Projecto Vercial

José António Gonçalves


José António Gonçalves

José António Gonçalves (de seu nome completo José António dde Freitas Gonçalves), natural de S. Martinho, Funchal, 13.06.54, pertence aos órgãos directivos da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e é presidente da Associação de escritores da Madeira (AEM), da qual foi co-fundador (1989). Desde muito jovem que publica textos na imprensa e tornou-se Jornalista profissional em 1971 (Jornal da Madeira), tendo sido co-fundador e dirigente da secção regional do Sindicato dos Jornalistas na Região e da Associação dos Jornalistas da Madeira. Preside também, desde 1991, à Associação dos Desportos da Madeira. Revelou-se em «O Poeta Faz-se aos Dez Anos», da Maria Alberta Meneres (que lhe dedicou um capítulo do seu livro), em 1973 (Assírio & Alvim). Em 1973 integrou o Caderno de Poesia & Crítica «Movimento (número único, org. A. J. Vieira de Freitas), com António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Pedro Támen, José Bento, A. J. Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues. Dirigiu nos anos setenta a página literária «Poesia 2000» no «Jornal da Madeira e, em 1993 o «Suplemento Cultura», no «Notícias da Madeira».

Fundou e dirige várias colecções literárias, com realce para o Movimento «ILHA», com quatro espicilégios editados (1975, 1979, 1991 e 1994, CMF, onde revelou cerca de uma vintena de novos autores madeirenses), os «Cadernos Ilha» (doze números publicados desde 1988), «Prosas da Ilha» (dois números), «A Memória das Palavras» (dois números: «Única», de Dórdio de Guimarães e «A Ilha de Circe», de Natália Correia» ), «Livros de Cordel» (dez números, CMF, incluindo poetas da ilha e do Continente português, com realce para Ernesto Rodrigues, Vergílio Alberto Vieira, João Rui de Sousa, José Viale Moutinho, David Pinto Correia e António Ramos Rosa) e criou, recentemente, outra, «Terra à Vista», na Editora Regionalista da Madeira «Arguim» (cinco números, incluindo Francisco Fernandes, São Moniz Gouveia e Lília Mata).

Enquanto agente cultural organizou uma vasta diversidade de eventos, desde espectáculos musicais, (trouxe à Madeira a Casa da Comédia, de Filipe Lá Féria, com «A Bela Portuguesa», de Agustina Bessa-Luís), recitais, conferências, Feiras do Livro, com autores como José Saramago, José Manuel Mendes e Fernando campos, entre outros, «Os Olhares Atlânticos» (um mês de cultura madeirense em Lisboa, Biblioteca Nacional, 1991, com exposições, debates, mostras de pintura, livreiras, musicais, etc.), exposições de poesia ilustrada, assim como acções de divulgação de obras e escritores em escolas e bibliotecas, municipais e da Fundação Calouste Gulbenkian. Escreveu diversos prefácios para livros de autores locais (de São Moniz Gouveia, Carlos Nogueira Fino, João Luís Aguiar, Francisco Fernandes, João Carlos Abreu, João Dionísio, por exemplo), fez a apresentação pública de inúmeros outros e desenvolveu diversa produção ensaística sobre obras e escritores nacionais e estrangeiros ao longo dos últimos trinta anos, para além de assinar dezenas de letras para canções gravadas por artistas portugueses, folhetos e catálogos de artistas plásticos e de encartes em discos, assim como produziu, realizou e apresentou variado tipo de programas de rádio de índole cultural nas diferentes estações públicas e privadas da Madeira.

Com Ivo Caldeira seleccionou e concretizou o projecto «O Canto dos Poetas Madeirenses» que assinalou, em 1999, o primeiro aniversário da Rádio TSF na Madeira, reunindo uma dezena de poetas em registo de voz, com o apoio da DRAC-M, num CD amplamente divulgado dentro e fora da Região.

