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Joyce e a construção do romance moderno

1 – Alguns conceitos sobre a arte, o escritor e sobre o romance.

Qual a origem motivadora da arte, isto é, porque razão, na circunstância, escreve o romancista romances?

A questão não é tão fácil como parece. Se à arte dedicamos as forças e os impulsos mais puros, bem poderíamos deduzir que a arte é um elemento essencial à vida humana. Todavia, a actividade humana é dirigida pelas necessidades primárias e imediatas – a salvaguarda da existência no meio que a cerca. Agimos, deste modo, para prover a nossa subsistência. Logo, a arte seria assim como uma forma de excrescência, uma manifestação extemporânea de energia, já que as impressões que dela recebemos não desempenham qualquer função vital nos órgãos essenciais à conservação da vida.

Acontece, porém, que o homem, e nisso se diferencia ele dos animais, aceitando embora a «alma mater» da natureza e o desafio para que ela permanentemente o convoca, dela se dissocia, engendrando, constante e ininterruptamente um outro mundo, inteiramente paralelo ao mundo primário que o rodeia.

A explicação criativa deste mundo anti-quotidiano pode ser encarada como uma forma penosa de inferioridade, e, simultaneamente, de superioridade, resultando daqui o incentivo para as mais altas realizações.

Neste esquema, a arte seria assim como uma fuga perante os fantasmas e os demónios que habitam a nossa imaginação e, consequentemente, uma purificação. O homem quando preso da emoção das forças que o delimitam, geme, sofre, debatendo-se em estertor contínuo. Se este sofrimento não for controlado, só a dor pode resultar dele, mas se o homem controlar este sentimento, se dissecar os fenómenos que o afectam, então estará a aplicar um meio curativo, só possível de realizar através do controlo total do seu corpo ou mente, a criar uma disciplina, a isolar os fenómenos, com vista a uma descoberta que bem se pode afirmar científica porque interpretativa desses mesmos fenómenos. Mas, a ser assim, teríamos de deduzir que a arte seria, antes do mais, conhecimento. Todavia, parece-nos, a função do artista é produzir, criar, e não conhecer, embora seja pelo conhecimento que ele seguramente atinja o acto criador. Um cientista só porque tem conhecimentos não é um artista. Desta forma, julgamos que o objectivo da arte é a criação.

Meditando um pouco sobre esta afirmação, teremos, ainda, que o artista, no acto genésico, procura ultrapassar a sua condição humana, pelo que vem a estabelecer na obra que produz uma energia criadora paralela à própria essência de Deus. Disto não temos que nos admirar, pois foi a religião que gerou a primeira manifestação artística. O homem quando sentiu a necessidade de fugir ao seu destino e libertar-se da miséria humana, que afinal faz a sua grandeza, passou a exprimir a sua concepção do sobrenatural, do invisível, do desconhecido. Doravante, a sua expressão artística será profundamente marcada pelo fantástico, pela imaginação, génese de todo o acto criador, ao invés da realidade que se lhe depara – a reprodução de cenas de caça, os animais ou o seu semelhante. Todavia, esta sua primeira excursão ao domínio do absurdo impõe-lhe uma feição humana no relato de toda a mitologia que estabelece. Cria, então, um Olimpo de humanos. Deuses e homens são iguais, apenas se diferenciando nos poderes que a imaginação atribui aos primeiros. Surgem, assim, desta forma, os poemas, os dramas, os romances e toda a fantasia fabuladora.

Esta autêntica manifestação criadora pode ter várias formas e está sempre presente, de forma integral, na actividade humana. No plano profissional, por ex., desde o simples empregado de escritório, catalogador de correspondência, até ao mais perfeito artífice, pode e coexiste o sentido artístico e o acto de criação. É que a arte não traduz apenas o conceito criador de qualquer objecto, mas também o cunho pessoal, a forma individualizada, impressa, na actividade quotidiana. É todavia evidente que esta afirmação pressupõe o gosto e o estudo pela tarefa que se elabora. O trabalhador ou o executante tipo mercenário, que encara a sua actividade como um mal necessário à sua existência, naturalmente, porque não têm em si a plena concordância entre o que sente e o que executa ou produz, não pode nunca integrar-se no que agora afirmamos. È interessante anotar, no entanto, que, quando tal acontece, por norma, esta individualidade procura num «hobby» qualquer a concretização do sentido estético que consigo coabita. Não é, pois, em vão, que, na vulgar apreciação popular, a expressão: «Fulano é um artista!», seja aplicada como forma enaltecedora às mais simples realizações; nem é tão pouco por acaso que, no mundo moderno, se estabelecem técnicas psíquicas – psicotécnicas – como meio de integração do trabalhador nos elementos ou sectores mais afins à sua aptidão criadora.

