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Recensões

Cidade Salgada de Vasco Branco

Konige der Endlichkeit, erwacht!
(Em pé, reis da Finitude!)


Holderlin

Hora zero. Página um.

A obra abre-se com uma qualquer madrugada – símbolo do parto do dia e nascediço eclodir de uma estória; instante, também, para Vasco Branco reflectir quer sobre si, quer acerca do alvor da Humanidade – ontogénese e filogénese:

Nascemos como Fénix, não das próprias cinzas, mas das cinzas de uma qualquer estrela abandonada no espaço-tempo ocasional (pág. 9).

E que seríamos, afinal, se não fossemos, no mais fundo, matéria solar e irmã ? Elos de hélio, predadores cognoscentes, demarcadores de espaços – ecce homo, o tal animal aflito, que Gedeão se recusa definir. Apenas apartados pelas culturas, a herança racial, o momento na História, os genes – dir-se-ia. Porém, o que nos afasta é também o que nos une. As fronteiras separam e juntam, e como as linhas, não têm sequer dimensão, tanta é a sua dieta aritmética.

Vasco Branco convoca, nas linhas primeiras de A Cidade Salgada, o Homem Universal. E dentre este escolhe um indivíduo – ele próprio – num tempo de desencontros marcados, – o tal Tempo Dividido, que Sophia denuncia.

Descendo assim dos primórdios da Humanidade, passa a focar as primícias da sua vida, entre as lamelas de um inocente não saber, e as exigências sociais de um fim de Império:

Criança, menino, adolescente, rapaz, fases da mesma lua tresmalhada, caprichosa e amante incomparável (pág. 9).

Alguns parágrafos fortemente imagísticos e sinestésicos, onde a percepção da água e da claridade predominam, predispõem narrador e destinatário a um ambiente de memória. Existimos pré-natalmente num meio líquido, e a associação passado-água é rosto comum a mais do que um poeta. Hart Crane, a exemplo, fala-nos do quanto espaço que há para a memória, na liga solta da suave chuva. Vasco Branco, por seu turno, refere:

(as) águas salgadas e quietas da minha adolescência (pág. 10)

Receptáculo de emoções bebidas através de mil mãos frescas roçando-me a pele hipersensível. A água é mulher, não pode ser senão mulher (pág. 16).

E a juventude toma lugar, naturalmente, numa época ainda embrionária e de hesitação:

Temos água, mas sem vento (pág. 10).

A lembrança que Vasco Branco nos propõe em A Cidade Salgada é grata e reconfortante, mão sobre a úlcera do presente:

Enoja-me, pronto. Por isso vou quedar-me, tanto quanto possa, em momentos idos (pág. 19).

Refúgio de ironia, o meu abre-ontens (pág. 19).

Indícios a preambularem páginas saudosas de memórias mestiças de ficções. Dizia-me o meu mestre no King´s College, Helder de Macedo – A Literatura é isto – verdades e mentiras. E para tal nos adverte, também, o Autor:

A contingência e o sonho vivem de mãos dadas em certos períodos da nossa vida Aqui estou eu a evocá-las, com todo o carinho que me resta (pág. 10).

E Vasco Branco, -narrador e máscara de personagem– simboliza o percurso entre adolescência e adultícia, o ritual de passagem, através uma viagem nos canais da ria Aveirense. Largada a calmaria dos anos primeiros, aproxima-se do delta, imagem de menino a desembocar na vida, – qual Tom Swayer, quando argumentava, unhas e dentes na púbere liberdade: Não há lar como uma jangada.

Mas não se vislumbra em A Cidade Salgada, recusa alguma em crescer. Antes uma homérica e travessa sofreguidão, o desejo de tomar o pequeno-almoço em Utopia:

Somos navegadores em mar desconhecido e remoto, somos marinheiros em demanda de ilhas ideais, somos piratas de sabres trilhados em dentes ainda de leite (pág. 11).

Que o édenico, pré-lapsariano deslumbramento das primeiras memórias convocadas não engane o leitor. De facto, a necessidade de regressar a uma pueril inocência, não é incompatível com o relato das primeiras feridas, ardendo ao sal de um certa era. A mais magoada e persistente é a da irremediabilidade, do retorno impossível a esse tempo passado:

(...) o meu rio interior. Curso sem foz, doloroso por irremediável (pág. 26).

O irremediável labirinto da Saudade lusitana. E porém, Vasco Branco não carpe o ontem por inteiro, nem aceitaria bilhete na máquina do tempo de Wells. Ele sabe das desventuras e agruras, da sombra que o illo tempore projecta na sua contemporaneidade. Passageiro através das páginas, leva na mala um corpo e mente moldados pela Cidade, geração, família e tirânico regime político:

As margens ainda sujas de incomodidade. Nem sei se alguma vez o tal rio as conseguirá lavar completamente. O rasto dos acontecimentos deixa impressões indeléveis que se descobrem, para nosso espanto, quando menos o suporíamos provável (pág. 32).