A sua obra, num total de quase duas dezenas de livros (sem contar com as antologias) foi comentada, analisada e criticada por autores como Manuel Frias Martins («Dez Anos de Poesia em Portugal – Leitura de uma Década 1974-1984», Editorial Caminho, 1986), Ernesto Rodrigues («Verso e Prosa de Novecentos», Instituto Piaget, 2000), Ramiro Teixeira, Natália Correia, Dórdio Guimarães, Albano Martins, Vergílio Alberto Vieira, João Rui e Sousa, António Fournier, Giampaolo Tonini, Massimo Bussone, Maria Aurora Homem, Francisco Sousa Neves, João David Pinto Correia, Horácio Bento de Gouveia, Alberto Figueira Gomes, Dalila Teles Veras, J. Henrique Santos Barros, Ana Margarida Falcão, José Viale Moutinho, José Laurindo Goes, entre muitos outros. Traduzido em russo, italiano e espanhol, irá ser incluído numa nova antologia do Conto de autores madeirenses a publicar em língua italiana em Pisa, numa organização de António Fournier, na sequência da obra laudatória em poesia que divulgou sobre Giacomo Leopardi, na passagem do seu bi-centenário de nascimento, dedicada ao seu poema «Infinito».

OBRAS PRINCIPAIS

Prosa:

Réstea de Qualquer Coisa (Crónicas, ed. de A., 1973); Uma Entrevista com Adelino Amaro da Costa (JM, 1976); O Sol na Gaveta – Registo de um Percurso Humano de João Carlos Abreu (Arguim, 2002)

Poesia:

É Madrugada e Sinto (ed. de A., 1974); O Esconderijo do Caruncho (Poesia 2000, JM, 1975); Pedra-Revolta (Ed. de A., 1975); A Crista de Neptuno (Ilha 2, CMF, prefácio de Natália Correia); 20 Textos para Falar de Mim (Cadernos Ilha, nº. 1, 1988); Antologia Verde (Cadernos Ilha, nº.5, 1991); Arte Mágica (Ilha 3, CMF, 1991); Bar Cheirando a Rosas (Ilha 4, CMF, prefácio de Ernesto Rodrigues); Os Pássaros Breves (Átrio, Lisboa, Col. Pirâmide, posfácio de João Rui de Sousa, 1995); Tem o Poder da Água (Editorial Éter, Lisboa, prefácio de Ernesto Rodrigues, 1996); Noites de Insónia (CMF, Colecção Livros de Cordel nº. 1, 1998); Giacomo Leopardi e o Suave Desprendimento do Infinito (Ed. Correio da Madeira, prefácio de António Fournier, 1999); À Espera dos Deuses (Ed. Correio da Madeira, 1999); Lembro-me desses Natais (ilustrações de Maurício Fernandes, textos introdutórios; de João Rui de Sousa e Vergílio Alberto Vieira, Ed. Correio da Madeira, 2000); Aventura na Casa dos Livros (Col. Cadernos Ilha nº. 10, Ed. Correio da Madeira, 2000); Esquivas são as Aves (Col. Cadernos Ilha, nº. 11, Ed. Correio da Madeira); Memórias da Casa de Pedra (Col. Terra à Vista, nº. 1, Arguim, 2002)

Antologias

(que organizou e integrou)

Ilha (sete autores, Poesia 2000, JM, Funchal, 1975); Ilha 2 (seis autores, CMF, 1979); Ilha 3 (dez autores, CMF, 1991); O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (v., Secretaria R.T. Cultura e Emigração, 1989); Poet’Arte 90 (v., Associação de Escritores da Madeira, 1990); Poetas da Ilha (v., Biblioteca Nacional/Associação e Escritores da Madeira, 1991); Vers’Arte 91 (v., CMF/Associação de Escritores da Madeira, 1991)

e ainda organizou a edição:

«Crónicas do Norte» de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983, prefácio e notas, CM S. Vicente, 1994)

ANTOLOGIAS (as mais recentes, em que está representado):

100 Anos de Federico Garcia Lorca – Homenagem dos Poetas Portugueses (Universitária Editora, 1998); Antologia de Poesia Erótica (Universitária Editora, 1999); O Escritor (APE, nº. 13/14, Lisboa, 1999); Mealibra (nº. 6, Centro Cultural do Minho, 2000); Lisboa com seus Poetas (Adosinda Torgal e Clotilde Correia Botelho, D. Quixote, 2000); «Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (org. e trad. de Giampaolo Tonini, ed. Centro Internazionale della Gráfica de Veneza, 2001)