A arte, todavia, na sua expressão mais refinada, estabelece outras condicionantes e opta por outras expressões mais complexas.

Destas, a mais completa é o romance.

Dizemos mais completa e não mais pura, porque entendemos que a arte será tanto mais completa quanto mais elementos traduzir, influenciar, dissecar. Ora, sendo embora incontroverso que a arte, nesta sua expressão mais complexa, longe de atingir a massa total da humanidade, apenas se torna apercebível por uma escassa minoria ou elite, embora por razões que lhe são alheias, a verdade é que, entre as expressões artísticas de forma, de cor ou de sons, é a da escrita que maior amplitude alcança. E compreende-se; a linguagem da humanidade é a palavra e não a escultura, a pintura ou a música, embora, naturalmente, também estas expressões sejam susceptíveis de diálogo comum.

Por outro lado, nenhuma actividade criadora, como o romance, reúne sem si tantos elementos diversificados, tão complexos como os da vida humana e nenhuma, como ele, é um documento vivo. E vivo porque não só nos dá o relato da história das ideias e dos sentimentos, como, também, a análise dessas mesmas ideias e sentimentos sob a forma de criação artística; e, finalmente, porque, ainda quando enquadrado numa certa corrente literária nela se subjuga apenas nos aspectos exteriores,. Assim, por ex., falar em naturalismo, realismo ou neo-realismo, na base do que caracteriza estas correntes, isto é, nos aspectos concernentes à escolha dos temas, nos tipos decalcados das suas personagens ou nos esquemas aplicados na construção fabuladora, não é, seguramente, falar dos seus autores e dessas mesmas obras em termos derradeiros e acabados. Garrett, sendo um romântico, não traduz exclusivamente o romantismo, assim como Eça, sendo um realista, não traduz exclusivamente o realismo. O escritor, como todo o artista em geral, «só é grande quando se desclassifica», quando transcende ou ultrapassa os limites e os princípios que accionaram a sua obra. Nuns casos – autores – como noutros – obras – existe sempre algo de perene, comum a todas as épocas e expressões, que ultrapassa a crítica e a definição mais profunda ou a simples documentação social de uma época. O dizer-se que determinado romance não interessa, só porque está situado numa corrente literária ultrapassada, é um erro crasso e grosseiro. Um bom romance, de uma qualquer corrente literária, por mais caduca que esta se situe no espaço e no tempo, ainda hoje nos pode dizer muito e, certamente, o dirá no futuro, quer demonstrando potencialidades ignoradas, quer inflectindo para tendências e problemas mais actualizados. De resto, acaso assim não fosse, nenhuma literatura possuiria os seus clássicos, os seus «grandes livros».

Aqui, aliás, reside um dos pontos fracos das teorias marxistas que determinam a arte como uma ideologia sob certa forma artística, dando-a, assim, como dependente e prisioneira de uma «consciência social». Ora, esta definição, aparentemente correcta, não corresponde inteiramente à verdade. E não corresponde porque a verdadeira obra de arte ultrapassa e transcende os limites ideológicos, proporcionando, ainda, a descoberta de razões que a ideologia esconde.

Continuando, uma segunda dificuldade se nos depara : o que é, afinal, o romance? Uma história?!

Numa primeira análise, poder-se-á dizer que o romance é a captação da realidade sob a forma de escrita, segundo regras e normas específicas.

Esta captação, sendo embora comum a todos os homens, como já vimos, é para o escritor e para o artista em geral a essência fundamental do seu trabalho, da sua missão.

Todavia, sendo a realidade uma teia de múltiplos e facetados aspectos, aparentemente desordenados e diversificados, não bastará ao escritor a simples e apriorística enunciação destes factores, na medida em que da escrita meramente descritiva, não resultará nunca qualquer sentido estético, nem tão pouco qualquer ciência.

