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Latino Coelho


José Maria Latino Coelho nasceu em Lisboa a 29 de novembro de 1825 e faleceu em Sintra a 29 de agosto de 1891. Formou-se em Engenharia Militar, seguindo a carreira das armas. Chegou a general e, tendo aderido ao Partido Republicano, foi eleito deputado. Exerceu funções como Ministro da Marinha e como professor da Escola Politécnica de Lisboa. Notabilizou-se com obras de foro histórico e ensaístico. Fez uma versão de A Oração da Coroa de Demóstenes (1877), com um estudo introdutório intitulado "A Civilização da Grécia". Este estudo foi contestado por Oliveira Martins.

Obras: Oposição Sistemática (Lisboa (1849); Curso de Introdução à História Natural dos Três Reinos (Lisboa (1850); O Sonho de um Rei (Coimbra (1879); História Política e Militar de Portugal, desde Fins do Século XVIII até 1834 (Lisboa, 3 vols. publicados entre 1874-1891); Luís de Camões (biografia, Lisboa, 1880); Vasco da Gama (biografia, Lisboa, 1882); Marquês de Pombal (biografia, Lisboa, 1904); Garrett e Castilho (Lisboa, 1917); Tipos Nacionais (Lisboa, 1919); Cervantes (biografia, Lisboa, 1919); Arte e Natureza (Lisboa, 1923); Literatura e História (Lisboa, 1925).




TIPOS NACIONAIS

O CARTEIRO

Quando vemos passar junto de nós um homem fardado de casaco azul, gola vermelha debruada de oiro, sobraçando um saco de pele, um turbilhão de sentimentos diversos nos acodem à mente. Esse homem, de aspecto plácido e gélido, é o fiel mensageiro da vida e da morte. Uns o esperam com alvoroço, outros com receio. Todas as portas se lhe abrem, todas as mãos avidamente se lhe estendem, todos o desejam com as comoções mais fortes, e com as mesmas o seguem.

O carteiro é uma esperança ambulante. Este homem, de fisionomia serena, espalha nas famílias, com a mesma insensibilidade, a tristeza e a alegria, os lutos e as galas. As donzelas, umas com as lágrimas nos olhos, suspiram pela sua vinda, outras com o sorriso nos lábios e o rubor nas faces. Quantas mães aflitas com ânsia lhe arrancam das mãos a carta do filho ou do marido ausente, único lenitivo das saudades que as consomem!

À maneira da fortuna, o carteiro é cego, porque distribui com a mesma desigualdade os prémios e os castigos, as prosperidades e as ruínas. Impassível, convida com igual indiferença tanto para o baile como para o cemitério, e entrega com a mesma imperturbabalidade a inocente missiva afectuosa como a infame carta anónima.

Todas as coisas para ele têm igual peso: tão leve considera o singelo bilhete de visita, ou a participação de funeral, como a carta de ordens em que um banqueiro envia a outro uma avultadíssima soma.

Na mala misteriosa dó correio não se conhecem categorias sociais, nem ódios, nem rivalidades; ali não há lugares distintos para os sexos, nem para as idades; ali todas as línguas se falam e se entendem. Frequente é ver naquela boceta irem na maior intimidade os mais irreconciliáveis inimigos: o plebeu colocado por cima do nobre, ou formando dele estrado; damas rivais pacificamente recostadas umas sobre as outras; a esposa ciumenta vê indiferentemente o esposo junto doutra dama sua rival, sem género menor queixume.

Quem há, enfim, que, prestando os ouvidos da alma àquele grosseiro e veloso surrão, conduzido com tanta frieza e indiferença, não oiça lá dentro gemidos de saudade, gritos de dor, ou sorrisos de contentamento, ou exclamações de entusiasmo?

Oh! Aquela bolsa simboliza o caos da vida: alegrias, tristezas, amores, ódios, esperanças, incertezas, desenganos, interesses, ruínas – tudo ali se acha envolvido e conglomerado na mais absoluta e inextricável confusão!

Tipos Nacionais


ARTE E NATUREZA

A IGREJA DE BELÉM

O templo que logo à entrada de Lisboa se alevanta para atestar a todos as glórias de D. Manuel e para memorar os cometimentos e façanhas dos seus cavaleiros e argonautas nas terras orientais não é simplesmente um monumento nacional, senão um padrão venerando para a cristandade inteira, e um dos marcos miliários da civilização, de toda a Europa.

Belém alevanta-se em tradições e em memórias acima de todos os monumentos erguidos às glórias de Portugal. A Batalha é mais aérea nas suas projecções gigantes; mais mimosa nas suas laçarias e rendados; mais grandiosa na sua concepção original e mística: mais de saudades intimas e de recordações domésticas; mas a igreja das Jerónimos é mais gloriosa do que o mosteiro da Vitória, porque este simboliza, a par da piedade e da crença viva das nossas avoengos, uma tradição de rivalidades e uma história de ódios nacionais: e Belém, ao contrário, é como o primeiro monumento erguido à comunidade das nações, mais estreitadas pelos laços dos descobrimentos e conquistas, que reverteram em prol de todas as gentes europeias. A Batalha é grandiosa nas suas recordações, porque é, por assim dizer, o troféu de pedra erguido sabre um campo de vitórias. É solene aquele templo, porque há ali, a par da adoração supremo de Deus vivo, o culto das nossas mais patrióticas tradições, e o preito às nossas fidalguias de nação.

Em Belém, o monumento, lisonjeando a paixão ardente do patriotismo, é também como uma inscrição cosmopolita, insculpida em honra da humanidade. Não se mescla ali, ao pensamento cristão, a ideia sinistra das rivalidades nacionais.

A Batalha edificou-se para solenizar o triunfo passageiro de um povo sobre outro povo. Alevantou-se, porém, o templo manuelino para eternizar a conquista da civilização progressiva do Cristianismo sobre as civilizações pálidas e estacionárias das nações orientais.

É preciso ser português para admirar com o entusiasmo das memórias portuguesas o mosteiro que celebrou a vitória de Aljubarrota. Basta ser cristão e civilizado para que o viajante se enleve, não na forma finita e material do monumento de Belém, mas na ideia fecunda e generosa que tomou corpo naquele admirável símbolo arquitectónico. Poderia a hoste do Mestre de Avis ter deixado de investir contra os cavaleiros de Castela; poderia o campo de Aljubarrota não ter sido o teatro daquelas gentilezas cavaleirosas, e a humanidade teria progredido, apesar dessa lacuna, nos aventureiros fastos militares da Idade Média. Mas, se os mareantes do Gama não tivessem jamais levado ferro do ancoradouro do Restelo; se a tormenta os tivesse salteado e vencido para sempre na solidão dos mares, quem sabe se a civilização moderna não houvera seguido outros rumos, e se ainda agora a navegação e os descobrimentos não iriam em meio do seu curso!

Arte e Natureza



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