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Ensaios


Transgressão e conquista: O Conquistador

Sete anos depois do último livro que encerra o conjunto aqui considerado como saga, é publicado O Conquistador (1990), apresentando diferente proposta ficcional.

Já pelo título, enseja a polissemia da leitura. O conquistador é o rei D. Sebastião da história de Portugal, parodiado pelo Sebastião, conquistador amoroso da história ficcional; ou é Sebastião, indivíduo como outro qualquer, com desejos e dúvidas que busca conquistar a sua identidade, o seu espaço no mundo; ou ainda, pelo discurso, é o conquistador do espaço ficcional, o narrador do texto. A quem conquistar? nações? mulheres? a si mesmo? o leitor? O percurso passa pela referência histórica, pela dimensão metafísica, pelo processo criador. É uma obra aberta a múltiplas interpretações.

Realiza uma subversão no campo literário quando desloca a atenção do objeto literário para o processo de comunicação. Agora, o texto é leve e comunicativo, alegre e rápido, atendendo porém ao leitor mais exigente quando, por sua estrutura, se verticaliza em múltiplas possibilidades de interpretações, ensejando reflexões a vários níveis.

O contraponto com a História

Nesse livro, o resgate da história desloca-se do contemporâneo para o passado heróico, para a fase de ouro das conquistas do Portugal 'valeroso'. Por essa imagem da história do país à qual o seu título remete, no primeiro contato do leitor com o livro, a idéia inicial é a do destemor.

Em seguida, uma aproximação com a história se faz por apropriação do mito de D. Sebastião, através das semelhanças do rei com o personagem central, já que Sebastião é sósia do rei do mesmo nome. As semelhanças são físicas: "louro, entroncado, de olhos claros, curto o nariz, redonda a cara, a boca de carnudos lábios" (1990, 20), o terem ambos "seis dedos no pé direito". Ainda as coincidências entre as datas de nascimento e da "possível" morte induzem a uma interpretação à luz da história que a paródia dessacraliza, arrebatando o leitor de um tempo heróico, para o tempo presente. O contraponto permanente entre a biografia de Sebastião com a do rei, devido a referências aparentemente banais que os relacionam, fazem pontes com a história, realizando a repetição na diferença, ao destemor do rei em tentar conquistar terras, contrapõe-se o destemor de Sebastião em conquistar mulheres.

Assim a história é lembrada: "Garante a crônica que o astuto rei espanhol e eventual futuro sogro teria dito a alguém: se Sebastião vence, ganho um genro; se morre, ganho um reino. Deu-se a segunda hipótese" (1990, 75). A fama do Rei é questionada, quando tomada a inscrição do seu epitáfio, "si vera est fama", que a condicional insinua. Essa "declaração de ausência e de presença" promove a conclusão dessacralizante de que "os ossos, supostamente trazidos da África, não são decerto seus. Só raramente a fama é verdadeira" (1990, 77).

Ao retomar o passado remoto, o narrador busca a reflexão sobre o tempo presente. A referência direta à história do 25 de Abril é eventual, mas inerente à vida do personagem e relacionada com um passado ficcional próximo: "A Revolução dos Cravos resolvera as insolúveis guerras coloniais, e o meu exílio perdera a sua razão imediata" (1990, 120). A referência é indireta, quando aborda crises existenciais e de identidade.

A re-visitação que essa mais recente ficção de Almeida Faria faz à história é resgate de um tempo anterior para a re-visão do atual. Esse texto realiza a interação com o tempo presente para, através da comunicação, melhor compreender o homem deste tempo.

A estrutura circular: lendo e re-lendo o texto

Não é à trama amorosa que o escritor dá a maior atenção, mas à estratégia da escrita, onde a construção textual dá prioridade à estrutura e o personagem-narrador consola-se "por não dizer as patetices habituais" (1990, 64). Realizada em círculos concêntricos, a estrutura de O Conquistador permite inúmeras re-leituras por caminhos sempre novos.

As sete partes do livro revelam etapas da vida desse Sebastião, fases das suas conquistas amorosas, desde o seu nascimento, na primeira parte, até o seu recolhimento, na sétima. Percorre, pela memória, o período de vinte e quatro anos e, pela escrita, o de sete meses.

A estrutura faz o texto ultrapassar as possibilidades das relações, das associações de uma leitura, para oferecer, além dessa possibilidade, a de empreender vários caminhos, recomeçando sempre.