É pois necessário que o escritor actue no duplo aspecto da realidade que recebe, que nos dê na sua obra o reflexo do material acumulado no seu íntimo, quer pelos factores conscientes do meio que o rodeia, definindo os sentidos e a sua essência, quer pelos factores inconscientes que lhe dão uma outra existência: a existência imaginária.

Desta forma, o escritor tem de ser autêntico e simultaneamente imaginativo, na medida em que exprime a autenticidade através da sua imaginação.

Palavra e ideia, forma e conteúdo. Eis o material de que o escritor se serve. Num e noutro caso tem de procurar a perfeição suprema: a simplicidade.

Simplicidade de forma, de palavra ou de escrita, certamente que não é o desconhecimento da sua composição gramatical. O culto do idioma, pela pesquisa e pelo uso constante, nada tem a ver com o culto da palavra, em si mesma, quando pomposa, barroca, rendilhada, plena de ambiguidades e de equívocos. A palavra, sendo o instrumento laboral do escritor, só pode ser compreendida se transmitir a imagem nítida e certa da ideia ou da emoção a que se refere.

Curiosa e paradoxalmente há excepções. No reescrever deste período veio-nos à ideia o caso do sapateiro de Trancoso, nas conhecidas profecias de Bandarra. Este homem, sapateiro de profissão, como é conhecido, escreveu, por alturas do reinado de D. João III, umas trovas de estilo messiânico que até hoje ninguém entendeu. E como ninguém entendeu, ainda hoje são elas fruto de interpretações diversas e de leitura. Também, curiosamente, não falta quem nos dias actuais procure estabelecer certos paralelismos entre uma época e outra e, nestas trovas, procure uma doutrina. Como quer que seja, a verdade é que a obra perdura. A que se deve tal facto? Certamente que não é pelos factores estéticos, sejam estes de forma ou de conteúdo. Não cremos que o sapateiro fosse além da chinela. O inegável, porém, é que este homem baralhou de tal forma os seus escritos, as suas ideias, que, como dissemos, ainda hoje não falta quem nelas veja um sentir e uma expressão de alto valor. E aqui sempre vamos adiantando: é o que muitos pensam de Joyce

Mas voltemos ao nosso trabalho.

A pretensa ideia de que o conhecimento específico da palavra traduz originalidade é um erro. A especialização linguística, quando natural, isto é, quando não rebuscada, apenas identifica o seu cultor como prosador de mérito se acaso não possuir outros dotes. Neste contexto, recordamos a leitura de um dos «Diário»(s) de Miguel Torga, onde este autor nos dá as suas impressões sobre o valor estético de Manuel Teixeira-Gomes, mais ou menos da seguinte forma: «...A sua obra faz lembrar um manjerico: espremida, só dá cheiro...».

Acontece, porém, que muitos escritores – e então os críticos nem se fala! – adquiriram uma tal especialização da palavra que, quem os lê, não os entende. Ora, se a literatura tem como função ligar os homens, identificá-los perante si próprios e perante a colectividade, se estabelece obstáculos entre os que escrevem e os que lêem, conduz-se a si própria a um beco sem saída, por mais original que se auto-proclame.

Se fazemos esta referência, é porque não falta quem, a pretexto de uma experiência formal ou de uma complexa teia verbalista, sem qualquer sentido, pretenda fazer crer ter alcançado um certo estilo ou sentido de originalidade. Ora a originalidade, tal como o estilo, é como uma medalha de duas faces, tanto pode reflectir um sentido estético, inédito, como um artifício. Há pois que analisar a obra em função das suas intenções e razões, já que só no campo teórico se pode separar o pensamento ou conteúdo da forma porque ele é expresso.

