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A paródia carnavalesca no surrealismo português e a teorização de Mikhail Bakhtine

Em 1995, completaram-se 100 anos sobre o nascimento de um consagrado ensaísta e teorizador russo, cuja obra revolucionou e mudou definitivamente o rumo dos estudos literários modernos em todo o mundo. Com uma enorme fortuna metacrítica no Brasil, o teorizador russo Mikahil M. Bakhtine (1895-1975), é autor de influentes estudos, contemporâneos das actividades dos formalistas dos anos 20/30, embora tardiamente divulgados no ocidente pela mão de T. Todorov e J. Kristeva, apenas em meados da década de 60. Hoje, ao nível da teorização, história e crítica literárias, tornaram-se muito vulgarizadas algumas das ideias nucleares do pensamento crítico bakhtiniano, nomeadamente conceitos ou temas como: dialogismo, polifonia, paródia ou carnavalização.

A fixação bakhtiniana nas manifestações do riso e da paródia medievais e renascentistas, bem como na história do género romanesco, não lhe permitiu valorizar devidamente outras utilizações da paródia na literatura do séc. XX, como aconteceu com o carnaval surrealista. Por isso, o que pretendemos sugerir e ilustrar, neste breve artigo, é que a Paródia carnavalesca e o Surrealismo português constituíram um casamento perfeito e explosivo. Por outras palavras, existe uma espécie de congenialidade entre o espírito que preside ao discurso parodístico e as intenções renovadoras e iconoclastas da vanguarda surrealista portuguesa, a partir de finais dos anos 40. Com excepção da literatura medieval e da barroca, em mais nenhum momento da história da literatura portuguesa a paródia foi tão explorada em todas as suas potencialidades destrutivas e inovadoras.

1. COMO DEFINIR SUCINTAMENTE A PARÓDIA?

1.1. A Paródia é uma modalidade discursiva tão antiga quanto a própria literatura. Na parte perdida da Poética de Aristóteles, constituiria o quarto género, ao lado da Tragédia, Comédia e Epopeia. Como (re)escrita marginal, deformadora e/ou renovadora, o discurso paródico pode ser definido por algumas características básicas, que, muito simplificadamente, podemos enumerar deste modo:

a) Em primeiro lugar, sublinhe-se a sua natureza intertextual, uma vez que a paródia pressupõe sempre a existência de um texto que parodia e outro(s) que é (são) parodiado(s), embora não se confine a esta dimensão intertextual, como veremos a seguir.

b) Daqui deriva a proclamada existência parasitária da escrita paródica: ela alimenta-se, textofagicamente, de outros textos que "rouba", isto é, não se pode ler fora de uma traditio literária. De modo geral, são os autores canónicos e obras célebres que suscitam o maior número de paródias.

c) Dum ponto de vista pragmático, devemos sublinhar a dinâmica inter-relação entre o parodiador e o leitor do texto: perante o texto parodiante, o leitor, dotado de uma certa competência literária, deve conseguir identificar o(s) texto(s) parodiado(s). De contrário, não compreenderá a relação paródica subjacente e, nesse caso, a paródia não funcionou, porque o leitor não a conseguiu descodificar.

d) Aqui reside também uma das acusações de que a paródia tem sido alvo, pois, pressupondo determinada competência cultural e literária, a paródia seria, para alguns, um discurso elitista, uma diversão lúdica para intelectuais. Retirando alguns excessos, temos de concordar que a Paródia pressupõe uma espécie de leitor ideal, detentor de uma alargada enciclopédia literária.

e) Outra questão relevante é a da intencionalidade da paródia: tradicionalmente, definia-se a paródia como um discurso derisório, como uma forma retórica de reescrita cómico-burlesca, deformadadora de um texto pré-existente; hoje, conceitua-se a paródia como um discurso ambíguo, cuja intencionalidade pode ir desde o desfiguramento paródico à homenagem mais ou menos velada.

f) A paródia pode também comportar uma funcionalidade ambivalente: ora deparamos com paródias revolucionárias, sempre que rompem, dum modo provocatório, com regras, modelos ou códigos tradicionais – é o caso dos surrealistas; ora, opostamente, com paródias conservadores ou normativas, quando animadas pela intenção de censurar ou refrear certas inovações (exemplo da paródia de Camilo ao romance realista-naturalista).

g) Por fim, como discurso ou meta-género de re-escrita e distanciamento ambivalente do texto parodiado, a paródia serve-se duma gramática ou retórica paródicas, isto é, de um vasto conjunto de técnicas, recursos e géneros linguísticos e literários: ironia, sátira, pastiche, paráfrase, estilização, discurso grotesco ou burlesco, etc..

