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Recensões

Variações sobre o Tema de Síbaris de Ribeiro Ferreira

«Inventou a palavra, o pensamento e os princípios
que presidem às cidades»

Sófocles, Antígona

«Com os mais vis companheiros,
percorri as ruas da Babilónia»

Agostinho, Confissões, II, 3

Agora que o segundo milénio fenece, assistimos a dois fenómenos sociológicos tão paradoxais quanto interligados. A um lado, as crescentes solicitações de um planeta urbano e dinâmico, susceptível de exaurir as energias do indivíduo e de sectar a sua harmonia, aquilo a que os nipónicos chamam de «wa». Noutra riba, assiste-se ao ensimesmamento, à alienação, à hipertrofia do indivíduo. O choque científico e cultural que Alvin Toffler designou de Terceira Vaga, a extinção célere de valores, as desconfortáveis lacunas afectivas expõem o ser humano à erosão do tempo-destruidor. Incapaz de se adaptar, o bípede acoita-se na loucura – o «Sapiens Demens» da pós-modernidade. Ou refugia-se no antigo, santuário onde a tradição, a ideia de autenticidade e sabedoria se mesclam. O conhecido e o imutável procriam segurança. Significativamente, Milan Kundhera intitulou uma das suas lombadas de O Livro do Riso e do Esquecimento, alusão, por sinédoque, à insanidade e ao passado.

O espaço hodierno dos conflictos e desencontros é a cidade. A poetisa Sophia Andresen expõe-na, «paucis verbis», nestes versos:

«Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta»

A ideia de metrópole foi o cabo extremo e último do romantismo a penetrar na estética modernista. Reciclou-se com Crane, Rimbaud e Campos, volvendo-se na «mise-en-scène» do homem novo, espaço apropriado para sugerir a devastação e a angústia, fervilhante de descompassada ruína ou criatividade enérgica.

Não pasma que neste fim de século a cidade volte às temáticas ficcionais, palco para reflexão do homem no «habitat», cimentada floresta de enganos, o paraíso artificial que Jorge de Sena poeta, no seu estilo luso-americano com saibre a Califórnia.

O «animal scriptionis» revela a falha que aparta material e ideal, e toma natural afeição e partido pelas coisas do espírito, ainda que com coturnos no mundano. A regra, enfim, das produções «engagées», interventivas. No âmbito desta polaridade, a cidade que Ribeiro Ferreira ora nos folheia tem tanto de polis harmoniosa quanto de contemporâneo caos.

O seu poemário dá pelo título de Variações sobre o tema de Síbaris e dele se depreendem algumas pistas:

a) É a cidade o tema, pois que Síbaris era um extenso povoado grego do sul de Itália, fundado em 720 a.C..

b) A metrópole emerge plurifacetada. Variações sugere tanto o labor poético em gravitação sobre um assunto – o «omphalos» do livro -, como diversidade, pesquisa das antíteses e mutações da cidade.

c) Síbaris é em si mesmo um espaço de contradições, lança helénica na península itálica; oriente no ocidente; casamento cultural; miscigenação de costumes. Aspectos em comum às grandes metrópoles do século XX. Vivi em Londres durante cerca de meio ano. Por vezes, ao longo de infindáveis passeios era-me relativamente fácil saber onde me encontrava, através dos anúncios das lojas – a comunidade grega, a lusíada, a indiana era identificáveis pelos seus habitantes, linguajares e geral «modus vivendi»... Nos Estados Unidos, julgo dar-se caso semelhante – pois que o «melting pot» não foi assim tão remexido que as zonas éticas e culturais se tenham dissolvido em harmónica mistura.

d) Por ser opulenta, Síbaris foi parto de outras cidades e colónias, de que se destacaram Paestum. «Mutatias mutandis», tal é o caso dos modernos povoados, em torno dos quais se formam satélites-dormitório, cinturas industriais, áreas suburbanas, etc. Dizia um jornalista francês «un jour nous serons tous de banlieusards».

A «polis» grega – imbuída de espiritualidade e idealização, corrompeu-se em terras itálicas. Síbaris era luxuosa e talvez por desagrado aos deuses foi por diversas vezes destruída. Um casamento fracassado entre Helena e Fausto.

e) Tal como Santo Agostinho, Ribeiro Ferreira, ou o seu ectoplasmático eu poético, caminha por uma urbe atemporal, – travestida da necessária modernidade –, que é simultaneamente polis e Babilónia.

Sumarie-se: a escolha de Síbaris como espaço simbólico foi oportuna e agrada-nos. Com efeito, nos poemas iniciais / iniciáticos, a cidade reveste-se de valores eufóricos:

«A cidade da luz e do sonho

Retocava-se de laivos de emoção
Nos fingidos contornos da distância.» (pág. 5)
«Síbaris, a cidade de luz
– Deslumbramento.»
(pág. 9)

A sensualidade, ponte para o materialismo, concorre, em simultâneo para estas primordiais impressões:

«O apelo das portas atrai e insiste»
(pág. 6)

«Cobre-se de encantos e mistérios,
Síbaris a vaporosa

Perfume e sedução
Ascendem das vielas.
O chamamento é forte, atrai, seduz.»
(pág. 9)

«A elegância envolvente nos sentidos»

(pág. 10)

A guerra, divino castigo, desce à cidade meretriz, feminina, «feitiços tinha a bela, a maviosa», entregue a promíscuos e estrangeiros olhares:

«Ao longe ressoam já os tambores.
Belicosas
As sombras definem os contornos.
E a cidade emudece...»
(pág. 14)

A disforia vem à superfície da página:
«Cidade esconsa e mesquinha
Estiola a vida e a alma definha.

Sem pejo
Satisfaz o excesso o desejo
E o silêncio mata as palavras.
Conspurca-se o sonho e o amor fenece:
O fluir da tarde tudo empalidece.»
(pág. 18)

As utopias também se abatem:

«Hoje Síbaris detesta, a elegante, a cocote»
(pág. 22)

Cabe uma final – talvez profiquamente equívoca – redenção da cidade. Pela água. A lembrar «death by water» de Elliot. Um sacrifício que arreda a cidade do mito humano e a devolve à natureza. Bem contado, ao jeito circular de Ribeiro Ferreira:

«E as densas águas do rio
Sobre a margem rolam já.
Síbaris vão destruir,
Implacáveis, sem remédio.
Sobre as margens a rolarem<
Densas do rio as águas.

Como evitá-lo, se em nós
O tempo constrói e devora
E espera o sonho sempre o amanhã?»
(pág. 29)

Derrubou-a o vento que passa, confidencia-nos o sujeito poético. Lembra-nos Brecht, quando diz: «Dessas cidades, só ficará o vento que por elas passou».

Em Variações Sobre o Tema de Síbaris, Ribeiro Ferreira arquitectou uma alegoria extra-temporal, fecunda e a sugerir reflexão. Característica que nos enxerta na tradição da moralidade literária de um Gil Vicente ou Anrique da Mota.

Poesia de veste agradável, a tirar partido de jogos fónicos e ritmos jazzísticos. Traz-nos o rigor obstinado e enxuto de Eugénio de Andrade, a idealização de Sophia Andresen, no seu helénico parentesco, a inconfessável tragédia do existir inelutável de Torga, que nas esquinas de Síbaris também espreita. Uma obra que vale a pena levar para um jardim próximo e ler com calma. Porque a metrópole agitada será cenário secundário, perante a cidade de papel que R. F. aqui nos oferece.

João de Mancelos

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