A estratégia da conquista amorosa, "tê-la desafiado para nadar foi iluminação transcendental ou astúcia banal" (1990, 65), é recurso de quem "usava de todas as armas" (idem) para atrair, inclusive o leitor. Simultaneamente, o próprio relato elabora a sedução do personagem e do texto, no tempo da escritura. É o percurso produtor do texto presente, presentificando-se seja através do sujeito do discurso, narrador-personagem que durante sete meses escreve a sua história; seja através da estruturação do texto dividido em sete partes, precedidos por sete desenhos de Mário Botas, condensadores de significação; seja, ainda, por sete epígrafes, insinuadoras e, até mesmo, sintetizadoras do procedimento produtor. Tais epígrafes provocam reflexões relacionadas com: validade/verdade da obra (se vera est fama), característica do discurso (In speech an irony, in fact a fiction), referência do número sete (El número siete, hijo mio, es un número muy importante, ya lo verás), requisitos de um artista maior (Madame, to my mind there never was a great artist who was not a bit of a charlatan; nor a great king, nor a god), propósito amoroso do conquistador (lo sai, dunque, che questa é la descrizione del nostro amore, che io non sia mai dove sei tu, e tu non sia mai dove sono io?), relação entre realidade e verdade ficcional (Il y a peu de relations auxquelles on ne puisse appliquer ce que Strabon disait de celles de Ménélas: je vois bien que tout homme qui écrit ses voyages est un menteur), e inventiva do texto e sua perspectiva de recepção (Su libro tiene algo de buena invención, propone algo, y no concluye nada; es menester esperar la segunda parte que promete; quizá con la enmienda alcanzará del todo la misericordia que ahora se le niega...). Assim, através dos respectivos autores das epígráfes (Vergilius, Defoe, Cela, Dinesen, Manganelli, Diderot e Cervantes), percorre tempos e nacionalidades, que a arte de criar não tem pátria única, é transnacional, universal. As epígrafes apontam a estrutura circular do texto. Tal estrutura promove o recomeçar incessante da leitura, que vai sendo gradativamente insinuada pelo produtor e descoberta pelo leitor.

Todas as fases percorridas nas conquistas amorosas são fases experimentadas de vida: a expectativa, a timidez, o impulso, o ciúme, o prazer, o destemor. Fases de um crescimento que, analogamente, são fases da aprendizagem existencial, da aprendizagem da escrita. Pelo relato da avó, Sebastião, o menino, acreditou que "um dia o rei voltaria numa certa madrugada, no meio da neblina" (1990, 23). Sebastião, o adulto-narrador, é "assaltado pelo supersticioso receio de não viver mais que D. Sebastião" (idem); refugia-se na ermida da Peninha para repensar o que fez e o que não fez de si, "só quero repensar, até ao ameaçador mês de agosto" (idem). No mês de agosto (o sétimo da espera e da escritura) é o tempo da morte do D. Sebastião histórico; o vigésimo quarto aniversário de ambos: "de nada mais preciso neste dia do meu vigésimo quarto aniversário" (1990, 24). A primeira e a última partes interligam-se. Através da história, se a Parte I anuncia, a Parte VII relata a "morte" de Sebastião na passagem do adolescente ao adulto. Conclusão de uma aprendizagem; pelo discurso, as partes I e VII assinalam o tempo de sedução para o narrador (porque começo do relato-memória) e o propósito de afirmação do personagem-escritor.

Ressaltando que a literatura não se confina a uma única língua, a uma única pátria, ao abrir a parte I com Vergilius, o produtor retoma o tempo através do código, enquanto prenuncia o destino da ficção que se desenrolará.

As muitas leituras possíveis ocorrem na continuidade de um prosseguir e retornar ao começo do texto, desde a primeira constituição do sentido do percurso amoroso, a outras possíveis: da busca da identidade, da ótica do fantástico, do processo criador.

Coincidentes com as partes em que se divide o livro, as experiências sexuais e emocionais e, até mesmo, edipianas, na busca incessante e insaciável de Sebastião nas várias fases do seu percurso, sugerem, por suas vitórias e derrotas, alegrias e tristezas, o próprio caminhar de cada homem desde o seu nascimento até à fase adulta. Em outra instância, sugerem a procura da própria identidade do indivíduo. Apontam, ainda, para o caminhar do escritor, desde as suas experiências, suas influências, até à maturidade de estilo. Todo o percurso amoroso foi estratégia necessária para o conhecer-se, inclusive como escritor: "inquieta-me o que me espera. Mas dúvida e desassossego são fiéis companheiros" (1990, 122).

As epígrafes que abrem cada parte costuram um texto metaficcional, alusivo e simultâneo ao caminhar de Sebastião nas suas conquistas amorosas e à sua conquista da vida. A cada percurso estrutural complementam e enriquecem as leituras que, num outro recomeçar, se podem realizar, inclusive pontuando a postura produtora de laboração da própria estrutura. Nesse percurso de ir e voltar, uma leitura empreendida através das epígrafes culmina na sétima parte com a transmutação de Sebastião, o conquistador de mulheres, em Sebastião, o conquistador da escrita. Dá-se a transformação do amador na coisa amada, em virtude do muito imaginar. Os dois tecidos textuais interpenetram-se. Recolhido na serra de Sintra, Sebastião passa a ganhar o seu espaço de escritor, discutindo o seu processo como artista, as razões da escrita, a fonte do imaginário.

Sete é um número muito importante, tal como insinua o produtor, através da epígrafe que abre o capítulo III. Sete significa seis mais um. Seis são os dedos dos pés do Sebastião, são os capítulos da sua caminhada de aprendizagem; um é o momento da transmutação do adolescente em adulto: no capítulo VII, a morte, simbólica e iniciática, é fim de uma etapa; mas a vida ressurge, já que há a proposição de um recomeçar: "volto com euforia à vida que de novo me fascina" (idem).

A sétima é a parte integradora. Sete é um número muito significativo, já foi dito. É o número cabalístico que transmuda o mito: "como se fosse um sol, sete estrelas giram à minha volta. São as Plêiades da constelação do Touro [...] aquele Sete-Estrelo me há-de de guiar" (1990, 134). Conhecidas outrora, no Mediterrâneo, como as plêiades (1) dos navegantes, a constelação é guia tomada pelo escritor para protegê-lo. Aí está uma possível intenção para a escolha da epígrafe de Cela: a importância do número sete. Por conta desse número, a estrutura provoca o repensar sobre o mito, que a primeira leitura dessacraliza. A idéia de que o conquistador voltará para salvar, desloca-se do povo, da pátria, para o processo criador. O retorno é o do produtor que inventa o texto.