1.2. Dum ponto de vista histórico, não será difícil nem muito questionável delimitar três grandes enquadramentos ou perspectivas da Teoria Literária da Paródia:

a) Uma perspectiva retórico-linguística, de natureza analítico-formalista, preocupada em definir uma gramática universal do discurso parodístico, unificadora das leis que regem as várias manifestações paródicas, com evidente destaque, por ex., para o trabalho de Sanda Golopentia-Eretescu ("Grammaire de la parodie", 1969). A sua preocupação é definir a natureza e funcionamento retórico da paródia como discurso ou género literário.

b) Uma perspectiva semântico-pragmática, defendida sobretudo por Linda Hutcheon (Uma Teoria da Paródia, 1985): superadora das limitações analíticas e essencialistas, e realçando a Paródia como um meta-género privilegiado na evolução das formas, géneros literários e artísticos, esta perspectiva redefine a relação estreita que mantém com outras formas (ironia, sátira, pastiche, etc.), alarga o ethos tradicional, sem esquecer a importância da competência do leitor. Podemos dizer que foram estas duas concepções que vigoraram até à vigência do paradigma formalista-estruturalista dos estudos literários. Por si só, a teoria bakhtiniana da paródia constitui-se como uma abordagem pós-estruturalista.

c) Com efeito, em terceiro lugar, temos uma perspectiva trans-discursiva: a teoria da paródia carnavalesca proposta por M. Bakhtine (género inter ou trans-discursivo, de alcance ideológico e de natureza eminentemente dialógica, ambivalente e dinâmica). Sobretudo n conhecido estudo, intitulado A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular Europeia, Bakhtine afirma a ideia da dualidade do mundo medieval e renascentista e concebe, simbolicamente, o carnaval como um conjunto de festividades, de ritos e de formas populares medievais e renascentistas, que opõem a cultura popular ao mundo oficial. A função do carnaval, assim concebido, era operar uma inversão do mundo sério e oficial, num clima de extrema vitalidade e de transformação. Herdeira de alguns géneros pré-romanescos (sátira menipeia, simpósios grotescos ou saturnais romanas), a carnavalização é uma manifestação eminientemente festiva e popular.

Através da cultura do riso, da sátira e da paródia, em espectáculos, em ritos ou cortejos carnavalescos, desmistificam-se e desconstroem-se, festiva e grotescamente as artes ou as instituições culturais: a Literatura, os seus autores canónicos, os seus códigos e temas recorrentes (paródias literárias, orais ou escritas); a Igreja católica, suas cerimónias de culto litúrgico e seus livros sagrados (nas paródias sacras ou no riso pascal); o Estado, suas representações e actos oficiais (através intronização/destronização de figuras bufas). Deste modo, num cenário de liberdade e licença temporárias, o mundo oficial era sujeito a uma des-sacralização ou rebaixamento. A vida festiva abolia as fronteiras entre o mundo e a ideologia oficiais e a cultura popular típica da praça pública.

Contudo, para Bakhtine, este sentido popular e carnavalesco foi-se perdendo na paródia moderna. Fixado no género romanesco e nas manifestações carnavalescas da Idade Média e do Renascimento, Bakhtine não valorizou devidamente a relevância da paródia nos movimentos vanguardistas russos e europeus. Para ele, o romance representava a verdadeira vanguarda da literatura e cultura modernas. O autor chega mesmo a dizer, um tanto injustamente, que a concepção restrita da paródia moderna é de natureza apenas formal, tendo desaparecido a percepção carnavalesca do mundo que lhe era peculiar. Por conseguinte, para Bakhtine, a paródia moderna é exclusivamente demolidora, não conhecendo a ambivalência regeneradora da paródia carnavalesca medieval. É justamente neste ponto que não podemos concordar inteiramente com o pensamento do genial teorizador russo. Ninguém lhe retira, porém, o enorme mérito de ter alargado significativamente os limites estreitos em que era concebida a paródia como uma técnica estilística, quer na perspectiva retórica tradicional, quer numa abordagem textualista dos formalistas e estruturalistas.

Atentemos, de seguida, nas várias modalidades ou níveis da paródia surrealista.

2. PARÓDIA INTERTEXTUAL

Paródia intertextual é, como já deixámos sugerido, uma forma de diálogo plural e irónico entre dois ou mais textos. Esta forma de discurso literário pressupõe a relação de um texto (texto parodístico) com outro(s) texto(s) (texto parodiado), sendo a mais conhecida e estudada modalidade de paródia. De facto, a escrita surrealista alimenta-se, dum modo parasitário, polémico e conflitivo, de muitos textos/obras da tradição literária. Tomemos, como ilustrativo exemplo, a parodística admiração de Mário Cesariny por Cesário Verde, através da comparação intertextual do poema cesariano "De Tarde" e da sua contrafacção parodística, um texto ironicamente intitulado "homenagem a cesário verde", grafado com minúsculas. A uma leitura superficial, é notório o contraste: o colorido e inocência do encontro descrito por Cesário são pervertidos parodisticamente através do excesso grotesco e pantagruélico de Cesariny, numa antifrástica "homenagem" ao autor do Livro.