TELEVISÃO

(autoria e guionista)

Ora…O Mar (teledramático da RTP-Madeira, realização de Paulo Valente, Prémio Açor de Bronze da IV Mostra Internacional da Televisão do Atlântico, 1988)

Retratos da Madeira (série biográfica, seis episódios, produção de Hoffman & Jardim, realização de Eduardo Geada, RTP-Madeira, 1989/1990)

O Morto (teatro, peça em 1 acto, Teatro Experimental do Funchal, direcção de Eduardo Luís, RTP-Madeira, 1994)

CINEMA

(guiões para documentários)

Açores Outono (produção de José Luís Cabrita, realização de Acácio Almeida, 1978)

Madeira – Bordado de Sonho (produção do IBTAM, realização e António de Sousa, 1980)

PRÉMIOS

(algumas das distinções, sem contar com as alcançadas em festivais de canção infanto-juvenil)

Prémio Nacional de Poesia (Juventude Operária Católica, «Todos os Homens são Meus Irmãos», 1972); Prémio de Literatura Leacock/Secretaria Regional da Cultura (com o livro «20 Textos para Falar de Mim», 1988); Açor de Bronze (teledramático «Ora…O Mar», IV Mostra Internacional de Televisão do Atlântico, 1988) ; Galardão de Mérito da Cultura da Região Autónoma da Madeira (com a antologia «O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses», 1989); Escritor/Poeta do Ano (Diário de Notícias do Funchal, 1991); Evento Cultural do Ano (com Rui Lima, projecto «Natal em Timor», com Rui Lima, incluindo canção tema, vídeo-clip – o primeiro produzido e realizado na Madeira – e campanha nacional humanística e solidária com o povo timorense, 1991); Galardão de Mérito Cultural (pela obra desenvolvida na Região, Governo Regional da Madeira, 1994); Escritor do Ano (revista «Turismoda», Lisboa, 2002)

 

OPINIÕES

«José António de Freitas Gonçalves, é autor de um poesia onde, só por si, se ressuma o sentir e o pensar de uma identidade insular, credenciando-o, pelo rigor da sua construção e por nela se adivinhar o poeta, empenhado sem reservas, no caminho da aventura poética (…)».

José Henrique Santos Barros (Jornal da Madeira, 1973)

«Assinale-se a qualidade individual de alguns poetas (da Madeira) que aguardam, quase desesperadamente, um tempo de reconhecimento colectivo de acto cultural (…), sobretudo um novíssimo, cujo nome, se soprarem de feição os ventos da fortuna, irá deixar as suas marcas na futura poesia portuguesa: José António de Freitas Gonçalves»

Manuel Frias Martins (in «Dez Anos de Poesia em Portugal», Caminho, 1986)

«Tenho acompanhado durante alguns anos a tua extraordinária actividade cultural e a tua poesia. Em sociedades pequenas, sobretudo tão pequenas como as nossas duas Regiões (Madeira e Açores), só grandes impulsos, grandes terramotos permitem manter viva uma cultura e aumentar-lhe a qualidade. Fui ficando com a impressão de que tu és esse terramoto

Manuel Machado (Oslo, 1990)

 «José António Gonçalves é um poeta de ímpetos e de hábitos frugais, um iconoclasta pagânico. É um poeta de intuições e de saberes e que viaja as suas experiências líricas por facetas singularmente múltiplas. Distribui-se por temas e abordagens que perfazem um conjunto quase heteronímico. Poesia tantas vezes deambulatória e comovida (…), fibrada, recalcada de amor e de instintos, de súbitos entusiasmos, de instabilidades sofridas e de quanta generosidade, aquilo a que o grande poeta brasileiro Jorge de Lima apelidava de poesia gorda, que auto se nutre, que tudo absorve em si. O poeta está sempre à frente da sua condição limitada de homem (humana), ultrapassa-o, excede-o». Dórdio Guimarães (Lisboa, 1996)

«Raras vezes, ao apresentar a julgamento um balanço de produção poética como este (Antologia Verde, 1991), tão rico, profuso e coerente, independentemente da insistência ou variedade de conteúdos e formas, se nos depara o mesmo virtuosismo de admiráveis metáforas, a mesma plástica reflectora do que constitui a verdadeira essência poética, toda ela pautada pelo equilíbrio, harmonia e ponderação».