Ao contrário do D. Sebastião, o narrador não morre. Ao produtor, "aquele Sete-Estrelo há-de guiar pela vida afora e há-de defender de morrer cedo" (1990, 134). O material imagético flui incessantemente dos sonhos e casa-se com os desenhos do amigo, pois diz o narrador: "seja sonho meu ou desenho do meu amigo que todos os meses me traz novos esboços, ultimamente aparece-me de noite uma figura nua que podia ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvas compridas, usando na cabeça a mitra dos dignitários e príncipes" (idem). Ao concluir o livro, o produtor não conclui o ofício, já que engenhosamente anuncia a sua sequência, não só na epígrafe, mas no próprio relato do escritor recolhido, recebendo novos esboços que, sejam desenhos ou sonhos, são a matéria prima do seu imaginário.

Historicamente, a conquista não é mais de terras para a ampliação do império. Agora, a conquista é do leitor, devido à ampliação das estratégias de comunicação. Escritor e leitor tomam posicionamento no contexto desses anos 90, tal como antes "recorríamos à mesa da braseira, junto à qual abancávamos, ouvindo o vento, nos longuíssimos serões pré-televisivos" (1990, 31). O leitor, assim, vai-se assenhoreando do texto, fazendo a sua aprendizagem de leitura, sob a dinâmica da estrutura circular.

O caminhar do processo de escrita é a aprendizagem percorrida; o caminho amoroso, as etapas das conquistas. Ao fazer a reflexão da sua vida, faz a reflexão do seu processo de escrita, do percurso também desse livro que acaba de escrever e principia porque, por sua estrutura, ao terminar, recomeça.

Algumas reflexões restam ao leitor: o percurso da aprendizagem de um escritor teria sido o percurso do escritor? o escritor continuará conquistando leitores como o rei conquistou terras? ficará encoberto, como o rei-mito? Pela contemporaneidade da sua obra com esta leitura, somente o tempo poderá dar essas respostas.

A conquista ficcional

O prazer rege os princípios dessa escrita intencionalmente conquistadora de leitores. O prazer pelo humor, pela beleza, pela descoberta dos meandros do texto, através do aprofundamento gradual das constituições do sentido. Narrador e personagem, "juntos fomos inventando as muitas maneiras de aumentar o gosto de beijar, numa constante aprendizagem" (1990, 72).

Solta, desembaraçada, suave e alegre é a linguagem desse livro escrito pela ótica bem humorada: "um grande vento continental e quente se levantou e consigo levou os nossos medos para longe, em direcção à linha de um azul horizonte marítimo" (1990, 77). A relação do personagem-narrador com o mundo é pela perspectiva da leveza: "Assim me alcunharam de Rei da Roca, nome que, quando cresci e comecei a gostar de dançar, deformei em Rei do Rock" (1990, 38).

As experiências sexuais longe de representarem tão somente experiências eróticas, ou mesmo um percurso de uma caminhada de busca existencial, são instigantes exercícios de linguagem, "tombos e solavancos, por curvas e contracurvas contínuas" (1990, 61). Os trocadilhos são um exemplo desses exercícios que dão lugar ao erótico: "não pensava senão em Kama-Sutras e camas-supras" (1990, 69). A atitude burlesca que leva ao erótico é também tomada em relação com crenças esotéricas: ao ser convidado para participar de determinado ritual, Sebastião recusa, troçando que "mais que os cultos do oculto, preferia contactos concretos e reais" (1990, 117). A ironia trocista e provocadora do riso, arquitetando a dimensão erótica do texto, empresta leveza ao tema: "Deus vê tudo, até a minha mão entre as coxas da mestra" (1990, 50). Chega à irreverência e ao deboche, quando Sebastião afirma que a sua "religião era feita dos fluidos e eflúvios, calores e tremores do corpo da professora" (1990, 51).

É opção do autor a coexistência dos registros erudito e o popular, por considerar tal procedimento "menos formal, democrático" (1990b, 46), e consequentemente contribuir para o rompimento com o texto elitista, fazendo, assim, a linguagem mais comunicativa. Através do registro popular, é realizado o burlesco, veículo do erótico para a conquista amorosa, processo esse consubstanciado em metáforas e comparações, que evitam o grosseiro, as expressões kitsch: "meloa e mulher pelo perfume se conhecem [...] a mulher muito doce, não a comer logo toda" (1990, 111). A ambiguidade sintática cria espaço para observações do leitor; o machismo que tal brincadeira faz entender é imediatamente rechaçado pelo personagem como defesa: "injúria supina" (idem).

O registro erudito está na intertextualidade que quase não é anunciada, dependendo do conhecimento do leitor para a sua identificação: "a Parca que tudo reparte tornou-me supersticioso" (2) (1990, 62), ou "as cartas que Clara me enviou, semana após semana, e que nunca me soaram ridículas, tratei-as de modo fetichista" (3) (1990, 79). Esse registro insinua-se, ainda, na utilização de várias línguas para a produção do tecido textual das epígrafes, que impulsiona outras hipóteses de leitura e torna presente a universalidade da literatura.

A leveza está ainda no tratamento de troça e graça, dado ao mito de D. Sebastião, numa primeira constituição de sentido (essa da conquista amorosa). Tratando desse mesmo mito, uma segunda instância de sentido superpõe-se a essa primeira, por estratégia estrutural.