Assim, em Cesário, a beleza luminosa e sensual causada pela impressão de semelhante quadro, origina a vontade de o eternizar numa "aguarela". Pouco falta para este "Déjeuner sur l'herbe" resultar num poema pictórico. Em Cesariny, o que o quadro tinha de colorido e vivacidade, é acentuado pelo exagero grotesco (vejam-se as díspares referências gastronómicas); pela metamorfose do terno "burrico" convertido em "burro"; mas também pela alusão paródica ao 'topos' descritivo do pôr-do-sol e ao pretexto da deambulação:


De Tarde

 

Naquele pic-nic de burguesas,

Houve uma coisa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandeza,

Em todo o caso dava uma aguarela.

 

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

 

Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampávamos, inda o Sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.

 

Mas, todo púrpuro a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro de papoulas!

 

(Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde)

homenagem a cesário verde

 

Aos pés do burro que olhava para o mar

depois do bolo rei comeram-se sardinhas

com as sardinhas um pouco de goiabada

e depois do pudim, para um último cigarro

um feijão branco em sangue e rolas cosidas



Pouco depois cada qual procurou

com cada um o poente que convinha.

Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário

Verde

Que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!


(Cesariny, Pena Capital)


Esta reescrita paródica intertextual dos surrealistas portugueses dirigiu-se, em especial, para certos períodos e autores da literatura portuguesa. Enumeremos alguns desses alvos privilegiados:

2.1. A paródia da herança classicista, que era preciso exorcisar, sobretudo a sua tópica e temática mais cristalizadas. A literatura surrealista assume-se radicalmente como criação, e não como imitação de velhos motivos, temas ou formas. Neste contexto, carnavalizam-se certas figuras mitológicas; parodiam-se determinados autores canónicos (como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro); ridiculariza-se o recurso a certos tópicos da tradição literária; usa-se, comicamente, a língua latina nas suas expressões mais estandardizadas. Como exemplo, leia-se uma das secções do livro de Manuel de Castro, A Estrela Rutilante, intitulada "4 poemas para a destruição de um mito", onde é fácil o leitor encontrar referências parodísticas a mitos tão conhecidos como os de Orfeu ou Eurídice. Em vez de referências a animais e figuras mais ou menos fantásticas (deuses, sereias, etc.), a escrita surrealista privilegiou o uso de um bestiário bem quotidiano e disforicamente paródico: piolhos, pulgas, formigas, moscas, ratos, galinhas, cães, entre outros, como acontece exemplarmente na poesia de O'Neill. parodiam-se também autores como Bernardim Ribeiro ou Camões, além de uma tópica muito desenvolvida pela poética classicista (topoi das armas e das letras ou do tempo-que-passa). Resumidamente, a uma estética da mimesis, presa a uma concepção estática da traditio, a vanguarda surrealista preferia uma estética da renovação radical, valorizadora duma poesis original e nova.

2.2. Não podia deixar de ocorrer a paródia da literatura romântica, ou pelo menos de certa escrita dominada por um lirismo sentimentalmente excessivo, confessionalista, subjectivo. Este lirismo intimista seria mesmo responsável por uma poesia inferior, nas palavras de António Maria Lisboa: "Abaixo a poesia/ cheia de dores românticas./ Eu quero-a fria". Neste sentido também, Cesariny escreverá, na Primavera Autónoma das Estradas, que "O lirismo é epigonismo da prisão de ventre"; e, noutro texto (recolhido em As Mãos na Água, A Cabeça no Mar), fala expressamente em "enterrar os Grandes-Cabeças-Moles do romantismo por inchaço que assolapava mais ou menos melodramaticamente as literaturas". Por ex., num admirável pastiche paródico do célebre auto-retrato do Bocage pré-romântico (o soneto "Magro, de olhos azuis, carão moreno"), O'Neill escreverá também um "Auto-retrato", como vimos, ironizando o egotismo pré-romântico bocageano. Cesariny parodia o mito romântico-simbolista da Ofélia, boiando morta à flor das águas. António Pedro descontrói o tópico oitocentista da mulher-que-passa, numa ambiência fantástico-grotesca. O'Neill, referindo-se em tom derisório ao lirismo intimista e confessional, dirá que prefere a "poesia-cão" à "poesia-aflição", toda feita de "coração": "vamos dizer sem maiúsculas/ o amor a vida e a morte". O citado Cesariny, parodiando a conhecida comunhão entre a natureza e o estado de alma do poeta romântico, apresenta assim a tristeza duma manhã com toque a finados, sentida pelos poetas românticos da capital: "A manhã está triste/ que os poetas românticos de Lisboa/ morreram todos concerteza" (Nobilíssima Visão).

2.3. Destaca-se a paródia da geração de Orpheu, com destaque para a obra de Mário de Sá-Carneiro e, sobretudo, Fernando Pessoa. Os surrealistas, sobretudo Cesariny, discordavam frontalmente da excessiva vulgarização ou moda de Pessoa. Este endeusamento ou martirológio crescente ocultaria, na sombra, outros poetas não menos válidos, como Teixeira de Pascoaes. Por isso, tornava-se urgente desmi(s)-tificar e des-sacralizar a obra de Pessoa. Assim, por ex., parodia-se a teoria do fingimento racionalista pessoano – "O Poeta é um fingidor", pela boca de O'Neill: "Às dores inventadas/ Prefere as reais. Doem muito menos/ Ou então muito mais...". Parodia-se, pela mão de Cesariny, o processo de criação heteronímica: "Co'a breca da antinomia/ Em desuso há seis mil anos/ Fabriquei a cartesia/ dos heterónimos manos.// Desvestidos de seus nus,/ De pernas muito afastadas,/ Duas medidas de mus/ (Duas formas co-irmãs)/ Masturbam homens de as-/ Pecto decente nos/ Vãos de escadas". Noutro exemplo, no poema "Dores", O'Neill reinterpreta assim a teoria do fingimento racionalista expressa no conhecido texto pessoano, "Autopsicografia": "Às dores inventadas/ Prefere as reais./ Doem muito menos/ Ou então muito mais".