Ramiro Teixeira (Primeiro de Janeiro, 1992)

«O naipe de recursos, episódicos ou não, exibido por José António Gonçalves, enquadra-se bem num estilo de voz e num testemunho que, recusando ostensivamente qualquer forma de angelismo, qualquer idealização tendente a iludir a riqueza, o contraditório ou os embaraços da praxis existencial, tendem a perfazer-se numa amadurecida simbiose entre a necessária fidelidade ao real e a transfiguração metafórica com que se supera o excesso simplificante, o discurso apenas denotativo, a conjugar-se com um despojamento onde convivem tensão e amplitude referencial, desenvoltura inventiva e palavra emocionada».

João Rui e Sousa (in posfácio a «Os Pássaros Breves», 1995)

«Estou a ler o poeta José António Gonçalves. A abertura, a desenvoltura, a espontaneidade, a autenticidade, o carisma (a que se junta um profundo sentido da fraternidade com os seres e as coisas), que encontrei no homem, está aqui, também, no poeta. E é bom, reconfortante, encontrar assim alguém em que poesia e vida (em que o poeta e o homem) se harmonizam, se identificam, se completam. Superiores, muito superiores, em qualidade, estes seus poemas, à maioria dos que a crítica oficial (a universitária e a outra) nos propõe (nos impõe), todos os dias, como produtos de primeira qualidade. Trata-se, na maior parte dos casos, de subprodutos, contaminados, numas vezes, de literatura (de literatice), outra, de sarro e de babugem. Prestidigitadores são (assim os vejo pelo menos) muitos dos laureados poetas da nossa praça. Publique a sua obra, exporte-a para o continente. Ela acabará por se afirmar, mesmo sem as muletas da crítica. Não desista».

Albano Martins (Vila Nova de Gaia, 1999)

«A feição mais consistente em José António Gonçalves é a de poeta-orador, é o espectáculo, com flagrantes emotivos dos homens e das coisas, de orador português à luz da História madeirense, o qual, via modernismo à Álvaro de Campos reivindica um particular movimento da lírica nacional»

Ernesto Rodrigues («Verso e Prosa de Novecentos», Piaget, 2000)

«Sendo José António Gonçalves um poeta excepcional, não se sabe bem o que dizer senão confirmar a sua qualidade e, em última instância, nem é preciso na verdade ler o livro («Memórias da Casa de Pedra») para se saber isso. (…) Os principais estudiosos da sua obra (…) são unânimes em considerar a sua faceta de homem público e solidário, generoso na dádiva e voluntarioso no esforço, para descobrir a sua dimensão de orador, de dinamizador de afectos, de coragem e dinamismo intelectual (…), (até porque) nos últimos trinta anos, qualquer experiência literária plural, qualquer iniciativa colectiva que se realizou nesta terra, teve o seu dedo (…), (com a sua) enorme criatividade, o seu generoso espírito de iniciativa, inclusive na descoberta de novos valores (…), (sem o que) o panorama cultural madeirense, quer em termos de uma consciência de classe por parte dos escritores locais, quer em relação ao tempo mental de uma comunidade, normalmente alheia ao fenómeno literário, seria um autêntico deserto. A sua poesia é a expressão da luta de um homem para não perder a sua verdadeira voz, a que lhe vem de dentro, o tal percurso da memória de que fala este livro, a faceta pela qual a sua Rossana, Gilda, se apaixonou, sem ter que esperar a vida inteira para o descobrir». António Fournier (Universidade de Pisa, in Clarabóia, Funchal, 2002)

»O livro («Memórias da Casa de Pedra») de José António Gonçalves reflecte a tão actual miscigenação genológica entre a narrativa, o drama e a poesia, a qual permite uma maior e mais rápida empatia da contenção poética com o mundo expansional do leitor (…). No percurso de «memórias» deste poema narrativo em cantos líricos – e a preencher o seu espaço físico e mental, literário e poético -, pode sentir-se, desde o início, a casa como personagem, quer de vivência social, quer de uma vivência pessoal e intimista que se estende da infância à idade adulta, num percurso contínuo que determina, apesar dos separadores gráfico-semânticos, a unidade de uma muito bem sucedida poética do lugar».

