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Perdidas Marias num mundo de Joões – Uma leitura da obra de Fernanda Botelho

ABSTRACT: Women have always been harmed by labels imposed by society which classify them into two different categories: (a) the procreator and home administrator one, (b) the sensual one, interested in social position or unable to control her primary instincts. The aim of this article is to analyze Fernanda Botelho’s female characters from novels published up to the 70’s. Her intent seems to be calling people’s attention to the inferior position still occupied by women in contemporary society, when she builds her female characters based on the first category, exaggerating women’s submission.

A actuação da mulher na sociedade sempre esteve comprometida por um preconceito milenar que a rotula como ser inferior. À fêmea cabe assumir dois possíveis papéis: ou é a frágil, a dependente emocional e financeiramente de um macho, a dona de casa, a mãe, a "do lar", ou é a mulher fatal, a traidora, a prostituta, a destruidora de lares, aquela que não consegue controlar os seus instintos mais primários. A segunda versão é, certamente, a preferida e a mais difundida nos meios de comunicação que a veiculam através de programas humorísticos, filmes ou novelas. Fernanda Botelho, no entanto, em seus romances publicados até a década de 70, opta pela primeira versão e deixa transparecer, através da exacerbação de tais características femininas e de um estilo irónico que lhe é bem peculiar, o papel da mulher na sociedade contemporânea. Ainda que passados 25 anos da publicação do seu último livro analisado para este trabalho, Lourenço é Nome de Jogral, o assunto ainda se apresenta bastante atual.

Em Ângulo Raso, Fernanda Botelho trata do conflito campo versus cidade, tantas vezes discutido na literatura portuguesa. Contudo actualiza o tema quando discute, em segunda plana, a questão da mulher diante do casamento. Rosalina, o modelo feminino campesino de O Ângulo Raso, vê o casamento como único propósito da mulher e destaca-se pela submissão, "uma moça decente, discreta" (15), uma mulher incapaz de escrever para o noivo "palavrinhas de amor" (93), uma "Rosalina de louras tranças, a Rosalina que iria perdendo as cores. Os filhos viriam, os filhos de Jonas imberbe viriam, um filho do Senhor Barão, dlim dlão! Bovinamente bela a perspectiva!" (28). Maria Angélica, apesar de independente, de opinião contrária à de Rosalina em relação ao casamento, não consegue esconder o incómodo diante da avó, que a compara com as outras mulheres da família, "mulheres que sempre tinham prezado a honra e que haviam sido tão excelentes mães de família como, antes, moderadas donzelas", e lhe cobra a manutenção da honra "duma família que sempre permanecera dentro dum louvável e honesto equilíbrio" (308-9).

Cláudia, Lúcia Lima e Cristina representam a mulher diante do fracasso do matrimónio. Lúcia, à maneira de Madame Bovary e da queirosiana Luísa, é adúltera, por se sentir só diante das constantes viagens do marido Comandante. Cláudia, apesar de aparentar ser liberal, "duma emancipação de maneira e de pontos de vista que, dentro de certa escala de critério mais divulgado e aceite, poderiam ser considerados como deveras shocking" (260), é revoltada por ter sido abandonada pelo marido e por isso quer se vingar de todos os homens que dela se aproximem. Cristina é rica, tem tudo de material que o dinheiro possa comprar; no entanto, é infeliz por ser rotulada de solteirona.

O casamento como destino social da mulher é a temática principal de Calendário Privado. Às mulheres resta o casamento como única alternativa, uma vez que são "irresponsáveis" (87), "falta-lhes fibra e equilíbrio" e não parece que possam "vir a ser qualquer coisa" (99). Madame Xavier é uma das duas personagens de maior importância na abordagem deste tema em Calendário Privado. Ela se considera intelectualmente inferior, acha que às mulheres "cumpre executar aquilo que os maridos inteligentes mandam fazer" (99), que os homens precisam se divertir e trocar "impressões entre si", pois eles têm muito o que conversar sobre "assuntos de muita responsabilidade" (238). As mulheres não precisam disso, porque são "diferentes: o mundo é assim feito, e está muito bem feito" (238-9). As mulheres têm os filhos que são a sua diversão, sua política, sua ciência e sua profissão (239). Dália Maria não se casa, mas também não consegue sua independência; vive às custas do pai que faz vistas grossas aos seus amantes, que "entram-lhe em casa de dia e de noite." Apesar de ser uma mulher liberada, amante de homens casados, sem pejos para fazer um aborto, quando Anita lhe conta que sua mãe é viúva e nunca quis se casar novamente, ela acha que é errado, pois "uma mulher sozinha,... sobretudo depois que foi casada... Até pode dar em doida!" (50). Tia Guilhermina tem orgulho de não ser solteirona, apesar de ter se casado já velha e com um homem interessado em sua herança. Quando a prima Sofia comentava os deslizes de Artur Peres, dizia: "O que ela tem é raiva por nunca ter casado!" (38). Anita, ex-colega de Dália, num encontro entre as duas após muitos anos sem se verem, tem como único assunto o destino das outras colegas e a sorte ou não de encontrar um marido, bem como a felicidade ou infelicidade nos casamentos.