Nesta escrita, destacam-se as obras de Cesariny, sobretudo uma, cujo título é, por si só, uma declaração explícita das intenções parodísticas – Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos e uma outra obra mais recente, O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. 'Who Knows Enough About It' seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo Mesmo no mesmo lugar. Com 2 cartas de Raul Leal (Henoch) ao Heterónomo. Ao longo do discurso poético de Cesariny, muitas vezes em jeito de auto-caracterização deste poeta polinómico, Pessoa merece epítetos tão variados, inesperados e grotescos como: aldeão do mundo, cabalista, alquimista, paneleiro, mulher, homossexual, Onan, virgem-negra, grogue, Zen com hemorróidas, anti-génio, anti-Cristo, Super-Camões, entre outros. Noutras passagens, Cesariny destaca mesmo a pluralidade pessoana, dizendo que até ultrapassa as pessoas da Trindade: "Sentam outros que êle é dez/ mais do que a espiral Trindade/ E que no cada que fez/ É todo variedade". Já no poema "Autocrítica", O'Neill invoca o nome de Pessoa, ao nome de outros poetas que pretensamente o teriam influenciado, fazendo dele um "ser reminiscente", ao mesmo tempo que questiona determinada visão pessoana do "provincianismo português":

 

 

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

 

Já disse: sou lúcido.

Nada de estéticas com coração: sou lúcido.

Merda! Sou lúcido.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Cerca de grandes muros quem te sonhas.

(F. Pessoa)

 

Muito querido Pessoa, saberias agora

que não basta ser lúcido, merda, que não basta

a gente coser-se com as paredes

e cercar de grandes muros quem se sonha,

que não basta dizer basta de provincianos!




(A. O'Neill)


Esta escrita paródica incide também sobre a obra de Mário de Sá-Carneiro. Veja-se, por exemplo, a paródia do poema "Dispersão" e da temática da despersonalização auto-reflexiva, feita por Cesariny em "Vinte quadras para um dadá", cujos primeiros versos dizem assim: "eu estou presente/ todo eu sou sim/ e é de repente/ não dou por mim" (Pena Capital). Noutro texto, desarticula parodisticamente alguns versos do conhecido poema "Quase", interpolando des-propositados e irónicos comentários sobre a narcísica e decadente confissão do fracasso, a agonia de ser-quase: "Um pouco mais de sol – eu era brasa/ (Ainda aza que tem pouco sol em casa)/ Um pouco mais de azul – e eu era além/ (Com o azul japonez que o Sky portuguez tem)/ Para atingir, faltou-me um golpe de asa./ Se ao menos eu permanecesse àquem... (mais perto de casa)" (O Virgem Negra).

2.4. Por fim, uma palavra para a paródia da literatura neo-realista. É sabida a polémica que, nos anos do pós-guerra, envolveu a relação entre surrealistas e neo-realistas. Os primeiros discordavam da excessiva dependência ideológica dos neo-realistas face ao Partido Comunista, negando-lhes o estatuto de únicos militantes ou resistentes ao fascismo. Isto não significa que a estética surrealista, nomeadamente o surrealismo francês, não se sentisse atraído pelo engajamento político com o marxismo soviético, provocando debates e dissenções internas no grupo surrealista. Porém, demasiado comprometida politicamente, a literatura neo-realista hipervalorizava um realismo social, detendo-se numa escrita de reivindicativa e de denúncia. É à luz desta postura crítica que se podem ler algumas violentas sátiras paródicas, como o poema "Redondel do Alentejo", de Cesariny (em Primavera Autónomas das Estradas), ou versos como estes: "Vamos ver o povo / Que lindo que é/ Vamos ver o povo/ Dá cá o pé". Este tom parodístico já vinha expresso noutra obra de Cesariny, intitulada Nicolau Cansado Escritor (de Nobilíssima Visão), de meados dos anos 40, e poemas como "Rural", com evidentes referências intertextuais à ficção de Fernando Namora. A libertação da vanguarda surrealista não se confinava a uma missão social, e por isso, assumia-se como uma charge ao messianismo ideológico e ao empenhamento libertador da estética neo-realista.

