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Crónicas


António Mendes Moreira – As Minhas Charlas



Capítulo II

Ao cirandar no supermercado do Centro Comercial do Vale do Sousa por comestíveis e bebestíveis, deparei com um antigo doente.

– Que bênção encontrá-lo! – desabafou o Aníbal com um sorriso muito largo de satisfação.

Naquele momento, vi-o já com um facies sanguíneo e bochechudo e uns cabelos já tão brancos como estrigas.

Abraçámo-nos.

– Amigo, essa saúde? – perguntei com interesse.

– O sangue está grosso, mas não há meio de ter tento na boca – lamentou-se o outro, de olhos cosidos ao chão.

– A vida é só uma. Cumpra tudo o que o seu médico mandar.

Entretanto, ao lado, sua mulher ia conversando com a Ana Maria. E, claro, para exaltar as minhas virtudes e esconder os meus defeitos, isto de acordo com o que costuma suceder no declinar da nossa vida.

A seguir, passou às recordações:

– Já não há médicos como ele. Tenho nove filhos e atendia-nos a qualquer hora do dia ou da noite. Depois, os seus remédios atalhavam logo as doenças.

Ora, ao ouvir a última frase, eu pensei que a relação médico-doente também comparticipava da terapêutica.

No fim de contas, o Aníbal, que passara a ser um bom garfo e não pior copo, o que não deixou de me doer, perante a minha insistência para que se tratasse e cumprisse a dieta adequada, desabafou:

– Bom, o centro de saúde só tem servido para o doutor me tanger para o seu consultório particular e me cobrar 5 contos.

Não respondi por não me ser possível absolver como tanto desejaria o colega. Lembrei-me, porém, de que no meu tempo, embora raramente, também chegaram a surgir queixas semelhantes.

Afinal, tudo isso não estaria de acordo com a natureza do bípede racional, ainda por cima cada vez mais à solta numa selva dia a dia mais pejada de cifrões?

– Senhor doutor, as suas palavras foram uns ricos presentes para mim. E, para as pagar, até vou levar-lhe, um dia destes, umas tronchudas do meu quintal.

Entretanto, sua mulher ainda resolveu exclamar com um sorriso de lés-a-lés:

– Só de vê-lo, o meu homem até parece outro! Muito agradecida.

– Ainda bem que continuo a ser útil aos doentes. E isso apesar de já estar aposentado – respondi com o coração a obrigá-lo a humedecer os olhos, quem sabe se por um médico nunca deixar de o ser através da vida.

– Deus o conserve assim rijo e fero – ainda acrescentou o Aníbal com um sorriso, que a todos contagiou.

– Apareçam lá em casa, pois sempre tive nos doentes bons amigos.

– Pelo visto, até será para ele uma consulta de graça! – exclamou a mulher com uma risada.

António Mendes Moreira, Paredes, 1998

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