Os pretendentes de Anita, quando a pedem em casamento, não falam do que ela representa, nem do que seria a vida a dois, mas sim do que eles têm a oferecer. João Amado ressalta: "Tenho trinta e dois anos. Sou saudável e tenho uma profissão que me permite uma existência razoável. Sou... enfim... Creio que não vale a pena falar-te de minhas restantes qualidades. De algumas tens conhecimento pessoal, das restantes poderás ajuizar. Certo? Óptimo? Sendo assim, vês algum inconveniente em casar comigo?" (150).

Costa Beirão também oferece suas vantagens: não ser medíocre, respeitador dos "Dez mandamentos da Lei de Deus" e das tradições que "eram os alicerces da Sociedade (com letra grande), da Família (com letra grande), das Instituições (com letra grande)" (207), além de afirmar: "Sou um homem, garanto-lhe!" Ele diz querer uma mulher inteligente e culta, mas não para que seja independente e sim para que saiba "orientar os filhos, educá-los, tratar deles" e que seja "um exemplo para o marido" (206).

A razão para as mulheres ocuparem posição inferior ao homem vem racionalmente explicitada através de Novaes. Segundo ele, Deus fez o homem e a mulher iguais, os dois eram chamados pelos animais e plantas do paraíso de Bicho-Homem, para não haver diferenciação. Mas logo Deus descobriu que não podia confiar nas mulheres e os diferenciou: fez com que crescesse barba no homem e desprezou a mulher:

"E a mulher, com o desgosto começou a engordar e a ficar feia: gorda e abandalhada! Deus não lhe dera importância, Deus gostava mais do homem do que dela. E a mulher começou a engordar com o desgosto. O homem, a princípio, teve pena dela, mas depois, começou a pensar que, por causa da mulher é que tinha barba e era como os animais. E então, por cada carícia que fazia à mulher, dava-lhe um desgosto a seguir: batia-lhe, dizia-lhe más palavras, atirava-lhe coisas e mordia-a. E o mundo é assim, desde então." (216)

Em A Gata e a Fábula, as mulheres, provenientes de uma aristocracia falida, que faz questão de preservar os seus valores, vêem o casamento como destino, uma imposição social. Maria Alexandra é o exemplo da mulher infeliz, mas resignada diante da sua condição de mulher:

"Menina prendada que fora, aristocrata que era (e continuaria a sê-lo, mau grado as brutalidades do marido, porque a raça estava-lhe no sangue e nele subsistiria até a morte, mesmo além da morte!), decente, e educada para um futuro que se suportaria altamente dignificaste, hei-la presa, com filhos àquele homem bruto, por vezes mau, com mais vícios e defeitos que virtudes e qualidades!" (16)

Maria Alexandra se entrega ao marido por consciência de que, como mulher, tem obrigação de satisfazê-lo. À noite, "com um suspiro tão profundo como a sua dor, rodou o manípulo até que a chamazinha desceu e se extinguiu, engolida e inerme. Contornou, às escuras, a cama e deixou-se cair nela. O marido já a esperava" (40).

O destino de Chiquinha também é apresentado no romance como já traçado: "Mais tarde casar-te-ás, Chiquinha. Mais tarde encontrarás um bruto e habituar-te-ás às lágrimas. Ou encontrarás um homem como o meu cunhado. Seja como for, sofrerás e terás de chorar. Nada disto vale a pena, tudo é como não devia ser ou, se é como deve ser, não tem sentido" (75).

Paula é solteira, muito independente, mas educa a afilhada para o casamento, ensinando-lhe "trabalhinhos de agulha,... rendas e bordados", para que ela seja "uma noiva branca, com flor de laranjeira e véu" , pronta para um "marido dedicado e liberal" (259-60).

Luís Soares, pai de Paula Fernanda, acredita que "seja como for, toda a instrução ministrada a indivíduos do sexo feminino é sempre, quando ultrapassada a cultura primária ou os conhecimentos elementares, um acréscimo, não digo inútil, mas dispensável" (89).

