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Recensões

Tchim, a Droga e o Benjamim
de Graça Gonçalves

Raras vezes se adivinha aonde aportará a jangada de Graça Gonçalves: que histórias leva de abarrotar nos baús ? A que ninfas decide dar boleia ? Mesmo a praia de destino é incerta – público crescido, ou gente miúda, senão ambos, lerão livros curtos e simples, porém, férteis de mensagens tocantes. Tchim, o Benjamim, a Inês, o João e a Sofia já por aí andam, neste lançamento da Bertrand Editora.

Um livro veste-se pela capa: Tchim, a Droga e o Benjamim, título directo a um problema emaranhado. Tchim é o herói da série, agora na ponte para a Adolescência, num opus para um público-alvo de idade superior ao dos outros da colecção. Benjamim é o protagonista, na teia da tóxico-dependência. A ilustrar a capa, um pôr-nascer-de-sol e quase a jeito de silhueta, dois jovens esboçados a água e espuma. Pressente-se a mutação: é o dia que nasce ou finda, na imagem ? Serão eles só crianças, ou apenas homens ? Seres distintos ou propositadamente esbatidos, num tecido de entusiasmos e inseguranças, confusões e riscos ? Gente com nome próprio ou figuras-tipo de pele pronta a vestir por qualquer leitor ?

Ficámos curiosos, saltámos as folhas pré-livro, notámos a dedicatória da autora à sua filha. Compreendemos, portanto, ser o destino do livro um tempo presente, agudo e contemporâneo de um questão passível de interessar a todo e qualquer um: a droga, um falso ombro a quem se encostar, uma doença oportunista da dor, do desengano, do crescimento. Percebemos: Graça Gonçalves iria fazer uma pega de caras e manipular uma temática instável, sem moralidades bafientas.

Página 7: a abertura rabiscava já o estilo. uma certa prosa poética de rima semi-velada, a pontuar aqui e além. Linguagem acessível e despretensiosa. A galeria de actantes é pequena e íntima: Benjamim e Sofia; Inês e Tchim. Laços grandes entre gente a crescer. O verbo primordial é, claro, gostar. O pretérito imperfeito é o tempo que o lápis de G. G. escolheu para ditar a história. E bem o fez. Dá-nos a ideia de memória, abraçamos o conto, como se página de nosso diário fosse. As crianças poderão enlaçar o texto num combóio de fábulas e relatos antigos-presentes.

Cenário: o verão, longo e marítimo, evocativo da travessia de uma adolescência e berço para o renascer. Uma estação de «conversa de palavra e olhares». Ou, como um proverbial pescador cita na história: «É a flor da idade».

O drama: desdobra-se para o universo do Benjamim, primo de um Tchim algo sentado na segunda fila do enredo, junto ao leitor.

Problemas: os indígenas e universais de uma idade de transição: a incerteza da paixão «assim assim»; o jogo de gostar; as brigas familiares; uma sossegada nostalgia de fim de tarde. As carências e as presenças que folhearíamos em Anne Frank, Adrian Mole, Pedro Hipocondríaco. A comichão de estarmos na pele de nós mesmos, e não nos entendermos.

E neste armário de sentimentos contrários, de semáforo de três cores em simultâneo, tentou o Benjamim a evasão. Huck Finn murmurava: «Não há lar como uma jangada», enquanto descia o Mississipi, rumo a Oeste, em busca de si. Holden Caulfield no livro de Salinger, demandava a seara para se purificar do mundo da adultícia. Mas estes são os anos noventa: às vezes o beijo de uma agulha ou de um cigarro parece abraçar mais que uma palavra amiga. Benjamim escolheu a droga, algo contrafeito – na necessidade de agradar ao amigo João, na força de ser difícil negar certas ofertas. Que, às vezes, mais não ascendem que a cavalos de Tróia.

Poderia ter sido o cântico da descoberta, a sofreguidão do experimentar ou finalmente a urgência de enxotar certos problemas. Graça Gonçalves lega-nos, na atitude do protagonista, margem para um naco de tudo.

Na velocidade da droga viaja um leque de dores de cabeça. Poderá ser a alienação de Benjamim, que cerra portas sobre si e se rodeia de muros, para enfrentar cercos. A rejeição da amizade. A incrédula surpresa de um Tchim que já não identifica o amigo, e outros problemas a bolorarem costumeiramente no quotidiano dos tóxico-dependentes. As flores do mal, no Jardim das Maravilhas ? Afinal, aquele jogo de gostar estragava o jogo de gostar, e a droga era agora palavra vestida de recaída – a maneira de Graça Gonçalves enunciar a perigosidade e a teimosia da dependência.

Tchim, a Droga e o Benjamim é uma escrita de paixão lúcida. Mais do que revisitar Christiane F. na versão para mais novos, constitui-se como um apelo. E um aviso à Esperança.

João de Mancelos

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