O texto é curto, com linguagem ágil, breve, buscando a rapidez dos tempos do imediatismo por suas imagens claras, nítidas.

O percurso de conquistas amorosas que Sebastião faz desde o berço até a fase adulta prende o leitor pela rapidez da sua história, engendrada em continuidade, sem fragmentação, embora o personagem-narrador diga: "a cronologia da minha infância nem sempre me surge nítida" (1990, 35). A atitude do narrador é de reflexão do passado que nos conta: "não sei se chame "jogos" às fantasmagorias com que preenchia o nada da minha vida" (1990, 37). Espaço e tempo avançam harmoniosamente em amplitude crescente: nascimento/ Farol da Roca, infância/ Azóia, pré-adolescência/ Sintra, adolescência/ Lisboa, juventude/ Paris, passagem para adulto/ hermida da Peninha (recolhimento).

Uma primeira leitura conduz o leitor, entre divertido e curioso, a uma trama bem urdida. Embora a figura do rei português D. Sebastião seja tomada como impulsionadora do imaginário, sugestionadora do personagem Sebastião, para além da relação paródica com o rei de Portugal, como todas as pessoas, Sebastião empreende o percurso da criança ao adolescente e, deste, ao adulto. Tem os medos, os sonhos, as fantasmagorias e as crendices da infância, mesmo sobre as coisas que lhe contava a avó sobre como havia nascido. Passa, capítulo a capítulo, por todas as fases da sexualidade, desde as reações inocentes, às elocubrações com a professora, ao romance nunca esquecido com Clara, às aventuras com mulheres casadas, à experiência/trabalho em narcisismo erótico e, até mesmo, a uma insinuada relação incestuosa com a avó Catarina :"a cumplicidade evoluía entre nós para uma intimidade respeitosa. Não do gênero que liga avós e netos, mas do gênero que pode existir entre certos homens e certas mulheres" (1990, 95-6). Finalmente, chega à busca do sentido do estar no mundo do adulto, à reflexão e conquista da própria vida. Dessa forma, a aprendizagem de vida é perspectivada pela ótica da sexualidade, que engendra o fio da narrativa linear.

O estilo de O Conquistador é enxuto e sóbrio, econômico, de significativa rapidez. Os anos de aprendizagem (4) culminam com o tempo de reflexão onde, recluso, Sebastião deixa emergir o escritor. Do percurso realizado (amoroso mas, metaforicamente, do amor como arte escrita), hoje, voltando-se para o passado e refletindo-o, desde lá, até esse tempo, tal como Pessoa (5), percebe a dualidade que existe em si mesmo, entre o que foi e o que agora escreve: "como se o eu não fosse meu, como se não me reconhecesse em todas as ações e amores e diálogos de que se diria que fui protagonista ou que simplesmente tomei parte sabendo-me exterior ou excluído" (1990, 132).

Não mais se reconhecendo no que foi, ele sabe quem não quer ser: "o simples gozador, o engatão preocupado com a satisfação da sua vaidade, o sedutor de lábia fácil" (1990, 130). Na afirmação, presentificam-se as intenções do produtor e também são pontuados percursos para o leitor. Se por um lado a afirmação soa como uma advertência para que o leitor não pare aí, por outro, é uma pista sobre as opções do produtor quanto à sua pretensão de estilo. Ao afirmar que não pretende ser somente o burlesco ou demonstrar a sua erudição, ou as suas possibilidades de conquistas amorosas, o narrador expressa uma possível intenção produtora. Tudo isso é construção do ser, tudo isso contribui para o todo: o escritor que faz o texto. A proposta é de busca permanente. Falando do ser conquistador de mulheres, metaforicamente fala do conquistador da escrita, que vê no excesso uma forma de perversão.

Refletindo sobre esse seu caminhar, o personagem-escritor conclui que a sua proposta de escrita se define pela valorização do imaginário; mais vale o muito imaginar para descobrir o engenho e a arte; a sua linguagem precisa é indicadora disso. A valorização do imaginário é, ainda, o que parece sugerir, até mesmo, a espaçada periodicidade das publicações desse autor.

A visibilidade ganha foros de transcodificação ao valer-se não só de palavras, mas de desenhos, de espaços brancos, de outras línguas que não só a portuguesa. Os recursos paratextuais ampliam-se, sinalizando a possibilidade de outras leituras. Fazem-se, agora, tecido textual, um texto sobre o outro.

Já desde a capa, o livro comunica em dois códigos, expressos nas imagens claras do título e do desenho. Se o título, O Conquistador, sugere simultaneamente várias interpretações, de imediato o desenho-retrato direciona para uma primeira: a relação com o Rei D. Sebastião. Pelo colorido da capa, pela forma estilizada do desenho, assim como pelo título sugestivo, a apresentação do livro convida à leitura. A sua estrutura gráfica (as sete partes, introduzidas, respectivamente, por sete desenhos e sete epígrafes) transparece ao primeiro contato visual, no rápido folhear do livro.

