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Recensões

O Cavalo a Tinta-da-China de de Baptista-Bastos

O acto de ler é sempre um jogo de perguntas e réplicas. De cada vez que me é proposto discorrer sobre um romance, uma mesma questão se me coloca: onde o fio de Ariana que conduz ao umbigo da obra? O problema reside na imensa pluralidade de caminhos oferecidos pelo texto literário. Já que raras vezes o sentido nos vem comer à mão, torna-se necessária uma busca atenta e paciente, página a página. Os erros são inevitáveis: ocasionalmente, uma pista parece conduzir à Índia – e leva-nos à América; outras, a história emerge tão carregada de significações que exige uma maior elasticidade e inteligência do leitor.

A dificuldade da exegese aumenta quando se trata de uma obra reflexiva como esta. O Cavalo a Tinta da China não é um romance onde o leitor comum, estatístico, possa chapinhar. Exige braçadas fortes e um conhecimento dos seus baixios e recifes, na travessia de capa a capa. Este mesmo desafio é exposto, na voz da personagem Reinaldo Ferreira: «Não escrevo para leitores-rãs, os que atravessam os livros sem engolir uma gota de água. Não convido os leitores a seguir-me. Desafio-os a entrar nos meus livros, nas minhas peças, a vestir a pele das personagens e, até, a reagir contra elas, a inverter os seus destinos.» (pág. 17).

Nas suas traves-mestras, O Cavalo a Tinta-da-China é um livro sobre os livros, ou por outras palavras, uma obra que analisa o ofício e o «processus» da escrita, nas suas vertentes ficcional, jornalística ou retórica. Logo à partida, as personagens principais estão ligadas às letras: o protagonista, Francisco José Conde, trabalha como revisor no jornal monárquico e católico A Voz e escreve pequenas novelas policiais; o deutragonista, seu filho Manuel, herdou do pai o gosto e os papéis e tenta completar uma obra sobre Salazar, a partir de notas deixadas em linguados; por sua vez, Salazar redige discursos, meditações e panegíricos.

Porém, as referências ao universo das letras não se quedam por aqui. Muitas são as páginas que invocam e evocam uma constelação de prosadores, poetas ou jornalistas, da portugalidade ou do estrangeiro, em amálgama: Augusto de Castro, Júlio Dantas, Fernando Pessoa, o Repórter X, Émile Zola, Léo Ferré, Vinicius de Moraes, Miguel Cervantes, Unamuno, André Malraux, P.e António Vieira, Eugénio de Andrade, Alexandre O'Neill, Henry James, Artur Portela, Manuel da Fonseca, e um dos autores que Baptista-Bastos mais admira: Aquilino Ribeiro.

Ao redor do texto, B-B convida todos estes escritores. A vários deles pede emprestadas ideias ou versos, que contesta, absolve ou reafirma. Estas ligações cruzadas, parte da intertextualidade, são apeadeiros obrigatórios de um autor que parte em busca do mistério da escrita, colhendo testemunhos alheios e relembrando experiências próprias. E nem de outra forma poderia ser, pois, tal como afirmava Wallace Stevens: «Nada existe por si próprio». Nesta linha, a obra de um criador é apenas uma peça do mosaico de influências que o precede – e será sempre somente um sedimento no «corpus» textual que irá motivar as gerações futuras.

O Cavalo a Tinta-da-China alicerça-se numa série de princípios da teoria da literatura, focando sobretudo dois aspectos: por um lado, o relacionamento entre texto e intertexto (como se dilucidei no parágrafo anterior); por outro, o tema da ficcionalidade. A propósito deste último, a «medias res» da minha leitura, deparei com esta cena: duas personagens – Francisco José e Reinaldo Ferreira – discorrem sobre letras. Este aconselha: «– Inventa tudo. Devemos inventar tudo porque a realidade é uma coisa que não existe. O que existe é a realidade da nossa imaginação» (pág. 20). Tomei nota à margem, e veio-me à ideia um verso do poeta estadunidense T. S. Eliot: «o ser humano não pode suportar muita realidade». De facto, muito do prazer de ler reside em entrar no jogo do fingimento, em sermos Alice do outro lado do espelho, em revermo-nos na fantasia. Também B-B usa O Cavalo a Tinta-da-China como um móbil imaginário – um livro sobre Salazar, semi-biográfico, semi-ficcional, uma obra que nunca chega ao término e cuja autoria três escritores disputam: Francisco José Conde, seu filho Manuel e o próprio narrador. A confirmar a vertente fantasiosa do romance, o narrador indaga-se: «A quem vou atribuir esta confissão?, a Francisco José ou a Manuel? São frases que não foram escritas, num lugar que não existe, numa época que não aconteceu.» (pág. 184)

No entanto, nem só de imaginação vivem as letras. O meu ex-professor, Hélder de Macedo, dizia que «a literatura se faz de verdades e mentiras». E esta é outra das pontas por onde se pode começar a desenhar O Cavalo a Tinta-da-China, já que perpassa por todo o romance uma promiscuidade entre facto e ficção. B-B tira naturais dividendos do seu saber quer como jornalista, quer como escritor e afirma: «escrevo um livro de asserções fingidas, sem (...) atenuar as diferenças de regime narrativo entre a ficção pura e a História». (pág. 121)

Neste romance, todos parecem escrever acerca de todos. Francisco José redige algumas linhas íntimas sobre Assis Pacheco que escreve sobre Francisco José para informação a Salazar; por sua vez, este é descrito por Manuel na sua biografia. Como as conhecidas bonecas tradicionais russas, uma personagem engloba outra, que por seu turno contém já uma anterior. Assim, Manuel Conde deduz que este livro é «Uma história de solidão dividida em outras solidões.» (pág. 143). E não será o narrador uma dessa solidões partilhadas, um duplo de B-B? Muito do interesse de O Cavalo a Tinta-da-China passa por esta intromissão, às vezes quase «ex-machina», do autor no narrador e do narrador nas figuras: B-B interpela as suas personagens sobre o significado das letras, senta-se com elas a uma mesa de café, rivaliza pela atenção do leitor. Assim, o estilo resulta do paralelismo entre verdade e engano e das continuações de tempos e contextos – a recordar a escrita automática de Virginia Woolf e a mostrar que as linhas que nos dividem são também as que nos unem. No fim de contas, as últimas páginas insinuam que todos poderíamos ser o outro: B-B, Francisco José; Francisco José, Salazar; Salazar, o leitor. Quem é quem, quando se ficcionaliza? Existe um prolongamento do real nas credíveis vidas de papel: escrevemos sobre os outros para através deles nos conhecermos.

Voltada a contracapa, conclui-se que O Cavalo a Tinta-da-China é uma prosa belíssima e profunda, um exercício de estilo sobre um escritor de três faces que ergue e destrói e reconstrói o templo da memória, vivendo dos reais mitos que gera. Porém, quanto ao tema, uma dúvida continuará a desafiar o leitor: Baptista-Bastos escreveu sobre Salazar ou acerca de si mesmo? Dilucidou acerca do poder ou sobre o poder e limites da escrita? Novamente, a relatividade da literatura – pela qual as faces se tornam arestas, e o lado oposto, adjacência. Posições no espaço? Posições na escrita? O leitor é o eleitor: a ele, sempre, a palavra última.

(Resumo do texto da apresentação da obra, lido na sessão de autógrafos realizada a 31 de Maio de 1996, na Biblioteca Municipal de Aveiro.)

João de Mancelos

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