Ana Margarida Falcão (Teatro Baltazar Dias, 2002)



POEMAS ESCOLHIDOS

ONDE SE FALA DO MAR

PARA FALAR DE MIM

1

vieram de mim os longos sóis e os longos dias.

vieram de mim o arrastar dos bancos, os cânticos das igrejas,

e vim eu, senhor do meu nariz, nobre sem títulos nem castelos

nem divisas,

duma ilha pequena, perdida numa concha

de mar, onde nasci. era a primeira vez

que eu abria os olhos, e senti-me rei e marinheiro. estava

embrulhado numa alga, e adormecia numa gruta, adornada

por búzios quietos. os peixes visitavam-me e afastavam

os murmúrios, os gritos, os monstros pelados,

e o eco da minha voz, que habitavam os meus sonhos. é por

isso que me revesti da luz cintilante das suas escamas

e tenho, dizem-no as mulheres que desconheço, um suor

sem perfume, um suor sem matéria, enquanto que o meu corpo

tem o encanto do cheiro a maresia.

2

trouxe comigo

do país onde vi as mãos me crescerem,

um barco de madeira carcomida, amaldiçoada

pelo vento marinho,

numa viagem de calados suspiros.

3

cheguei, depois de muito navegar, a

uma terra verde,

bordada a pérolas no mar. abandonei a viagem

e passei a conviver com sereias e ninfas

silenciosas, que perdiam o seu tempo plantando

palmeiras, cuidando de animais selvagens, soltando

 aves em sorrisos lentos,

pelos buracos vermelhos das suas bocas, infantis e sensuais,

em rotas roxas.

4

após longos meses, longos sóis e longos dias

que criei, escrevo: estrangeiro meu espírito em meu

corpo,

ou perdido meu sentido dento de mim –

a ilha é pequena. a minha voz perde-se no seu verde incansável.

5

trago nos meus dedos sabor

amargo e estranho. as naus se foram e rebocaram o meu barco,

deixando sulcos no meu peito. Trago sabor amargo

nos meus dedos. quem mos devolve iguais aos da minha

infância? quem mos torna pequenos? Está a fonte

da minha saciação longe da minha sede e o meu fulgor sem alento

é transporte impróprio para  me levar à satisfação. Meus

dedos, agora reparo porque estou cansado, não chegam para a

minha ausência,

nem esta minha insuportável sede para o meu regresso.

6

vieram de mim longos, longos dias,

vieram de mim os cânticos das igrejas, as orações de desespero,

o arrastar dos bancos, o gosto a salsa. de madeira

é esta ilha órfã de nascença, minha irmã e minha amante, minha

candeia anunciada em minha voz, reflectida em meu grito,

reproduzida dentro de mim. terra verde e talvez virgem, há muito

tempo, no meu regaço antigo,

por que me perdi.

José António Gonçalves

(in «É Madrugada e Sinto», Funchal, 1974)

PENSAR UM NOME

1

para falar de uma ilha não há

um nome único. é preciso dizer casas

e telhados, um cemitério ao fundo

onde algures a água pode chegar

- essa água sempre girando à volta

dos olhos dessa mesma gente

abatendo o pó das mesmas ruas

e enxotando as mesmas crianças

das mesmíssimas soleiras de porta.

2

pensar um nome sem árvores

ou um bom punhado de velhos no jardim municipal

e oferecer o seu gosto salgado

ao paladar do turista exigente

farto da cor do mar sem o beijo do céu

e atento ao ritmo do xaramba

- a madeira saberia a alumínio

batido na ombreira

dos dias mornos

derretendo nos bois a canção dos vilões

curiosos dos limites das montanhas

e da maneira como morre o sol.

3

no interior das casas cheira a cal

e à pedra mole onde dormem os séculos.

o cimento e o andaime vão chegando

derradeiramente comandados pelos amantes da areia

e vão cobrindo de tijolo o espaço do calhau

- apetece rebentar na cabeça do silêncio

este amor pelas coisas antigas

a saudade das mãos cansadas

e de saborear a terra sem flores murchas.