Num estilo pouco uniforme, mas normalmente adequado e próximo a um existencialismo menos pesado, Vasco Branco percorre os dramas da Nação e as íntimas pisaduras da mó da vida; a geografia memorável de uma cidade anterior: o Largo do Adro, o Rossio, a Feira de Março, o Cojo, a Fonte Nova; As gentes: a mãe prudente e preocupada, o pai humilde, a avó financiadora, o Jorge da Sacristia, o Capitão, o Paxá, o Finuras, o Padre Pedro, o Manuel da Cerca, e mais politicamente, o Mário... Uma galeria de retratos pessoais, num tempo de pureza repartida, o miolo da ternura, elemental – os valores eufóricos da ética literária de V.B.:

Que tempo! E que sobriedade tocando as raias de um desconforto primitivo. Mas, em compensação, um calor de mãos estendidas, apertadas com claríssima franqueza (pág. 39).

Estamos no tempo da linha firme e sincera (pág. 14).

É curiosa, mas com precedentes, a evocação da sobriedade do ontem. Lembro-me de ter descoberto, há anos, numa libraria londrina, uma tradução em saldo de Clarisse Lispector, A Hora da Estrela – espécie de bildungsroman que logo no prólogo adiantava:

Dedico esta memória aos meus anos de dureza, quando tudo era mais austero e honorável.

Ou talvez que este carinhoso afago e apego aos inícios seja da tradição mediterrânica, venerável ao antigo, que em Sophia também se expõe.

Mas, afinal, tratando-se de memórias, o livro de Horas de B.V., a que praias da lembrança ruma a proa do autor?

Em primeiro lugar, aos factos simples da existência: as amizades feitas em lutas políticas; a recordação das flechas de Eros, num mundo Orwelliano de prazeres proibidos, representados pela criadita, as fotos impudicas e os olhares naturalmente gulosos; as traquinices que arruinam o fato domingueiro; o face a face com a primeira morte – a da mãe;

Em segundo, à dor de crescer entre muros e cercos:

Escolas, Liceus, universidades, revolução verde sem o benefício de qualquer expansionismo vegetal. Militarizados. Verborreia patrioteira esbanjada por toda aquela mocidade que não percebia o surto massivo tendente à lavagem cerebral através da palavra inflamada e apelos a exemplos vindos da história (...) (pp. 84-85).

Em terceiro, a Cidade. A temática da metrópole chega à poesia no século XIX. Numa acepção indecisa entre romantismo e modernismo, Walt Whitman descreve a cidade pura, inocente e selvagem, assistindo ao crescimento de Nova Iorque, simbolo-mito da Nação Americana. Elliot e Hart Crane redimem o burgo, mas sem se inibirem de anotar e pressagiar os defeitos sufocantes das grandes urbes. Vasco Branco, como autor dos nossos dias, descobre-as no espírito e liga-as ao espaço sagrado da infância, mais do que à já apontada toponímia ou aos seus habitantes:

Quando as cidades se construiram à medida do homem e não da sua circulação rodoviária, como hoje, eu fui menino (pág. 35).

Aliás, a área urbana é rara, e preterida à aquática, ao delta, à natural. Talvez como Serge Moscovici, quando diz:

Tudo nos incita a pôr termo à visão de uma natureza não humana e de um homem não natural.

A paixão pela Cidade é indecifrável e confunde-se com o percurso de outros lugares, a que a vida fez dar à costa Vasco Branco. A ria de Aveiro miscigena-se com o rio interior. As águas externas desembocam nas internas, confundíveis, difíceis de discernir. O flúvio do primeiro capítulo não é o mesmo do último, nem tampouco as margens que o enformam.

Caronte está ainda longe, mas Vasco Branco parece ter já depositado o óbulo. Repouso do guerreiro ? Ou talvez não. Apenas um acerto de contas com o passado, ao virar de cada página. A calhar, aquele símbólico filho da mulher do capítulo 14, que jamais chega a nascer, símbolo da esterilidade anunciada de um certo tempo. A utopia prometeu-se, mas não resultou no fruto desejado:

Todos os dias queimo incenso a ídolos em que já não acredito (pág. 48).

Poderia emparceirar com Campos – e Pessoa espreita tanto nas páginas de A Cidade Salgada – quando aquele diz:

O que há em mim é sobretudo cansaço.

E o desfecho da obra ocorre em pranto – de novo a água, salgada, – a das lágrimas:

E então chorei. Chorei quando finalmente aconteceu (pág. 178).

Um pouco como o final desabafo no epílogo da Vigésima Quinta Hora. Mas um final já anunciado nas citações com que V. B. parturia o seu romance.

É ofício árduo, mas Vasco Branco consegue manter a sua busca da dignidade nesta Aveiro-Babilónia, onde a Literatura se vende e elege; onde os críticos são de geração espontânea, prescindindo de graus e títulos – porque os não têm – confiantes no autismo do seu self-knowledge; onde os gliterati são travestidos de literati; – terra, enfim, de literadinhos e literadoutos, como no poema do Mourão-Ferreira.

Apetece-me dizer, ao jeito de Torga: E eu tantas vezes...

Não reivindico para mim, essa dignidade. Mas ao menos que eles o reconhecessem, Vasco Branco, a si e à sua obra. E que os necrófagos buscassem, por uma vez, o exemplo entre os vivos – e não nos autores mortos, a quem tantos, em Alavário, se encostam.

João de Mancelos

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