Projecto Vercial

Pedro Ivo


Pedro Ivo (1842-1906) é o pseudónimo de Carlos Lopes. Nasceu e faleceu no Porto. Viveu na Alemanha, onde estudou, esteve no Brasil e na África portuguesa, tendo sido Presidente da Real Companhia dos Caminhos-de-Ferro de África. Nas suas obras de ficção notam-se influências de Camilo e de Júlio Dinis, em especial nas descrições da vida do campo e no sentimento trágico da vida.

Obras: Contos (1874); O Selo da Roda (romance, 1876); Serões de Inverno (contos, 1880).




CONTOS


AS CONVERSAS DOS NAMORADOS

...Eu quero ouvir no parlamento um discurso de quatro horas acerca de finanças, bem recheado de dados estatísticos e apimentado por lugares – comuns a respeito da necessidade da reforma das pautas, e não quero aturar dez minutos um namorado bem namorado, em ele entrando a enumerar as perfeições e a exaltar a inteligência d'Ela!

Pois se ele tem com a gente a confiança precisa para apoiar as asserções com documentos, e tira do bolso o maço de cartas que o não larga nunca!?... Isso então é que são elas!... Atura um homem ali, a pé quedo, a leitura daquele volume inédito, interrompida apenas pelas anotações que o leitor julga preciosas para melhor compreensão de algum ponto menos claro, e que prende, quase sempre, com algum facto unicamente sabido dos interessados – atura – se tudo isso e... não é sequer permitido o desafogo de lhe dizer no fim: «Essa mulher é tola!» quando é isso o que, muitas vezes, se depreende da leitura!

Há, entre outros, três assuntos, dos quais eu peço sempre a Deus que me livre, e são: batalhas contadas por veterano, que já se não lembra delas – proezas de caçadores, e, sobretudo – confidências de namorados.



O SELO DA RODA

(Extracto)

Dormir!... repousar!... esquecer!...

Valha – me Deus!... Quantas vezes mentem os lábios, dizendo: Vou dormir!?... Quantas vezes declaramos, que vamos repousar, quando sabemos que o verdadeiro trabalho vai começar para nós!?... Quantas vezes, invocamos um mundo, de recordações!?...

E, pensando nos seres, vivem connosco ao abrigo do mesmo tecto, uma espécie de inveja leva – nos a dizer: «Todos dormem!», quando imensas vezes, todos velam e, o que é mais, velam por nossa causa! Ó insónia!... tu podes ser o mais horrível dos martírios, ou o mais sublime dos prazeres! Conheço – te sob todas as formas! Tenho – te sentido a escaldar-me o cérebro, a esmagar – me o coração com férrea mão, a gelar – me de receios; mas devo-te, igualmente, um idear de mil venturas, um desabrochar de esperanças infinitas, a concepção de fantásticos projectos, a construção de mil castelos, que, por feitos no ar, te obrigam, ó insónia, a dar-me asas com que me eleve até eles!

A insónia causada por um primeiro amor! Que há ai que a valha!?... Nascida desta pergunta: «Amas – me?...» prolonga – se a escutar o pulsar do coração, que, como a pêndula de um relógio, responde sem cessar: «sim»-«não», «sim»-«não».

E o peito dilata – se a cada «sim» para se contrair a cada «não»; e a mente recorda complacente os olhares, os gestos, as palavras da mulher amada; e de todo esse recordar vem uma espécie de certeza de lhe não merecermos o amor; desconhece a insónia, em que se forma o plano de imortalizar um nome, para lho oferecer a Ela!?...

Qual o que a não imaginou rodeada de chamas, ou debatendo – se entre as vagas revoltadas do oceano, para a ir salvar!...

Qual o que se não vê ferido mortalmente em defesa d'Ela, vivendo unicamente o tempo preciso, para exaltar o último suspiro sob a pressão ardente dos seus lábios!?...

Meus formosos vinte anos!... Que fugísseis... concedo; mas que me roubásseis essas loucuras; essas quimeras, esses absurdos, de que eu hoje rio, com os olhos rasos de água... é cruel!

Que saudade eu tenho desse tempo, em que se lê cem vezes a carta, que à primeira se decorou!

Os dois, talvez únicos, dizeres, que eu ainda hoje retenho exactos na memória, são os da primeira oração, que minha mãe me ensinou na infância, e os da primeira carta da mulher, que iluminou a minha adolescência!

Perdoem este viçar de saudades, que assim rebentaram de repente em terreno, onde, de há muito, se dão bem!


O Selo da Roda

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