4

a ilha é um nome verde

sonhador de uma manhã de versos

onde caiba um poema de planícies eternas.

 

José António Gonçalves

(in «A Crista de Neptuno», Ilha 2, CMF, 1979)

PORQUE NASCI

sou poeta porque nasci só no orvalho das manhãs

e descobri nas palavras que explorei no silêncio

a explicação das coisas     a razão da brancura

a vontade inexplicável de estar aqui

onde caí com as mãos presas e os olhos vendados

o corpo negro e nu descoberto ao longo dos montes.

sou poeta. gritei-o longe com a força da minha voz

e as valas fecharam-se e deixaram-me passar.

mantos azuis ventos fortes mares estranhos

céus límpidos tomaram conta de mim. sou poeta.

nasci só, no orvalho das manhãs, protegido

por flores

por bombas, por maldições e o meu corpo é uma haste

ou harpa ou arma, pedaço de pão, fogo, fome ou lanterna

brinquedo rodando nas mãos de jugos. sou poeta.

dêem-me o vosso arado. deixai-me cultivar vossas terras

áridas, vossos desertos secos. deixai-me soçobrar

nos vossos barcos náufragos. deixai-me criar epitáfios

fogueiras, lendas. deixai-me com os vossos filhos vagando pelas

montanhas, pela lã das ovelhas. pelas

ventanias. deixai-me construir um ruído mudo de silêncio

uma voz calada, mais vibrante que esta branda fala

para dizer-vos um poema     sou poeta     nasci rosa

no orvalho transparente das manhãs.

José António Gonçalves

(in «Vinte Textos Para Falar de Mim», Col. Cadernos Ilha, Nº. 1, 1988)

PORTO SANTO, VERÃO DE 1973

oiço a música forjada e quente do sol e do mar

embravecido, num cântico azul, sem manhãs, nem

pureza, nem casas. os barcos, brancos e vermelhos

brilham e baloiçam, baloiçam e brilham afogados

pela água fria e irritada. as palavras flamejam

e soltam-me gritos amorfanhados enquanto as construo

na areia da praia em chama, onde o mar despeja

a sua ira da cor do céu. a hora, esta hora, é aquela

do beijo, da fervura, da comida, do sono, ou então

a do amor. é um castelo, uma cara, no chão molhado

o tempo. uma mão. cinco dedos num esconderijo profundo

do gesto, do vómito sem cor nem corpo. é o sol e as

formigas, o vento e a música procurando um porto, um

cais, ou um navio, um braço queimado correndo a pele

e o suor do sonho. oiço as vozes, a música, e congemino

um silêncio cavalgando o ruído enquanto o calor cai

nos olhos, devorando a carne e o pensamento. ao meu

pé, algumas crianças jogam lama no meio-dia e procuram

a mãe. encontram-na na água morna do porto, perdida

e embrenhada na alma dum santo sem auréola, primitivo,

no coração dum homem só e húmido, embriagado, dizendo

versos com as rimas colorindo as pálpebras inchadas.

e toda a gente fala, ao mesmo tempo. a tarde desprende-me

o lugar da mão assustada. e ela, solta, é o rosto fornicado

da esperança, a água bebida com sal, bebida com sol, sem

saber a nada. é uma carta, um diário, ou um postal. é o

porto santo moldado na pedra negra, escavada ao alcance

da música e do poema. sem loucura, nem amor.

José António Gonçalves

(in «Vinte Textos Para Falar de Mim», Col. Cadernos Ilha, Nº. 1, 1988)

CRÓNICA DO NÁUFRAGO ADORMECIDO

NOS BRAÇOS DE UMA SEREIA

escutam-se nos seus cabelos as ondas

do mar como se os abismos trouxessem o eco

dos peixes beijando-se em camas de algas

e os pescadores fossem deuses a invadir búzios

reinos de silêncios quebrando o encanto

da água exposta na luz dos espelhos

com o sexo à flor da pele palpitando

por entre os olhos da natureza a chamar

sempre ao longe como se pudesse convencer

um corpo a ficar eternamente abraçado

a outro corpo no lugar onde é possível

construir a casa habitar o tempo e sorrir

aos pássaros que passam na rota do sol

sim é possível escutar as ondas batendo

na rocha macia dos seus cabelos soltos ao vento

 

