, o cigarro sem filtro
abandonado, o castanho sem nome. Por motivo de obras,
volto já, estarei de regresso. Ninguém
sabe onde está a campainha e o jornal, a esposa por dentro
do casaco, o santo na catedral, o cão
perdido para sempre, o grito pela rádio.


Cobra de Papel, Ed. Caminho



FEMININO, SINGULAR

Sou composta por cubos e por esferas
donde brotam meigos decaedros
sou composta por trapos, manchas de tinta sem plano
e dedos rupestres a castanho,
o ocre na vizinhança do rosado, o pó de lápis-lazúli
na clara de ovo, o vermelhão nos seios,
sou composta de diálogos. frouxos, de troncos
de árvores em pleno verão,
das ternuras de um gato preto e branco, de insectos
de níquel a voar brilhando, sou composta
de pêlos que caem no outono e águas duras.
Sou composta por mãos que doem nos braços e
por regaços com olhos sempre à superfície,
sou composta de estrelas na tapeçaria do palácio, de gritos
na rua – quem me chama? –,
de nuvens de hélio e náiades em gaiolas, facilitam
a visão, as trocas, o comércio com os homens,
sou composta pela morte que de vez em quando acorda,
por isso desconfio, sou composta pelo desejo que grita
de tal modo que não se ouve ao perto,
sou composta pela água que oscila com as marés, pelo
vapor da submissão, pelo destino obstinado.
Ou eu não fosse uma mulher.


Cobra de Papel, Ed. Caminho



ALONISSOS

Naquela altura folheava uma revista
onde se vendiam monumentos e paisagens
a preço reduzido. E de repente
entrei pela porta de Alonissos:
o mar era claro na água anónima e antiga

Silêncio naquela terra de cigarras. Aquela hora
as pedras recoziam debaixo do calor. Viam-se
cardos, ervas e piteiras
e o vento a marulhar nas oliveiras bravas:
Debaixo do céu branco de Alonissos
nada havia de humano ou de bondoso

Oh, Alonissos, Alonissos! A música
transparente de Alonissos, a febre de passar para o outro lado do regaço
azul e sem memória

Alonissos! Eu rolava
as sílabas na boca.
A custo cheguei ao meu destino


Cobra de Papel
, Ed. Caminho



ETERNO RETORNO

Daquela vez é que era.

Daquela vez era o amor a sério,
o dos poemas, dos filmes, das peças de teatro.

Parecia a paixão que esmaga o tempo
e embaraça a ordem do universo.

Parecia ser o amor, e talvez fosse:
inquisições e ironias,
beijos doces, ousadias
e outras maravilhas singulares.

Mas tudo o que existia de brilhante
foi sendo devorado pelos lobos,
os correctos lobos do tempo e dos lugares,

para que outro amor enfim viesse.


Cobra de Papel
, Ed. Caminho


À PORTA DE NÁRNIA

POMBAS

O poisar de prata
na tarde é quase dor. As pombas
levantam voo.

Cumprem
as elipses por cima dos quintais
como se soubessem

e arrastam tudo: os muros e
as casas, a genuína lógica da rua
que se quebra

voam
com essa força estúpida
da tarde.


À Porta de Nárnia, Ed. Caminho


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