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Ivo Machado


Ivo Machado, foto de Vicente Valero, Sarajevo, 2006

Ivo Machado nasceu nos Açores em 1958. Ainda estudante do liceu revela-se como poeta em páginas académicas mas seria no jornal A UNIÃO de Angra do Heroísmo que, em Março de 1977, viria a público o primeiro trabalho digno de registo. Tem participado com regularidade em diversos encontros de escritores, destacando-se — Correntes d’Escritas, Portugal; Salón del Libro Ibero-Americano de Gijón, Espanha; Cammino delle Comete, Itália, e Festival Internacional de Poesia de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina. Tem feito leituras dos seus poemas em vários países, como Espanha, Itália, Estados Unidos, Bósnia-Herzegovina, Uruguay e Brasil. Parte da sua poesia está traduzida para castelhano, inglês, eslovaco, húngaro, italiano e bósnio. Tem colaboração dispersa por revistas literárias no país e estrangeiro, estando ainda representado em inúmeras antologias. Do primeiro livro, Fernando Lopes-Graça, musicou para canto lírico sete poemas a que chamou — Sete Breves Canções do Mar dos Açores. Em 1987 deixou as ilhas (onde ciclicamente regressa) para viver no Porto.

Publicou: Alguns Anos de Pastor, poesia, 1981; Três Variações de um Sonho, poesia, 1995; O Homem que nunca existiu, teatro, 1997; Cinco Cantos com Lorca e Outros Poemas, poesia, 1998 (homenagem particular ao poeta de Granada, tendo sido convidado a apresentar o livro naquela cidade andaluza durante as comemorações do centenário do nascimento de Garcia Lorca e, em Fevereiro de 2002, traduzido e editado naquele país numa edição bilingue, pela LITERASTUR); Nunca Outros Olhos Seus Olhos Viram, novela, 1998; Adágios de Benquerença, poesia, 2001; Os Limos do Verbo, poesia, 2005; Verbo Possível, poesia, 2006. Ainda em 2006, publica Poemas Fora de Casa, antologia que reúne a sua poesia, celebrando assim os vinte e cinco anos da publicação de Alguns Anos de Pastor, seu primeiro livro.




ALGUNS POEMAS


CASA

Das casas sobram sempre lamentos,
a languidez do amor nos rios dum lençol, a mão
disforme nos lábios húmidos duma palavra;
das casas restam sempre nomes, vozes

das casas cresce uma alma
que esmaga o tecto minúsculo das mariposas
do Verão; das casas sempre um cheiro de nascer;
das casas sempre o roçar das asas da morte.

Nascer e morrer na mesma casa é privilégio,
sabedoria, ou sublime instante de passagem,
apenas.

MONTEVIDEO, 28 de Janeiro de 2006
(inédito)


BÓSFORO

Um dia minha âncora erguer-se-á dum porto qualquer,
e nesse instante o horizonte entrará num frenesim.
Os mármores diluir-se-ão sob as águas indefinidas
como na travessia entre Eminönü e Üsküdar, a luz
se dilui
no espelho do alvorecer dos minaretes de Istambul

Corrido o mar chega o silêncio. A distância amarra,
e mergulho num sotaque de transterrado.
Aos vapores na correria entre dois mundos
entrego o lirismo da minha língua — este sabor
a enxofre dos caranguejos das ilhas,
para que ela se dilua na água de cobre do entardecer.

ISTAMBUL, 1 de Maio de 2006
(inédito)


DIVAGAÇÃO

Quando morrer
quero correr o mundo. Nas primeiras horas
desse lusco-fusco, colocarei a última pedra
na estrada que minha mãe rasgou no mapa
acenado por meu pai em terra desbastada.
Depois começarei a viajar. Começarei por Paris.
Não perguntem porquê Paris. Quem sabe,
pela erudição dos mendigos
a celebrar os seus excessos

Quando morrer
quero conferenciar com Deus. Na primeira
aula de catequese instalou-se a ideia
que Deus era um relógio igual ao de Brooklyn
existente na casa dos meus avós.
Era perfeito, infalível o relógio
manufactured by the Ansonia Clock Company.
Não por ser americano ou pertencer à família,
mas porque mediava a história do mundo interior,
mais a crença naqueles que não se escondem
para morrer; e no exterior em mutação
padecendo de amnésia.
Um dia o relógio avariou, deixei de crer em Deus.

Quando morrer
quero dizer a Ele tudo isto, até O convidarei
a viajar comigo. Quem sabe, não iremos a Brooklyn
falar com os donos da Ansonia Clock Company
para um certo de contas
e clarificação de dúvidas.

SARAJEVO,
14 de Outubro de 2006


(inédito)

(reprodução autorizada pelo autor)



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