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Recensões

Do Natal – Dez Histórias Impopulares
de Vasco Branco

Não desceram pela chaminé, não chegaram em Dezembro, nem vinham vestidos de vermelho – um deles era até branco, Vasco. Porém, deixaram no sapatinho a solidariedade entre criadores – textos de Vasco Branco, ícones do mestre Resende – para com as crianças vítimas da peste do século.

Uma dezena de contos ilustrados foi o pretexto para este antecipado abraço natalício, no término de Junho – a provar que a cooperação não espera pela neve quando a urgência suplanta a pontualidade. No ar quente ficou a promessa de, no Inverno, regressarem, com uma edição de luxo.

Não posso deixar de, ao pensar no Natal, evocar imagens da Nova Inglaterra, debaixo de três pés bem medidos de neve, as cúpulas cinzentas dos arranha-céus, os automóveis efervescentemente apressados no alcatrão sujo, a voz morna de Sinatra no Radio City Music Hall, entoando o White Christmas ou um Stille Nacht mais ecuménico que germânico.

A culpa deve ser do Jerome Salinger ou da Sylvia Plath, hóspedes destas minhas deambulatórias fantasias de papel, escritores que desde cedo me encheram os olhos de metrópoles nevadas e me apresentaram o fim de ano como era de promessas espirituais renovadas. Ou, a calhar, daquelas películas a preto e branco, made in America, as bobinas rolando, com um ruído de estática ou chuva, e aroma a lareiras hibernais.

Desde miúdo sempre achei profundamente injusto que os Antípodas, os tais homenzinhos que mercê da força gravitacional e da maçã de Newton, caminham de cabeça para baixo, sem caírem num qualquer vazio limbático, não tivessem neve, trenós ou meias de lã onde armazenar os embrulhos do mistério.

E porém, pouco há de azevinho nestas estórias que V. B. nos oferece ao pensamento. Ou não se apelidassem elas de impopulares.

O conto moderno, de Chekhov a Maupassant, Katherine Mansfield a Joyce, Virginia Woolf a Luís Borges é um fenómeno internacional e essencialmente recente, com raízes na oralidade. Ainda hoje, em zonas do Portugal profundo, além-Marão ou interiores, no oeste da Irlanda Gaélica, na Índia ou na África tribal, as narrativas de pequena extensão são tão usuais quanto as urbanas anedotas (termo que vem do grego anecdota – coisa não publicada). Nos nossos dias, e apesar de alguma tendência regressiva, a estória – perdoem-me o brasileirismo – já não lida com o invulgar ou o inverosímil. O método de Scheherazade, que nas Mil e Uma Noites entretinha o sultão com contos do inusitado, cedeu lugar a uma literatura em que se preza mais a retórica, o incidente, a sageza do narrador e a capacidade interpretativa de quem lê.

Ora, também os contos de Vasco Branco se centram em comuns momentos de carácter episódico da existência mundana, incidentes possíveis, reduzidos, ocasionalmente, à fragmentaridade. As raízes desta escolha poderão estar no olhar cinemático de V. B., que imagina e descreve acções como cenas teatrais ou simples takes. Que poderá haver de mais breve que um diálogo entre vagabundos apátridas, os sem-abrigo, com que se abre a colectânea ? Ou o roteiro dramático e efémero de O Trapezista, ao longo de um dia Joyciano?

A intemporalidade possível marca também esta produção. Recuperamos de À Procura de um Homem, estas linhas:

Que ano? Interessa?Talvez se vivesse o ano trezentos e cinquenta antes da nossa era. (...) Quantos anos, os do seu arrasto penoso e inglório ? Perdera-lhe a conta. (p. 51)

A aspacialidade, está presente, também, no conto de partida, ou em A Espera. E de onde serão os vagabundos cosmopolitas de Pai Natal, geminados na sua miséria com as personagens de O Milagre? Poderá ser característico de algum país o duelo de silêncio travado entre os cônjuges de Perdido?

Nesta acepção, demanda-se um distanciamento das coordenadas cronológicas e físicas. À maneira de uma mancheia dos Contos Exemplares, de Sophia, ou de certas estórias da fase mais existencialista de Urbano Tavares Rodrigues. Esta demarcação, a roçar o Brechtiano, pode sugerir uma visão global do humano, ligado por mais laços que muros. O que de comum, e de indígeno temos, o que ultrapassa a pigmentação da epiderme, o linguajar, o status ou a ideologia é o sermos humanos, constituídos de idêntica matéria cósmica, problemas e afinidades. Uma perspectiva fraternal de que, desde as primeiras lombadas, o nosso V. B. não prescinde. A identificação do espaço só nos é consentida quando se trata de contrastar o primitivismo da existência de certas pessoas com os avanços da era cibernética:

Ossos que atravessam a pele e são outros tantos dedos apontando a nossa indiferença. E isto em toda a parte e neste nosso mundo de hoje. Mundo de foguetões, de submarinos atómicos, de mísseis de toda a ordem, das viagens interplanetárias, dos supermercados mamute (p. 16).