Uma e outra expressões, muitas vezes confundidas no mesmo sinónimo, longe de apenas traduzirem estilos de composição, harmonia vocabular, ou as combinações linguísticas que são próprias da cada escritor, devem, essencialmente, reflectir um grau de expressividade perfeito dentro de uma certa filosofia revolucionária. O fim último desta revolução é a procura da verdade. Todavia, se cada momento histórico tem a sua verdade, bem poderemos afirmar que esta se procura e se disputa no meio de outras verdades, isto é, no debate filosófico e intelectual. Mais contritamente, diremos que todo o artista perfilha uma filosofia. Assim, sendo a personalidade em causa primeiro filosófica e só depois artística, há que ter em conta o seu grau de sinceridade e a prova científica daquilo que proclama. Por norma, todos os inovadores falham numa destas questões, resultando daqui uma atitude subordinar-se a outra. Há, pois, um desajustamento inicial, caracterizado pela oposição entre o conteúdo e a forma ou vice-versa. Só quando esta osmose é perfeita, isto é, quando o conteúdo e a forma se fundem no fim artístico, é que a obra de arte resulta. Se tal não suceder é porque o escritor se colocou especificamente ao serviço de uma ideia, ou de uma forma, perdendo assim a originalidade.

Entretanto, um outro problema se põe ao escritor: o da liberdade. Na sua forma mais imediata a liberdade do escritor é um mito. Primeiro e antes de tudo, o escritor está, como dissemos, ao serviço de uma ideia, de uma certa concepção ou teoria da vida, depois, sendo um artífice, produz uma mercadoria, a qual pode ser ou não consumida conforme o gosto do mercado: do público ou do poder. Um como outro podem influenciar negativamente a actividade criadora. O primeiro por falta de cultura artística e de perspectivas muitas vezes lesivas aos seus próprios interesses; o segundo pela coacção que exerce no ambiente social. Não vamos dar exemplos, eles sobejam, por demais, na história de qualquer país e de qualquer literatura.

De qualquer forma, o importante é que a obra resultante, tarde ou cedo, e venha a ser reconhecida como um valor humano em qualquer latitude, na América como na Europa, no Oriente como no Ocidente.

Se analisarmos as composições formais ligadas ao romantismo, naturalismo, realismo, etc., necessariamente que encontramos diferenças nítidas. Tais diferenças, como já explicamos, não são mais do que a correspondência formal ao conteúdo. A passagem de uma para outra, destas correntes literárias, foi não só um acto de originalidade, como, também, um acto de liberdade, na medida em que dela resultou a conquista, a tomada de uma outra realidade. Diga-se, aliás, não menos dolorosa e pesquisada que essa outra liberdade, de que todas as correntes estéticas são reflexos, que é a próprias liberdade do homem face às forças sociais que o delimitam no conhecimento e na justiça social.

Da mesma forma, pode-se perguntar em que medida um escritor é um verdadeiro inovador. Perante esta questão quase diremos, em nenhum! A novidade artística não traduz mais do que a reformulação cíclica da vida, isto é, a renovação do que está em vias de apodrecimento. Se o artista tem como obrigação primeira respeitar o real, de forma alguma pode ser o seu inventor. Contudo, bem vistas as coisas, pode ser o seu profeta. Daí que, em tais circunstâncias, quando exerça a sua actividade, esteja a transmitir o novo em determinada fase, isto é, a sentir antes dos outros. Este dom profético, este poder de antecipação aos acontecimentos, chama-se sensibilidade artística – quase diríamos social ou histórica, na medida em que reflecte um novo processo histórico.

Nada é novo, nada se cria, tudo se transforma. O mesmo acontece com a obra de arte, no caso, com o romance. A história da literatura, como a da humanidade em geral, é uma construção levantada sobre várias e diversificadas camadas de componentes, perfeitamente adaptadas umas às outras. As ideias não morrem, mas alteram-se de acordo com a realidade, a qual está em mudança permanente. Assim, o artista inovador é aquele que se apercebe destas mudanças e as acompanha. Esclarecemos melhor, inovador e não inconformista. A inconformidade com o dominante, isto é, a insatisfação perante as normas vigentes e os poderes estabelecidos, pode não levar a coisa nenhuma senão fizer prova capaz de sustentar os valores novos que experimentalmente proclama. Recordamos, não adianta vestir o velho com roupagens novas. O velho será sempre velho, além de que, pela mudança, até pode tornar-se ridículo. Tão pouco adiantará renegar integralmente certa fase artística, porquanto, sendo ela elemento real durante uma época, necessariamente, faz parte da vida. Não adianta, pois, renegar a juventude ou a velhice só porque se é já velho ou ainda jovem. O fim de uma escala de valores não é o términus de um conceito valorimétrico, mas apenas o começo de uma nova escala.

Esta verdade, mais do que em qualquer outra expressão artística, está sempre presente na literatura porque nela subsistem as melhores condições para ampliar os efeitos colectivos das relações reais da sociedade.