3. PARÓDIA ARQUITEXTUAL

Complementarmente à extensa fortuna da paródia intertextual, a escrita dos surrealistas privilegiou também a relação carnavalizadora de género, subgéneros, processos e temas literários, aquilo a que podemos designar por paródia arquitextual; ou seja, a aproximação ou diálogo entre textos e códigos literários (conceito de arquitexto de G. Genette). No seu dinâmico esforço de renovar a escrita poética e literária, os surrealistas empreenderam uma limpeza dos clichés, das convenções, das formas e dos temas, dos códigos e dos géneros literários. Presenciamos, nesta modalidade, não a paródia de um autor ou texto concretos, mas a desconstrução parodística de uma tradição literária. Com esta intenção, a escrita surrealista investiu, entre outros, contra os seguintes alvos:

3.1. O uso de frases-feitas ou clichés linguísticos e literários, denunciando a sua excessiva trivialização ou codificação, e não hesitando em dinamitá-los. Este procedimento é muito visível, por ex., ao nível da citação parodística de certas "frases célebres" ou da escolha dos títulos. A palavra-de-ordem era provocar e fazer estalar o verniz do tradicional bom gosto e do bonito, aquilo a que Pedro Oom também chamava, jocosamente, o bucolismo de bom-tom. O propósito geral desta revolução linguístico-literária surrealista está bem sintetizado num poema de O'Neill, antifrasticamente intitulado "Bom e Expressivo", texto que começa assim: "Acaba mal o teu verso,/ mas fá-lo com um desígnio:/ é um mal que não é mal,/ é lutar contra o bonito". A escrita surrealista propõe-se desconstruir e revitalizar parodisticamente o lugar-comum, re-inventando a própria linguagem poética e radicalizando a teoria da originalidade literária até níveis quase inimagináveis.

3.2. Interligadamente, denuncia-se a imagem ou metáfora trivializada, procurando-se uma imagem nova, a metáfora viva, insólita e arbitrária. Dum modo irónico, no poema "O Lanterna Vermelha", afirma O'Neill : "Colega (passe o termo...) a sua rosa/ já se desfardou?/ Mande vir, em vez de rosas mentirosas,/ 9 tostões de pão e 3 de vinho,/ tudo muito bem desenhadinho...// Colega, passe-me o quebra-palavras:/ encontrei uma que deve ter qualquer coisa lá dentro". Noutro texto poético, afirmará que "é tempo de libertar as imagens as palavras". Através de técnicas surrealistas como a do automatismo, das enumerações ou do cadáver-esquisito, pretende-se alcançar o delírio da imaginação, a fusão dos contrários. Vejamos, por ex., a inesperada associação de imagens num poema de Cesariny, que começa assim: "É uma estrada no céu silenciosa/ um anão sem ninguém que o suspeite/ é um braço pregado a uma rosa/ um mamilo escorrendo leite"; ou uma passagem dum "jogo da definição", da Antologia do Cadáver Esquisito: "O que é a família?/ É o acto sexual praticado com um cadáver.// O que é o surrealismo?/ É a morte dos séculos projectando uma sombra muito longa na água do sonho.// O que é a loucura?/ É a base de todas as paisagens.// O que é o sonho?/ É uma chamada obscurecida pelo recalcamento do desejo". O objectivo do automatismo e das suas várias técnicas é o de provocar aproximações inesperadas, destruindo velhas metáforas e clichés.

3.3. Na mesma ofensiva, deve ser interpretada a subversão de determinados géneros literários, com realce para a paródia do paradigma do romance realista do séc. XIX. É conhecido, aliás, o feroz ataque que A. Breton dirige, no Primeiro Manifesto (1924), contra a atitude realista, recordando a célebre afirmação de Paul Valéry, segundo o qual nunca escreveria: "La marquise sortit à cinq heurs". Apologistas do Sonho, da Fantasia e do Maravilhoso, os surrealistas subverteram e desmistificaram, parodisticamente, a narrativa dominada pela ilusão realista. Proclama Cesariny, em Titânia: "Deixa o estilo realista, parte à aventura". E em Pena Capital, o poeta escreve: "Apetece contar uma história tão estranha que as pes-/ soas saiam aos tropeções de casa". Denunciaram, por isso, alguns dos códigos mais tradicionais da ficção realista, como a imposição da verosimilhança, o relevo do retrato psicológico das personagens, das descrições fúteis e convencionais, ou ainda da função moralizadora da literatura. Um dos melhores exemplos desta nova e iconoclasta concepção de narrativa surreal é a obra de António Pedro, Apenas Uma Narrativa, bem como as histórias para crianças (emancipadas) de Pedro Oom, sem esquecer o tom surrealizante d'A Torre de Barbela, de Ruben A.

