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Recensões

Da Água e da Terra de Clara Sacramento

O homem, esse sonâmbulo animal
pelos pátios da memória.

Eugénio de Andrade


A angústia do pêndulo

A sete anos do parto do novo milénio, vem-nos a nostalgia de este não ser apenas o óbito de uma era, mas também um marco que o pêndulo do ano 2000 traçará nas nossas vidas. Impossível não reflectirmos sobre nós, a memória e o amanhã, quando atravessamos o cotovelo cronológico. Talvez para trás fique o horizonte de cidades bombardeadas que o lápis de Andrade nos escreve. À frente, a necessidade e a ânsia de não adiarmos o amor para outro século.

Neste fin-de-siècle, o livro de horas de Clara Sacramento partilha da angústia de cada ilha humana. O momento de claridade,– a epifania, diria Joyce,– parece ser, cada vez mais, a crença de que o tempo é um círculo ou um ponto – a certeza de a vida ser ou inesgotável, ou apenas o infinito do instante. À boa maneira Zen.

Sirva-se, pois, Da Água e da Terra.

A Vocação do tempo

Da Água e da Terra, assim nos informa a abertura deste opus, é devotado a irmãos do tempo breve. O poema inicial / iniciático esclarece o título e baliza a existência humana entre o nascimento aquoso e o pó em pó te tornarás. Porém, a morte não é ponto final, visto que ao ocorrer numa tarde de chuva, logo de água, suscita um recomeço. Entre estes dois tempos – à fugacidade de uma semi-colcheia – todos os dias parecem pertencer não apenas a nós, mas também às palavras. Com efeito, o poema sucessor (Murmúrio) enuncia o calcorrear do Homem pelo calendário como odisseia libertadora do Verbo.

É seguidamente, em Círculo, que a definição cronológica segundo Clara Sacramento apresenta cartão de visita. Instante e infinito, passado, presente e futuro, lembram uma continuidade de ilhas que se desenham na mesma circunferência. Esta, porque matematicamente sem início preciso, é susceptível de se reduzir a um ponto. Assim sendo, todos os tempos são unos e se limitam ao instante total. E aqui poderíamos atar esta intertextualidade – acaso espontânea – ao conceito do não-tempo, na estética paulista de Fernando Pessoa. Esta noção de cronologia é retomada / retocada no texto Jamais, particularmente através na expressão futuros totais, gémea quase siamesa do verso anteriormente citado.

Na verdade, a temporalidade, é leitmotiv e palavra-espada da colectânea. Esta arquitecta-se em 21 composições: uma série de 13 poemas preambulares e outra de 19, fragmentada em três actos: O Tempo, I, II e III. A concepção cronológica é oriental. Porém, aproxima-se curiosamente da ideia de Keats, o mais autêntico dos Românticos Ingleses, que em Ode ao Outono descreve o tempo como um passeio pelo espírito, um continuum de lapsos onde a quebra final é inexistente.

A persistência da Memória

Hart Crane, poeta modernista Americano, indagava: serão teus dedos suficientemente longos para tocar as velhas teclas, simples ecos ? Terá o silêncio força que baste para regressar a música à sua fonte ?

Da Água e da Terra é pauta de passados e recordações, tema recorrente de Sacramento, hospedeira do tempo longamente guardado. É certo que tem esperança, na manga do dia seguinte, e correntemente a persegue. No entanto, muito mais subliminar e frequente é o espaço textual consignado à memória – ou à forma como num condicional pretérito se desejaria que as coisas tivessem ocorrido. A evocação de Quando, o exorcismo de O Tempo II, a insatisfação do presente em Se, a efabulação de Cidade Com Portas ou a elegia a Hiroshima são exemplos de um passado revisitado ou desejadamente transformado. E será talvez essa insatisfação com o ontem que leva C. S. ao instante, ao momento, à intersecção amalgamada de tempos.

A assinatura do crítico

Textos expressivos e sem felinas subtilezas podem ser encarados por alguns como fugazes ou pouco susceptíveis de dialogismo textual. Porém, a simpreza quase helénica restitui certa profundidade e comprometimento com uma estética humanista. Reflexões sobre a dor de viver, compassadas em ritmos cronológicos, espraiam-se às marés de ansiedades, vivências e sentires de todo e cada um de nós. O livro é ecuménico, Terenciano e muito, muito belo. Poemas como o que dá título e pretexto à colectânea, Murmúrio, A Cidade, Silêncio, O Tempo I e II, ou Hiroshima, Meu Amor, têm alma. Registos de um tempo que mede os calendários de cada céu e tece a raiz solar do coração. Valeu a pena esperar por este volume. A ler, reler e sempre uma frescura certa.

João de Mancelos

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