Os desenhos e as epígrafes somam-se ao discurso; são três textos que correm simultaneamente e, interrelacionando-se, contribuem para a direta comunicação na medida em que acontece a contribuição de outras formas de leitura que a pintura ou a epígrafe ensejam. (6)

Os sete desenhos de Mário Botas que abrem cada parte do livro, assim como as sete epígrafes, em várias línguas, que abrem cada parte, fazem parte da concepção estrutural de O Conquistador, sinalizando outras possibilidades de leitura e contribuindo decisivamente para o caráter comunicativo do texto. Tais recursos caminham, simultaneamente, transcodificando o tecido textual, ultrapassando a língua portuguesa, inclusive para outras linguagens, pela intersecção com as epígrafes, os desenhos. São caminhos que possibilitam leituras a vários níveis, onde a recorrência desses expedientes paratextuais concorrem para efetivar a comunicação com o leitor.

A voz unívoca do narrador-personagem conduz a trama e faz a multiplicidade da linguagem. Além disso, há as "vozes" presentes nas outras linguagens: a dos desenhos e a das epígrafes. Embora aparentemente unívoco, esse texto tem essas outras "falas", que não são as convencionais, mas que se manifestam, dado o aspecto transcodificado do texto.

Há que ser considerada, também, a relevância da auto-referencialidade como a voz produtora que elabora a constituição de sentido que tematiza o processo criador. Essa perspectiva, pode ser constatada, por exemplo, na intertextualidade com Fernando Pessoa (7): "Continuo ignorando quem sou eu. Se fui quem hoje julgo ser, se sou quem dizem que fui, se nunca serei mais que não saber quem sou ou quem serei, mesmo assim valeu a pena" (1990, 130).

A espessura da linguagem garante o espaço vazio para o leitor e o texto não se banaliza, como pode parecer. O texto não se reduz a somente um nível de leitura: atende ao leitor menos exigente, que procura a história, e satisfaz ao leitor que busca o trabalho das palavras e seu sentido oculto. Percorrendo tonalidades que vão do burlesco ao sério, atende às várias expectativas, inclusive às daquele leitor do interdito, aquele que lê as entrelinhas.

Alcançando a maturidade, o personagem-narrador reflete sobre o percurso: "se comparo com o meu abrigo na Peninha, a casa do Farol era quase luxuosa [...] onde nos dias de festa se comia e se cumpria o dever de ser feliz" (1990, 31). Nessa última fase, Sebastião assume-se escritor, buscando-se ainda: "Fecho-me sobre mim, volto costas ao mundo demasiado vasto para a minha fadiga" (1990, 127). Por trás do aparente riso/cumplicidade, na busca de si mesmo e do seu espaço, as conquistas são a sua forma de se situar no mundo.

Pela boca de Cervantes, na epígrafe que abre a sétima parte, como que antevê a recepção da obra e instiga o narrador a continuar a escrita. Conclui o tecido do texto teórico da produção, habilmente escrito por detrás do discurso do narrador.

O surgimento do personagem-escritor que, afinal, é o narrador do livro, acontecido na parte sete, faz o leitor mais uma vez retomar o texto e refazer a leitura por esse prisma. O foco ficcional do narrador que conta a sua própria história, que "contempla os lugares da meninice", passa a idéia de um imaginário que resultou de vivências amorosas, de coisas que o narrador ouviu da avó, de sonhos sonhados ou de sugestões trazidas pelos desenhos do amigo. Caminham paralelos: "Eu usava de todas as armas" (1990, 65)

A circularidade estrutural desses textos, garantindo a múltipla constituição do sentido pelo deslocamento do tema em horizonte (e vice-versa), sugere ao leitor uma representação totalizante, que é sua tarefa buscar através da releitura dinâmica de uma estrutura circular.

A consistência, que garante o sentido do texto, permite ao leitor várias inferências de interpretação. Ao falar "fiz o que o Outro não fez" (1990, 133), pode-se pensar: O Outro seria o Sebastião amoroso, que somente correu "atrás de mundos e mulheres" (1990, 133); seria o D. Sebastião que percorreu caminho diverso na tentativa de conquista; seria o Poeta, referido em Cavaleiro Andante (1983, 280), a propósito de Camões, que não teve enganos no caminho de escritor?

Na epígrafe que abre a sétima parte, o narrador prevê que as conquistas amorosas de Sebastião possam não satisfazer o leitor mais exigente. Um retornar possível poderá acontecer pela via do fantástico, com base nos desenhos surreais e nas pontuações da trama e da linguagem. Assim, o narrador alcança, por esses recursos, a "directa linguagem que consegue superar desgastes, defasagens de latitudes, longitudes e idades" (1983, 187), onde as palavras somente já não bastam.

Da história ao mito: o avesso e o resgate

O avesso

O destemido e jovem rei, que sonhava conquistar terras, morreu em batalha. Pelo prolongamento do relato no tempo, foi tornado mito, pois o rei um dia voltaria para salvar o povo português e criar o V Império. Segundo consta, esse rei era virgem. Tomando esse dado da virgindade como mote, Almeida Faria cria o seu personagem paródico, aquele que tem como característica mais forte a arte de

conquistar todas as mulheres. O produtor está consciente de que "para qualquer arte, já se nasce fadado. Mas nem os fados nem as fadas bastam" (1990, 52), tanto para as conquistas amorosas, como para a conquista da escrita, há sempre alguém ou algo provocador. Esse "alguém" é o mito de D. Sebastião, resgatado (8) nesse texto ficcional.