3.4. Por fim, ainda dentro deste programa renovador, destaque-se a ofensiva anti-literatura. Com efeito, a escrita surrealista investiu contra determinada concepção tradicional e retórica de Literatura, proclamando a sua morte em termos derisórios e paródicos. Cesariny escreverá: "a Literatura nunca nos ocupará demasiado". Aliás, Breton já tinha declarado: "La poésie est le contraire de la littérature". Opostamente, reitera-se a crença em renovar a escrita e transformar a realidade através da Poesia. Esta dicotomia literatura/poesia, correlacionada com o contraponto entre natureza/civilização, remonta consabidamente à estética romântica, enquanto que a concepção retórica e pejorativa de literatura foi acentuada pela literatura finissecular. Tudo o que não for verdadeira Poesia, reveladora da do mundo surreal, é literatice, é "lixo literário". Numa irónica aproximação da Arte Poética de Verlaine, dirá O'Neill: "(...) O mais é literatura, /libertinura, pegas no paleio". É neste sentido que se devem entender advertências como a de António Maria Lisboa: "Não se deve confundir a Poesia com as formas diversas de expressão que toma". Ou ainda, do mesmo autor: "A Poema opõe-se-lhe a Literatura e a esta a destruição". A palavra-de-ordem era refundar a escrita literária, regressando às fontes genuínas e intocadas da Poesia.

4. PARÓDIA INTERDISCURSIVA

Por fim, a paródia também pode ter por alvo, já não directamente um texto, nem um género ou código literário, mas discursos ideológicos ou culturais dominantes em determinada sociedade. A esta forma de des-sacralização ou carnavalização, admiravelmente desenvolvida por M. Bakhtine, de discursos sócio-culturais hegemónicos chamamos paródia interdiscursiva. Neste terceiro nível, o discurso parodístico é constituído por textos iconoclastas, onde uma liberdade sem limites, desejada (utopicamente) pelos surrealistas, não podia aceitar a ditadura de certos princípios e valores, como Religião, Pátria, Autoridade, Família e Trabalho – também chamados valores de Braga, por terem sido pronunciados pelo chefe do regime, Oliveira Salazar, num discurso na cidade dos arcebispos, em 1936, no 10º aniversário da Revolução nacional. Por outras palavras, além de revolta literária e estética, o Surrealismo foi também uma revolta moral, uma força de insurreição e de violência iconoclasta contra todas as formas de opressão. Como poetas de acção e em coerência com uma filosofia revolucionária, manifestaram-se contra a ordem estabelecida. Com estas intenções, os surrealistas dirigem a sua paródia carnavalesca para alguns discursos, tais como:

4.1. A ideia de Portugal, veiculada pelo governo salazarista: lançando mão da invectiva e da sátira paródica, operaram a dissolução de um estereótipo cultural posto a circular pelo antigo regime, ou seja, uma certa ideia de Portugal, mais concretamente uma imagem mística e nacionalista de Portugal. Numa das típicas construções de pergunta-resposta usada no cadáver-esquisito, pode ler-se: "– O que é a pátria?/ – É uma coisa sem solução". Portugal é mesmo apresentado por Cesariny como "o país do cadáver esquisito". Neste intuito desmistificador, a grande e heróica Nação imperial, que se estendia do Minho a Timor, é objecto de um discurso panfletário, onde sobressaem epítetos como estes: Portugal fascista e pindérico, um verdadeiro reino da Dinamarca, país de chumbo ou país fatal; ou ainda Portugal pobrezinho ou Portugal desgraçado (Cesariny). Parodia-se o Hino Nacional, pela boca de Fernando Lemos, ou outras imagens de Portugal publicitadas pelo Estado Novo. Denuncia-se, enfim, a "pelintrice cultural" da nossa "patriazinha iletrada" (expressão de O'Neill). Em suma, como escreve numa carta Cesariny, "não se pode viver em Portugal. É feio. Em contrapartida, já cá se sabia que para morrer, devagar e depressa, não há como a nossa terra".

4.2. Parodia-se também o poder político-ideológico dos manutensores do antigo regime: "E agora o poeta começou por rir/ rir de vós ó manutensores/ da afanosa ordem capitalista" (Cesariny, Nobilíssima Visão). O Surrealismo não podia deixar de assumir, entre nós, um carácter crítico e reivindicativo de liberdades sonegadas, numa postura de resistência à ideologia dominante. Como era de esperar, não faltam sequer desconstruções paródicas dos discursos políticos do próprio chefe do governo, como parece ser o caso de uma passagem dum texto intitulado "Regressos", de Mário Henrique Leiria (em Novos Contos do Gin-Tónico): "Todos se calaram./ A voz monocórdica, cansativa e rezinguenta, afirmou, antes do seu dono entrar na sala: – Temos de nos lembrar que somos um país de gente humilde. Devemos saber que a pátria nos obriga a viver com o arado numa das mãos e a espada na outra; e com economia...". Numa alusão parodística aos célebres discursos de Salazar, são aqui motivo de derisão algumas das linhas mestras da política que norteava o regime: a apologia da humildade típica dos portugueses; a defesa entusiástica de um patriotismo de base rural e guerreira; e a reiterada afirmação de uma política economicista que primava pela contenção a todo o custo. É significativa, como corolário deste retrato do país miserável, a descrição do encontro do poeta com um afixador de cartazes políticos do "Chefe" (de Cesariny, em Nobilíssima Visão), com os dizeres – "VOTA POR SALAZAR" –, que lhe desencadeia uma reacção irreprimível: "Deito a cabeça para trás para deixar sair a gargalhada".