Tal artifício (palavra latina que significa fazer arte) veste os episódios de uma poesia intrínseca aos enredos das estórias tradicionais: um príncipe qualquer, uma donzela sem nome, um cavaleiro pária, uma bruxa sem identidade... A esta galeria opta o autor por ajuntar os vagabundos (in)característicos, o casal comum, o menino vulgar, o artista diletante e anónimo, etc. A atitude corresponde a um compromisso, a um acto engagé, quase casamenteiro, com o Homem do quotidiano. Daí tratar-se de uma escrita de intervenção pela denúncia – outro resquício que V. B., gratamente, nos trouxe do existencialismo.

A diferença acontece quando o narrador, ao invés de nos oferecer relatos neutros ou plurissignificativos, páginas abertas às interpretações do leitor, opta por apresentar considerações morais ou filosóficas de sua lavra, ao jeito de comentários aos incidentes, ou proverbiais ilações. Por vezes estas reflexões autorais (e não autoriais) alongam-se à totalidade do texto – conferir o desfecho, significativamente intitulado Natal!, ou o anti– -panegírico da heroicidade que é feito no conto Queria Que Deixasses no Sapatinho, de que aqui se apresenta mostra:

(...) eu, Pai Natal, queria que deixasses no meu sapatinho (estamos tão carecidos disso...), no calçado de todos os portugueses que ainda fingem acreditar em ti, não mais heróis do mar, não mais brinquedos electrónicos, não mais livros de poetas de esperança, mas apenas e só, um simples (e nem que seja pequeno) atado de autênticos heróis da terra (p. 22).

É feito o apanágio da mencionada gente comum, que (sobre)vive na partilha do pão amargo, por paradoxo com o materialismo; as palavras de intervenção por contraste com a escrita de passivo deleite. A heroicidade das vítimas, ou o rever do herói picaresco, numa mesa redonda com o mito português, um monólogo com Camões, Dom (ou será São?) Sebastião e Pessoa, a lembrar que se cumpriu o mar, mas falta justiçar a terra.

Mais do que, aparentemente, dez réis de idiosincrasias moralizadoras, V. B. parece querer dizer que a) nada do que é humano me é alheio (Terêncio) b) a literatura deve ser protagonista na denúncia – ou, como salienta a epígrafe da obra – ao fim e ao cabo, o silêncio é uma forma de demissão (Roland Barthes). Vejo, aliás, curiosa a referência a Barthes, já que V. B. parece contrariar a teoria da morte do Autor (termo resultante do latim originador, gerador), tão necrofagamente defendida por aquele, por Foucault e por outros adeptos do New Critiscism. É que, nunca em nenhuma outra literatura está o autor tão mais visível que na de intervenção.

A componente didáctica e o aflorar de um público mais jovem que urge educar levaram, talvez, Vasco Branco a ser mais explícito e comentativo do que os teóricos das Letras apreciariam. Aqui, a um tempo, se enquadra e intromete na tradição literária lusitana mais recente. Sophia propagava: Que outra coisa poderá crescer no tempo senão a justiça? Gedeão pontificava: Abaixo o mistério da poesia. Jorge de Sena, hoje dolorosamente, lá no seu chão da Califórnia, tão esquecido, defendia raivosamente:

Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer uma delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.

Palavras que lhe poderiam ser dedicadas, V. B..

Numa Aveiro onde tantos autores escrevem para conseguir promoção pessoal ou status; em tortuosos carreirismos; em promessas de mediocridade; em atitudes de fulgurante e desonesto gliteratti, onde a palavra falsamente pedagógica mais não esconde que, afinal, a hipocrisia; em poetinhas e poetisazinhas de bibelot, a impingirem-nos os seus inócuos hai-kai, estilo Centro Comercial Oita ou qualquer outra nipónica geminação; entre tantos casos de nanismo, houve, ao menos, um parto excepcional e verdadeiro: Vasco Branco soube miscigenar ética e estética. Do Natal – Dez Histórias Impopulares não será o seu livro mais conseguido, nem o que mais me agrada, mas permanece como uma voz sincera. Sinceramente sincera.

João de Mancelos

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