Ainda aqui, porém, há que estar atento ao conceito do real. Não existem provas físicas de tudo quanto acontece. Há pois uma outra realidade a ter em conta, uma realidade «não visível». De forma apressada e simplista, mas não menos verdadeira, diremos que a realidade tem duas faces inseparáveis. Aceite este princípio, diremos ainda que toda a problemática do romance se equaciona numa destas tendências; o real visível e o real invisível. Em qualquer destas divisões não podemos desconhecer a célebre frase de Plékhanov: «A arte é um reflexo da vida social», sem que necessariamente dela nos vinculemos aos dogmas marxistas.

Embora não esteja nas nossas intenções estabelecer qualquer achega à polémica da «arte pela arte» ou « arte social», a verdade, porém, é que destas expressões não podemos distanciar-nos. Digam o que disserem, o homem é um ser social, produto de determinado meio e cultura, integrando em si a súmula do conhecimento humano. Logo, o homem e tudo quanto ele produza ou execute é um acto social –mesmo que este repudie a sociedade que o cerca e se rodeie de uma torre de marfim. A equação do drama de uma consciência na sociedade e o drama da sociedade numa consciência individual não alteram os dados fundamentais desta afirmação. Daqui, que a literatura implique em si um conceito artístico dúbio, que muitas vezes não tem sido levado em conta. E se é verdade que a arte em geral documenta uma relação entre o autor e a sociedade, não menos certo é caber ao artista, no acto genesíaco, uma espécie de «endeusamento» ou abstracção que o coloca à margem dos demais.

No fundo, porém, o que está em causa e o que é importante, é recriar a vida em termos de verosimilhança, isto é, reconhecermos na obra literária a mesma magnitude que na natureza reconhecemos em relação à sua criação, ao seu criador.

Não obstante, o percurso que o romance sofreu durante uma evolução se séculos é hoje fortemente contestado. É que, de facto, a tão procurada verosimilhança ou densidade psicológica e social pode não respeitar o real.

A característica comum a todos os grandes romancistas clássicos foi a de se servirem da verosimilhança para criarem os seus personagens. O que daqui resultou foi a criação de tipos literários em função de um protocolo. Assim, «Madame Bovary» é o tipo acabado da burguesinha provinciana, com a cabeça repleta de fantasias românticas, crente de ser o centro do universo.

A ninguém, certamente, passará pela cabeça negar a verosimilhança, o sentido do real, a quase existência física desta espantosa criação literária. Todavia, se analisarmos bem, «Madame Bovary» só é real de forma unilateral. Mas, busquemos outros exemplos – Camilo. Toda a obra de Camilo assenta estruturalmente nos efeitos de amores contrariados entre dois amantes. Naturalmente, toda a contextura da sua obra empolga-nos, fazendo-nos vibrar com os dramas das suas personagens, mais ou menos de ficção. E dizemos mais ou menos de ficção, porque sabemos que muitas delas existiram fisicamente, que foram afectadas por esses mesmos dramas. A genialidade de Camilo está na forma como nos transmitiu esses acontecimentos em termos de verosimilhança, isto é, na forma como obriga os seus leitores a «viverem» as vicissitudes das personagens que reproduz. A partir daqui, contudo, a verdadeira história de Simão e Teresa, no «Amor de Perdição», por ex., deixa de ser a real para ser a inventada por Camilo.

Ora, não obstante a adesão e a atracção emotiva que o leitor experimenta na vivência das personagens que Camilo relata, a verdade é que a autêntica realidade das suas vidas foi, seguramente, muito mais complexa, muito mais diversificada, do que aquela que nos é transmitida.

Temos, assim, que a verosimilhança que Camilo nos legou, respeita muito mais a uma verosimilhança de «ficção», do que de autêntica vida humana na sua mais ampla complexidade, ou seja, que o comportamento humano da suas personagens, fora da planificação da história que relata, foi excluída por não dizer respeito ao drama que se historia.

Esta é, de facto, a situação que o romance moderno denuncia, apondo-se a ela pelo relato integral do comportamento humano. Ao classicismo do romance «feito», a corrente actual determina-o como «fazendo-se» no acto em que se escreve.