4.3. Parodia-se igualmente a vidinha contentinha cristalizada, por ex., ao nível do discurso proverbial: como forma breve petrificada, o provérbio tradicional é o símbolo de uma sociedade acomodada a um saber acumulado de geração em geração. Por isso, a escrita surrealista não hesitou em reescrever, parodisticamente, este discurso popular, repositório particular da doxa dominante: "Os provérbios podem ser aplicados assim como nos lembram ou ao contrário e estão sempre bem", sustenta António Pedro. Com esta intenção, é frequente depararmos, entre outras técnicas, com as seguintes: a citação literal, mas descontextualizada dos provérbios; a substituição de certas palavras alterando radicalmente o sentido ("O céu a seu dono"; "Quem se destrói não se cansa"" "Devagar se vai ao mito"); a inversão sintáctica da ordem do provérbio-matriz ("rabo escondido com o gato de fora"); amplificação e reescrita do provérbio com a adição de termos estranhos ("Debaixo da água todos os sapos são pardos"); etc. O extremo desta desconstrução podemo-la ilustrar com uma página da Antologia do Cadáver Esquisito, intitulada "Alguns Provérbios e Não", onde apenas é salvaguardada a estrutura fónica e sintáctica do provérbio tradicional: "Pão a cozer – menino a ler"; "Mulher francesa – toalha na mesa"; "Vinho no copo – bandeira no topo"; "Homem pelintra – queijadas de Sintra".

4.4. Parodia-se ainda a moralidadezinha puritana (expressão usada por Luís Pacheco), ressaltando o poder subversivo de Eros : a erotização do discurso poético é um modo de esconjurar certas proibições, tabus ou princípios ético-morais sobre sexualidade ou sobre o amor. Antagonicamente, pugnava-se por uma Moral Nova (L. Pacheco) e um Amor liberto e louco, onde a figura da Mulher escandalosamente bela (Breton) desempenha um papel fundamental. Reescrevendo, parodicamente, o conhecido poema pessoano "Vem, Noite, antiquíssima e idêntica", lemos, por ex., em Cesariny (em O Virgem Negra): "Vem, Vulva antiquíssima e idêntica,/ Vulva Rainha nascida destronada morta/ Vulva igual por dentro por dentro ao silêncio, Vulva/ Com teus pentelhos lantejoulas rápidas/ No teu Ôlho franjado de infinito". Ainda o mesmo Cesariny e de outros, no texto-manifesto d'A Afixação Proibida: "Oh! quanta poesia existe no objecto sexual que não foi, como queriam os sacerdotes, desfigurado". De Pedro Oom, em Actuação Escrita : "Nasceram/ do medo/ de dizer/ merda e/ da angústia/ de abrir/ os sexos". Mais uma vez, a intenção é chocar a velha moral burguesa, ridicularizar certas ideias de decoro e, positivamente, contribuir para a redescoberta do Corpo humano e da sua sexualidade. Escreve Luís Pacheco: "Porque NÃO VOS ESQUEÇAIS! estamos enterrados desde há perto de dois mil anos numa civilização castradora, a nossa por nosso azar, que despreza o corpo, o castiga com torpezas várias, trabalhos inúteis, o crucifica à martelada, sendo preciso, o consome estupidamente fora e abaixo das suas próprias funções e beleza – até à chegada infalível do cangalheiro".

4.5. Parodia-se, por fim, o conservadorismo cristão, os seus ritos e verdades (o mito cristão), fazendo-se a apologia de um evangelho da desordem (expressão feliz de Albert Camus), numa heterodoxia profanatória e iconoclasta. "As virtudes teologais", "Contos de um Sábado de Aleluia", "Imitação da Cruz" ou "O Pranto de Nossa Senhora" – são alguns títulos de textos surrealistas. Com este intuito, parodiam-se as orações e as ladaínhas, conhecidas passagens dos livros bíblicos, mas também as verdades ou dogmas de fé (como a santíssima trindade), as imagens dos santos e da Virgem, ou ainda as próprias cerimónias litúrgicas, como a missa. Nada parece escapar ao furor iconoclasta (profanatório e sacrílego) da escrita surrealista. Aos olhos dos surrealistas, o credo cristão é uma das ortodoxias dominantes que é necessário carnavalizar, numa espécie de apocalipse regenerador: só com a destruição e morte da "civilização actual – a civilização greco-romana e cristã", escreve Cesariny, se pode abrir caminho para o advento da aurora surrealista.

No "Comunicado pelos Surrealistas", os seus subscritores declaram definitivamente a sua posição "anti-moral (religiosa ou outra)". Numa escrita paródica que confessa, dum modo claro, a "recusa da Teologia revelada" (Cesariny) e da "civilização teocrática" (P. Oom), animada por intuitos caricaturais e dessacralizadores, os surrealistas não poupam o discurso católico e o intertexto bíblico-litúrgico: "– Quem é Deus ?/ – É um vendedor de gravatas./ – Como é a cara dele ?/ – É bicuda, com uma maçaneta na ponta" (Cesariny). Ao denunciar o homem reduzido, os surrealistas, pela boca de P. Oom, demarcam-se "dos que engolem o sexo em hóstias" e referem-se à "vida dos santos execrada na praça pública". Para o mesmo autor, "a leitura da Bíblia, todas as noites ao deitar, semelhante a um "laço de ferro", preenche de sugestões místico-eróticas". "Armou-se de um terço e de uma grossa Bíblia e desatou a disparar imprecações" – com esta insólita e paródica afirmação se encerra uma breve narrativa de Pedro Oom. Num "Comunicado dos Surrealistas Portugueses", declara-se: "Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico de subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de actuar livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, a destruição, da surrealidade".

