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Crónicas


António Mendes Moreira – As Minhas Charlas



Capítulo I

Resolvi endereçar a seguinte carta ao companheiro de letras José Leon Machado, de que tenho falado nos últimos tempos nestas charlas:

«Depois de ler os volumes I, II, III, IV e V das suas Memórias Quase Íntimas, continuo a pensar que o meu amigo já deveria ocupar um lugar de muito realce na nossa literatura biográfica. É que o seu diário é mesmo um diário. No entanto, como fatalmente vai competindo aos escritores da periferia, prevejo que só tarde e dificilmente verá o seu nome devidamente apreciado.

Como é natural, isto é, por ainda ser muito novo quando os escreveu, o primeiro e o segundo tomos serão os menos significativos por se encontrarem um tanto inçados de particularismos. Permita-me, por isso, sugerir-lhe uma poda em futura edição. Quanto aos outros, apreciei-os muito e terão o mesmo nível dos posteriores, tanto mais que nos põem a nu uma adolescência e juventude muito ricas e ainda enriquecidas por uma escrita bastante vivaz e sugestiva. Direi mais, o José Leon Machado tem trechos em que é um magnífico narrador ou mesmo ficcionista, atributos que terá burilado com engenho e arte através da leitura de múltiplos autores.

Curiosa esta confissão: «Eu gosto de poesia, daquela que eu compreendo». Aqui apetece-me reflectir que serão de facto os poetas mais talentosos ou geniais aqueles que melhor entendemos por serem os que melhor sentimos. Mais: não serão até como os melhores néctares que, quantos mais anos têm, mais sublimidade encerram?

Gostei muito particularmente de ler as suas peripécias castrenses, bem idênticas às minhas, pois a tropa é mesmo um bico-de-obra para um civil. Também a busca do amor é cheia de viveza e alacridade. E isso até chegar ao enamoramento com a Linda que, de tão genuíno e envolvente, até enternece. Sim, também estou consigo quando confessa que «descobrir uma mulher que, além do agrado físico, nos seja fiel e esteja sempre pronta a esforçar-se na construção de uma vida a dois, é raridade». O certo é que conquistámos essa bênção, pois «amar é imprescindível», como também acentuou.

Curioso ainda o lamento da leitura de obras pias o ter levado a execrar certos vultos, como, por exemplo, Marx e Engels. Também eu, em ambiente de direitismo autocrático na infância, adolescência e juventude fui levado a repelir certos autores.

Há tempos, em entrevista de Pedro Rolo Duarte na TV2, o jesuíta Vaz Pinto, que sempre tive por um padre progressista, ironizou que Marx já pertencia à paleontologia. Ora bem, não é que de um neo-marxismo, onde comungassem a liberdade e a justiça social, é do que o mundo necessitaria? Tanto mais que só dessa maneira seria possível reavivar ou mesmo ressuscitar a teologia da libertação. Pois é, mas não sucede que o capitalismo sem rosto já tudo vai tentando submergir, incluindo a própria política?

Por outro lado, Vaz Pinto considerou, e isso satisfez-me muito, que o celibato dos clérigos deverá desaparecer por se tratar de uma medida disciplinar que um ecumenismo crescente até ajudará a extinguir.

Enfim, meu caro José Leon Machado, sei que está assoberbado com a sua tese de doutoramento em literatura autobiográfica, pelo que não deverei alongar-me.»

António Mendes Moreira, Paredes, Fevereiro de 1998

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