O mito de D. Sebastião, institucionalizado ao longo do tempo, hoje se encontra gasto (9) e a desmitificação é sua decorrência natural, tomada como estratégia de comunicação por Almeida Faria. O mote da paródia sobre o Rei Conquistador é insinuado pelo próprio Sebastião enquanto narrador: "dedicar-me em exclusivo àquilo em que o Outro estrondosamente falhara ao manifestar pelo belo sexo uma aversão extraordinária" (1990, 74). Enquanto o Rei imaginava "furiosas batalhas contra os árabes que, do alto do Castelo dos Mouros, desafiavam os seus sonhos de glória" (idem), da mesma forma Sebastião imaginava furiosas batalhas amorosas (10). A ironia é construída no contaponto entre as atitudes de Sebastião e as do Rei e vai promovendo a dessacralização do último: "por patriotismo fiz mais esse sacrifício e aceitei" (1990, 90).

Fisicamente semelhantes - "os olhos amendoados, os cabelos alourados, a cara oval [...] os membros compridos de mais" (1990, 75) - tinham, assim, a diferença do interesse: o rei, pela conquista de terras; o jovem do Farol da Roca pela conquista de mulheres. Pelo tratamento do Sebastião que, entre galhofa e convencimento, conquista mulheres, passo a passo a leitura do texto vai "avessando" a primeira idéia de bravura sobre o rei, aquela idéia passada pela história (11). É portanto o contraste irônico o que desencadeia a reflexão sobre essa mesma história. A movimentação do burlesco ocorre, assim, no dinamismo da troça, da brincadeira e da galhofa. A diferença induz à comparação e à reflexão crítica entre um e outro tempo. Lembrar D. Sebastião por essa ótica não tem mais o propósito sebastianista. Dessacralizado, ele deixa de ser o messias esperado. O resgate da sua lembrança enfatiza a necessidade de a conquista ser realização de cada um.

Pela leitura da dessacralização do mito, a sua retomada não se subordina à vinda de um salvador. Ao contrário, a desmitificação evidencia a descrença no sebastianismo e a busca de outras formas de salvação. Em lugar de um sentimento épico, aguerrido, há o sentimento lírico, a busca do auto-conhecimento, o percurso na construção da vida, as influências, a conquista de cada uma das etapas da vida (12).

Helena, a conquista amorosa brasileira de Sebastião, "conhecendo algo da lenda desse Rei cuja aura chegara aos sertões brasileiros (1990, 108) (13), insiste nas semelhanças entre o Rei e o amador. A visão dessacralizante do narrador em relação com o mito faz com que o personagem invente "uma teoria completamente burlesca" (idem), justificando a semelhança através da mãe que, durante a gravidez, olhara para o retrato do Rei: "certas mulheres preferem um tipo de homem inatingível, que lhes dê maior margem à fantasia" (idem). Ao tratar o fato histórico ironicamente, o narrador faz reflexão sobre o Portugal de hoje, onde o mito ressurge a cada momento de crise. A relação paródica, que propicia o burlesco entre o Rei e o amador, é criada em torno disso: "por ironia da história, o Rei Virgem passou a ser alvo dos fascínios femininos e, após a sua morte numa derrota ominosa, muito boa gente caíra num masoquismo coletivo que define bem o fraquinho deste país por tudo que seja fracasso, amadorismo e misticismo de pacotilha" (1990, 108). Ao brincar com o mito, o narrador revela a fragilidade desse mito.

O resgate

Ao lado da inflexão irônica há o fantástico, sempre que ocorre, como diz Tzvetan Todorov, a hesitação no leitor, promovida pela ambiguidade: realidade ou sonho?, verdade ou ilusão? (1968, 30). Inicialmente firmada com o estranho nascimento do personagem, essa hesitação é, depois, permeada ao longo do texto através de observações ou fatos e incidentes que ocorrem. Toda a trama que se desenvolve ao longo do relato faz referências ao ocorrido, aqui e ali, mantendo um clima estranho. No caminho da aprendizagem, o nascimento de personagem Sebastião é revestido de mistério. É o narrador que não tem a memória vivida do seu nascimento, tem a memória de oitiva, a daquele acontecimento que conheceu através dos relatos da avó Catarina e, por isso, acreditou "durante muito tempo ter vindo ao mundo de um modo diferente de toda a gente. Foi minha avó - e as avós nunca mentem - quem me meteu esta idéia na cabeça" (1990, 15). Na observação, percebe-se a insinuação que vai promover a ambiguidade necessária ao fantástico, enquanto ocorrência de acontecimentos que parecem sobrenaturais, mas provocam a hesitação do leitor: realidade ou imaginação? O narrador, a partir do que ouviu da avó, alimenta o elemento fantástico: "o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora" (1990, 15); simultaneamente, insinua o contrário: "nunca na vida meu pai desmentiria a sogra, que não lhe perdoava a pobreza" (idem). Assim, o imaginário é o da criança cheia de fantasias a quem, até em adulto, "muitas vezes, hoje mesmo, os sonhos trazem imagens da catástrofe" (1990, 17). É a observação do narrador que promove a desmistificação. A avó Catarina, figura de mistério, poder e magia, "viria a ser decisiva na minha vida. Desde que me disse como nasci, devo tê-la considerado uma deusa tutelar". Influencia no processo criador por ter sido a criadora do inusitado, deusa tutelar, aquela que o fez acreditar na força do relato.

Na fase de reflexão, Sebastião contempla "esta teimosa natureza idêntica a si mesma e indiferente aos homens tão mutáveis. Uma espécie de paz me faz aceitar quem quer que eu seja, como sou, sem mais" (1990, 20). Uma natureza miticamente análoga insinua-se digna, forte, como ao mito de outrora.