5. CONCLUSÃO BREVE

5.1. A essência da paródia carnavalesca é preenchida por uma funcionalidade ambivalente: a escrita paródica representa afastamento irónico e contestação subversiva; mas, ao mesmo tempo, também significa regeneração construtiva e esforço de inovação. A ruptura encetada por este movimento vanguardista toma o discurso paródico (nele incluindo a técnica do humor negro) como uma das suas armas mais acutilantes e desestabilizadoras. Ao contrário do niilismo destrutivo dos dadaístas, e discordando ligeiramente do pensamento de Bakhtine em relação à paródia moderna, podemos dizer que o riso e a paródia foram armas de revolta e de provocação, mas também de mudança e de libertação. Com efeito, a paródia carnavalesca é ambivalente: à destruição iconoclasta do velho edifício das convenções ideológicas, morais, culturais, estéticas ou literárias, segue-se a construção de um mundo novo, surreal. A fogosidade destrutiva é, portanto, um dos caminhos escolhidos para a afirmação do empenhamento regenerador da poética surrealista (expressões de Herberto Helder, no texto prefacial a um livro de António José Forte, Uma Faca nos Dentes).

5.2. Como pretendemos demonstrar sumariamente, a paródia não se restringe, na escrita revolucionária e inovadora dos surrealistas portugueses a um mero jogo de palavras, a um conjunto mais ou menos vasto de reminiscências intertextuais ou mesmo arquitextuais. Assim, no final deste breve percurso, podemos também sistematizar duas perspectivas principais da Paródia, bem denotadores da complexidade da natureza e amplitude das funções do discurso parodístico, tal como foi sendo entendido ao longo da história da teoria literária:

a) Primeiro, uma concepção restrita ou minimalista, que é sustentada desde a antiga tradição retórica, mas que se prolonga até ao formalismo estruturalista contemporâneo (v.g., Gérard Genette, Palimpsestes, 1982): concebe-se a Paródia como um discurso textualista, limitado a uma técnica de citação intertextual, transcontextualizadora e irónica, não deixando de ser significativo que sejam sobretudo os tratados retóricos, e não tanto as poéticas clássicas, a discorrer sobre esta técnica de citação deformadora e depreciativa.

b) Depois, uma concepção dilatada, exposta sobretudo por M. Bakhtine, na qual se toma a Paródia como um fenómeno literário e cultural bem mais vasto, isto é, como um discurso sintomático de orientações e comportamentos histórico-culturais que transcendem uma simples prática retórico-literária e intertextual. No entanto, a amplitude da acepção bakhtiniana de Paródia não está isenta de reparos e dificuldades (tal como, aliás, a teoria ecuménica da Paródia apresentada por L. Hutcheon, embora por razões não coincidentes), sobretudo por se tornar num conceito difícil de cingir com a precisão necessária, aparecendo-nos empregado não poucas vezes dum modo plurívoco e polissémico.

Resumindo, não podendo deixar de possuir uma natureza intertextual e arquitextual (dimensão literária, intra-mural), a paródia surrealista foi eminentemente interdiscursiva e carnavalesca, na plena acepção bakhtiniana (dimensão para-literária, extra-mural). Aqui fica, portanto, o convite a uma re-leitura do surrealismo português, à luz da paródia carnavalesca e da sedutora riqueza de interpretações que ela sugere. Ler o surrealismo sem destacar a relevância ocupada pela paródia equivale, inquestionavelmente, a amputar uma das facetas mais produtivas e iconoclastas desta vanguarda lusa.

(Originalmente, este texto constituiu uma aula dada na Universidade de Mogi das Cruzes (São Paulo, Brasil), para alunos da cadeira de Literatura Portuguesa do Curso de Letras (18 de Outubro de 1997), a convite do Prof. José Maria Rodrigues Filho. Nessa altura, o autor encontrava-se a preparar o Doutoramento na área da Teoria da Literatura, tendo, para esse efeito, efectuado uma pesquisa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP), com uma Bolsa de Estudos da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), de Setembro a Dezembro de 1997.)

(Este texto resume, muito simplificadamente, algumas reflexões contidas no livro que o autor publicou sobre o assunto: Teoria da Paródia Surrealista, Braga, Ed. APPACDM, 1995, 286 págs. Por fim, informa-se ainda que este trabalho, publicado em livro, foi apresentado no âmbito da prestação pública das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica do autor (equivalência ao grau de Mestrado), na Universidade Católica Portuguesa (Braga), tendo a orientação científica do Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva.)

J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)

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