E assim é que, em resultado, quaisquer 60 minutos da vida de um vulgar cidadão sejam motivo para um romance de 300 ou 400 páginas, porque a preocupação do escritor, seu criador, não é mais criar a personagem em função de uma história, mas, antes, dar liberdade total à sua personagem, ainda que seja em sacrifício da história.

Ora, sacrificando a história, quer-se dizer que a dimensão temporal ou o encadeamento necessário para o avolumar dos conflitos, estrutura fundamental de toda a arquitectura romanesca, foi pura e simplesmente abolida.

Desta forma, crente da impossibilidade de pelos métodos clássicos se poder exprimir toda a plenitude dos fenómenos, o romance moderno procurou e procura a sua linguagem adequada.

Esta pesquisa, aliás, comum em todas as correntes literárias, não é fácil e, quanto a nós, ainda não se concretizou. Para já, ela tem-se afirmado por uma verdadeira revolução da sintaxe. E compreende-se que assim seja, porque se o romance moderno não é mais claro e limpo, antes se caracteriza por uma espécie de auto-análise progressiva, onde os dados fundamentais, longe de traduzirem um amadurecimento de atitude ou evento, se reproduzem como estilhaços de pensamento, desordenados e aparentemente incoerentes, então, digamos que a expressão linguística correspondente justifica a sua complexidade.

Durante quase sete décadas, este querer de representação humana, na sua totalidade, tornou-se objecto de pesquisa incessante.

Hoje, porém, este querer, senão está já ultrapassado, está, pelo menos, consciente da sua limitação: falta de comunicabilidade com o leitor.

É que, de facto, a reprodução total da vida humana está para além do humano. De resto, a não ser assim, teríamos que o romancista seria igual a Deus, como ponderava François Mauriac.

De qualquer forma, o que está em causa é que o romance moderno, pela ausência das estruturas tradicionais do romanesco em favor da multiplicidade dos fios condutores, tornou-se quase ilegível, estático, renegando assim as suas origens.

Ora, a origem do romance, é, como se sabe, a epopeia. Por outro lado, não podemos esquecer que a epopeia era um género essencialmente oral, para ser contado, enquanto o romance é um género essencialmente escrito, para ser lido. Um procurava o encontro com a emoção, a apologia dos grandes ideais históricos ou cavalheirescos, sob a forma de aventuras de um ou mais heróis integrados num mundo total, de certa forma, mítico; o outro limita-se à narração de um mundo mais ou menos particular, fortemente individualizado, limitado ao clã familiar ou a pouco mais. Esta transformação, de que resultou a depuração dos factores colectivos, eclodiu extremísticamente no romance moderno, destruindo os conceitos de tempo e espaço, e de que foram seus mentores, em maior ou menor grau, Proust, Gide, Woolf, Joyce, Huxley, Faulkner, etc.

De qualquer modo, continuam a subsistir regras inalteráveis. A estrutura narrativa, por ex., hoje, como ontem, pressupõe a existência de três métodos: a narrativa na terceira pessoa, a narrativa na primeira pessoa e a narrativa decorrente de documentos diversos (cartas, diários, etc.). Destes, a forma mais valorizada é a primeira, pois que dela resulta a consciência analítica ou a posição crítica sobre o que acontece. Neste caso, cabe ao romancista ou narrador não só a descrição unilateral do mundo dos personagens que cria, como, também, o estabelecimento de certa forma opositória ou concordante ao que se relata, de acordo com a sua própria concepção do mundo. Existe assim a vida das personagens e a interpretação independente de quem as cria: uma não influiu na outra. Por sua vez, a cronologia da exposição, necessariamente e apesar de tudo histórico-biográfica, continua a apresentar variantes como os leit-motivs, enredos laterais, episódios multiplicados, etc., cabendo ainda ao diálogo ou ao monólogo a parte indispensável ao romance.

De tudo isto, para finalizar, uma questão única há a ponderar; saber até que ponto o mundo artisticamente ordenado e organizado pela imaginação criadora do romancista encontra similitude na imaginação e compreensão do leitor.

Se esta concordância é alcançada, então, podemos afirmar que o romance mantém-se vivo e latente, se o não é, então, diremos que o romance está em crise e em vias de extinção.

Ramiro Teixeira, Joyce e a Construção do Romance Moderno, Porto, 1979, pp. 11-25.

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