O personagem Sebastião é identificado com o Rei, através da astúcia do narrador, mas pelo fantástico, fica "firmado e confirmado a convicção de que eu era Sebastião, o Rei da Roca" (1990, 40). Além do seu perfil físico, como é natural acontecer a quem tem majestade, sabia "mais que a maioria da rapaziada e entendia várias línguas" (idem). A ironia da semelhança com o personagem desfaz-se e a analogia se estabelece através da ação do narrador que revela a sua superioridade ao realizar o texto ficcional.

Gradativamente, a atmosfera do fantástico é alimentada em sutis observações: "Nunca minha avó aceitou a teoria do milagre em relação à preguiçosa aparição da minha voz [...] tendo eu vindo do mar [...] engolira um bicho marinho que me enguiçara as cordas vocais" (1990, 35). Alimenta essa atmosfera ao fazer alusões à história já que, como diz, "não raras vezes falava alto com essa gente imaginária, o que assustava a minha mãe ao dar comigo em grandes conversações com o invisível" (1990, 37). A avó Catarina é o personagem que sustenta o fantástico, sustenta o mito, sustenta a soberania. A avó interpretava os fatos estranhos "como um certíssimo sinal de reencarnação predestinada" (1990, 38).

Algumas crendices populares favorecem o fantástico do texto. Um exemplo é o tentar justificar o comportamento amoroso de Sebastião como resultante da influência da lua. Como conta Sebastião, a "minha mãe fez tudo para me curar do mal da lua [...] livrassem da má madrinha que leva aos labirintos da lascívia" (1990, 40). Ao longo da aprendizagem, até mesmo em algumas investidas amorosas, tal atmosfera persiste: "ela mostrou-se disposta a consentir. Nesse instante ouvi um silvo, e da árvore saiu uma horrenda cabeça de homem com bigode e corpo de serpente. Pronto, pensei, estou tramado" (1990, 50). Algumas conquistas amorosas são assaltadas por ocorrências surreais: "apareceu uma loba com pernas de mulher, o que me transtornou por completo" (1990, 68).

As referências ao Brasil, através de Helena, trazem a idéia do exótico e do esotérico. Entre incrédulo e assustado o personagem-narrador vê, no horóscopo enviado pela brasileira, presságios do seu futuro. Nos caminhos por ela apontados através do mapa astrológico, eis que prevalece "uma espécie de artista" (1990, 114). A atitude dubitativa de Sebastião, "sem totalmente acreditar em messianismos, não exclui, [...] que algo de extraordinário [lhe] esteja destinado" (1990, 112); tal atitude contamina o texto, fortalece a atmosfera do fantástico e deixa a dúvida também para o leitor. Como um "sapato adaptável aos pés mais diversos" (idem) o leitor pode entender as especulações astrológicas também pela perspectiva do escritor: "terá a tentação do desmedido, que perseguirá, se necessário, até ao heroísmo, não pela fama em si mas pela própria empresa" (1990, 113). Também os vaticínios incluem a própria atitude que depois (antes?) toma o narrador: "voltará à superfície o seu lado discreto e dubitativo, e viverá períodos de prolongado retiro" (1990, 114). Pela enunciação, o leitor sabe que isto aconteceu, já que o enunciado é retrospecto do vivido e, pelo desenrolar da trama, vai mostrar a verdade do previsto. Alguns acontecimentos esporádicos vão, passo a passo, alimentando essa atmosfera que fica entre o explicável e o inexplicável: "as cartas a Clara vieram devolvidas com o carimbo de domicílio desconhecido. Que Clara fosse telepaticamente avisada da minha deslealdade, isso não me espantaria" (1990, 115). Essa atmosfera prepara o leitor para a retomada do mito que se realiza através do escritor e torna o rei Sebastião redivivo: aquele que voltou para redimensionar a escrita da ficção. Nessa hipótese, o salvador, o desejado viria não mais para salvar a pátria, mas para salvar a ficção?

A atmosfera do mito resgatado, já numa outra ótica de leitura, envolve todo o texto até mesmo na sugestão do seu aparecimento pela repetição de um mesmo relato, pois "a verdade pode surgir da mentira repetida" (1990, 22). Como acontece na história, igualmente o mito no texto é criado pela repetição. Como conta Sebastião, a "história preferida, e que não me cansava de ouvir, era a daquele Rei com quem me orgulhava de partilhar o nome e que nasceu quatro séculos antes de mim" (1990, 23). O mito é assim reiterado na história, quando o escritor Almeida Faria o toma como tema e também na ficção ao ser reafirmado pela avó Catarina que dizia "que um dia o Rei voltaria, numa certa madrugada, no meio do neblina" (idem).

É no ameaçador mês de agosto da morte do rei, que ocorre o surgimento da figura mítica rediviva. Ficcionalmente, essa passa a ser a data da "morte" do 'amador' para o surgimento do escritor; da transformação do adolescente no adulto: "de nada mais preciso neste dia do meu vigésimo quarto aniversário" (1990, 24). Na sétima parte, onde discute a questão, a sua proposta é de mudança do rumo da sua vida, da escrita. É o destino de Sebastião o enviado, que tem uma missão, agora como escritor. Dá-se a simbiose do mito com a realidade e a metáfora mítica é reforçada. Teria voltado o D. Sebastião transmudado em escritor para mudar os rumos da escrita? O inexplicável começa a explicar-se. Por isso um nascimento tão extraordinário, "as pessoas procuram amenizar o invisível, preenchendo-o de histórias para afugentar assombrações e domesticar as noites temíveis" (1990, 133).