José António Gonçalves

(in «Os Pássaros Breves», Átrio, Lisboa, 1995)

A VIAGEM ERA A CARAVELA

a Ernesto Rodrigues

a viagem era a caravela nos sonhos de Zarco

nesse tempo onde o vento soprava lenços e viúvas

esperavam no cais de todas as partidas

eram escarpas chamando ao longe pelos descobridores

penedias e morros ainda sem nome bramindo no mar

ansiando pelo colmo no calor das enxadas

havia terra e arvoredo madeiras para construir

igrejas e naus no coração dos agricultores

empurrando-os sempre para o nevoeiro dos horizontes

os primeiros não conheciam as artes do bordado nem das vinhas

semeavam o trigo para enganar o destino e os rochedos

amando a cana-de-açúcar nos abismos da aguardente

depois é que chegaram os engenhos e a sabedoria dos velhos

o atravessar das entranhas com os cânticos das levadas

e o xaramba dos arraiais no elogio das alegrias

os campos aprenderam a dança das flores e dos abacates

enchendo as manhãs de silêncios e do cheiro a erva fresca

deixando correr as crianças no vagar das bananeiras

as pradarias pintavam-se com as cores das casas

e de vez em quando uma árvore amparava a chuva

para receber o pólen do futuro

as ilhas não frequentavam o medo dos marinheiros

e os calhaus não cheiravam ao suor dos homens

onde as mulheres os vinham chorar

José António Gonçalves

(in «À Espera dos Deuses», Ed. Correio da Madeira, 1999)

É O MAR QUEM VENCE

para José Manuel Mendes

o marinheiro viu o abismo e deu o passo em frente

soprado pela força do vento nas velas enfunadas

escutando o rumor fundo das vagas cavadas

nos olhos vidrados do adamastor indiferente

é mais além a contenda o fogo fátuo do horizonte

o lugar onde se avista o testemunho da descoberta

a sede feroz a água solta transformada em fonte

a repentina voz presa em busca da alma liberta

é preciso ir avançar bramir no silêncio eterno

quebrar o ímpeto surdo da oca imensidão marinha

fremir o espírito das ondas e ao trespassar-lhe a espinha

reduzi-las ao sentido da palavra impressa nas noites de inverno

mais tarde é o cheiro da terra pisada a bandeira

a conferir presença posse cor firme da nacionalidade

e depois a vontade de seguir sempre na esteira

de um chamado a que ninguém pertence

e onde é apenas o mar quem vence

o apelo de abraçar a lonjura com o rosto da liberdade

José António Gonçalves

(in «À Espera dos Deuses», Ed. Correio da Madeira, 1999)

PÔR-DO-SOL

para Virgílio Pereira

Este é o mar que se veste de vermelho,

convidado pelo ocaso do poema

para o baile do fim do dia.

Ei-lo à distância, abraçando a periferia

de um olhar que se perde nas falésias,

sorridente na brevidade da sua figura.

Poderia o ilhéu dar o salto inconsciente,

entregando-se ao sal rosado do seu vestuário,

curioso por provar a água do seu bordado.

Porém, resguarda-se no calor da terra,

pisando a ilha com a carne da sua loucura,

acorrentado às ervas que nascem no recolher das casas.

E suspira, como um anjo esquecido

na multidão solitária que percorre as ruas,

perguntando pelo lugar onde descansam as suas asas.

José António Gonçalves

(in «Aventura na Casa dos Livros», Col. Cadernos Ilha Nº. 10, 2000)

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Tenho uma praia branca

de areia doce

na cabeça.

Raramente me esqueço

do mar e acordo sempre

com um cavalo amarelo correndo

sobre as ondas mansas

em direcção ao infinito

com um peixe preso na boca.

Nesses dias deito-me e imagino

montanhas à distância dos horizontes

vestidas com os verdes dos quotidianos

e as flores dos altares

e depois recolho-me ao sal

das bibliotecas fechadas.

José António Gonçalves

(in «Aventura na Casa dos Livros», Col. Cadernos Ilha, Nº. 10, 2000)



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