O mito induz à reflexão existencial, "repensar até ao ameaçador mês de agosto, o que fiz e o que não fiz de mim" (1990, 23). Concorre, ainda, para o forjar do imaginário. O sonho é a sua fonte mais rica, mas "não sabe como os sonhos tomam conta de nós, se nos abandonam ou se os abandonamos ao acordar, se fazemos noturnas visitas ou se somos nós os visitados, se são nossas as imagens ou se nos são emprestadas" (1990, 133). Também aí a explicação mistura-se com o mistério. Há os sonhos e há os desenhos do amigo, matérias do imaginário. Para explicar engenho e arte, o caminho ainda é o fantástico ao qual recorre mais uma vez através do mito: "ultimamente aparece-me de noite uma figura nua que podia ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvas, usando na cabeça a mitra dos dignatários e príncipes" (1990, 134). Já aí o mito está transmudado: podia ser o duplo, escritor e rei. Ainda aí, no emprego condicional, abre-se espaço para o leitor. Seria? O personagem-escritor: "aquele Sete-Estrelo me há-de guiar pela vida fora e me há-de defender de morrer cedo" (idem).

O mito revelado retoma o que o povo anuncia: "surgirá por aí um touro enorme, com uma estrela branca entre os cornos. Se alguém o ferir nessa estrela, o rei D. Sebastião há-de aparecer, vindo do fundo do mar" (1990, 133) (14). A lenda, criada pelo povo, realiza-se na ficção: Sebastião nasce do ovo marinho. E a ficção recria o mistério no seu espaço de ambiguidade. Dessacralizando o mito, o narrador explora-o em linguagem. Metaforizando-o, resgata-o para explicar o processo ficcional, consequentemente, a sua aprendizagem como escritor. Ele, agora, seria El Rei redivivo através da escrita? O Sebastião saído do mar estaria confirmando o mito? Pelo seu intrincado mistério "esta história faria as delícias da avó Catarina" (1990, 133).

NOTAS:

(1) Em Portugal, Plêiades ou Sete-Estrelas. No Brasil, Sete-Estrelo, como menciona Almeida Faria. Segundo Câmara Cascudo, a tradição das Plêiades existe entre os índios do Amazonas. No rio Negro, "as Plêiades são chamadas Cyiucé, mãe dos que têm sede" (1954, 822).

(2) Intertextualiza o heterônimo pessoano Ricardo Reis[1923] (1960, 242).

(3) Intertextualiza o heterônimo Álvaro de Campos [1935] (1960, 399).

(4) Da perspectiva da obra, podem ser entendidos como os anos de aprendizagem (4) do próprio produtor no seu mister, como é insinuado na última parte do livro.

(5) "No meu próprio caminho me atravesso/ Não conheço quem fui no que hoje sou" [1931] (1960, 159).

(6) Talvez já como um começo desse recurso, em Cavaleiro Andante, Marta interessava-se particularmente pela música e pela pintura e interrelacionava-as com a literatura.

(7) "Sou diverso do que informe estou"[1931] (1960, 159). Ou "Tudo vale a pena se a alma não é pequena" [1922] (1960, 82) (esse verso último já intertextualizado em Cortes).

(8) O retomar de mitos é assunto recorrente nessas últimas décadas do século XX, desmitificados ou transmudados, como observa Gillo Dorfles (1965, 12).

(9) A propósito da desmitificacão, Gillo Dorfles a justifica como resultante de uma crise do sagrado na nossa época: "dissolução de uma rica ossatura simbólica institucionalizada no passado, mas já decididamente gasta"(1965, 12).

(10) Tal concepção estrutural sugere a intertextualização com "O Desejado", de António Nobre (1902).

(11) Tanto mais que, segundo consta, o rei não gostava de mulheres. Acerca disso, no cordel Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel de Espiñosa Pasteleiro em Madrigal, "achado" por Almeira Faria, há uma estrofe que conta o que a história menciona: "Tomou horror às mulheres/ cujos olhares evitava/ educado pelos padres/ achava-as causa do mal/ que sofria em sua carne/ e o tornava incapaz" (1983b, 77).

(12) Miguel Esteves Cardoso (1982), ao refletir sobre o sebastianismo, considera que ele se manifesta de forma épica em momentos de debilidade histórica.

(13) O mito chega ao Brasil como lenda, passando do fabuloso para a tradição popular. É a camada popular quem lhe dá espaço a ponto de tomá-lo até mesmo em episódios de fanatismo. Câmara Cascudo refere como aconteceu em Pedra Bonita (Pernambuco), onde se sacrificaram crianças para que o seu sangue fizesse ressurgir o Rei (1954, 811).

(14) Tal idéia aproxima-se da lenda do Touro Encantado, do Maranhão do Brasil. Sobre ela, registra Câmara Cascudo: "quem tiver a coragem de ferir o touro na estrela radiante vê-lo-á desencantar-se e aparecer El Rei D. Sebastião. A cidade de S. Luís do Maranhão submergir-se-á, e diante da praia dos Lençois emergirá a Cidade Encantada, onde o rei espera o momento da sua libertação" (1954, 875).

Maria de Lourdes Netto Simões, Doutora em Estudos Portugueses pela U.N.Lisboa. Professora Titular no Dep. de Letras da UESC.

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