Duarte Henrique é de opinião que o importante para uma moça é encontrar um marido para não haver na família uma solteirona. Nem que para isso tenha de gastar dinheiro com um dote. Sabe que suas irmãs, Isabel e Xandrinha, "casar-se-iam à força, por força do dinheiro paterno; não eram precisamente feias, mas os pretendentes teriam de fazer vista grossa quanto à triste miopia duma e às pernas tortas da outra" (188-89).

Em Xerazade e os Outros, Fernanda Botelho retoma mais uma vez a temática mulher versus casamento. Desta vez, não como destino, mas como única forma de ascensão social da mulher. Maria Luísa considerava seu marido, Carlos Milheiros, a "lâmpada de Aladino" (33), a chance de subir na vida, a sua segurança financeira, mesmo sabendo que o marido a considerava "Um belo animalzinho. De acordo. Um luxo para um homem na [sua] idade" (94). Carlos dizia "pago-lhe bem" (94), para justificar o fato de ter uma mulher bonita ao seu lado, sem que fosse por ela dominado. Ele trocou a ex-mulher por Maria Luísa, porque "Cristina seria menos submissa. Cristina discutiria as instruções que lhe desse — Maria Luísa, não" (97).

Cristina também casou-se com Carlos Milheiros por interesse financeiro. Ela foi "perseverantemente solteirona porque nenhum homem acumulava as qualidades pretendidas..., isto é: saudável, eloquente, belo, generoso, rico, eminente e... inatacável! A Cristina tinha um espírito maravilhosamente comercial" (95).

Ludovina recusa o pedido de casamento de Inácio-dos-móveis, por que esperava encontrar um conde, e se tornar uma condessa. Fininha, a moça da tabacaria, diz que seu "sonho é casar... casar bem, em boas condições".

Em Terra sem Música, na história de Barba Azul e nas discussões com Pitch, Antónia assume a visão masculina no tratamento da psicologia feminina. Na história de Barba Azul, ele pede à senhora-sua-vizinha uma de suas filhas em casamento. A ruiva, obedecendo à tradição de que o matrimónio é o futuro de toda mulher, aceita o pedido, pensando nas "perspectivas económicas", pois ela e a irmã já haviam "organizado um gráfico estatístico da situação financeira antes-entretanto-depois, e devidamente ponderado, ambas, a expressividade da curva ascensional" (229). A história de Barba Azul, homem cruel, que matava as suas esposas para herdar as suas fortunas, agora reaparece numa versão moderna. A mulher, juntamente com suas irmãs, matam-no para ficar com a fortuna. Tal versão é escrita por Antónia, que diz estar tomando uma atitude literária, pois as mulheres são realmente um tema que dá pano para as mangas. São pérfidas, estúpidas e ridículas. De tal modo que os homens, mesmo com toda boa vontade, mesmo quando pretendem encarar as mulheres com toda a simpatia de que são capazes, não escapam ao fascínio duma atitude literária no tratamento do tema (239).

Antónia, instrumento de reflexão sobre a condição feminina em Terra sem Música, considera a mulher "um animal absurdo, pleonástico, metafórico e paradoxal" (240), e tem como bandeira Brel que "compara as mulheres às corças. As mulheres são o primeiro, o mais belo, o pior, o último inimigo do homem. Têm a falsidade da caça que se mostra, se oferece e logo se furta... A corsa engana mais o tédio do que o veado, engana o amante com um outro amante, e o outro amante com o veado" (241-42).

Em Lourenço é Nome de Jogral, a intenção de denúncia é mais evidente. O casamento é visto como uma instituição falida – Lourenço vive com a mulher apenas para manter as aparências, enquanto tem um caso com Matilde, feminista divorciada, e com a namorada de seu filho, de dezassete anos, Maria da Luz. Esta, por sua vez, permite que Lourenço a use para satisfazer suas fantasias sexuais, quando concorda em participar de um relacionamento com Matilde, para agradá-lo. Firmino, amigo de Lourenço, também é divorciado. Através dele, Fernanda Botelho critica a falsa impressão de liberalismo feminino. Para ele,

"A "liberdade" da mulher, aí tens parodiada em todas as revistas eróticas e pornográficas, em cartazes e painéis publicitários, muito funcionalmente sexy, comprometida ao serviço de todas as sociedades de consumo. A ilusão é perfeita. E os soberanos do mundo esfregam as suas mãos de contentes. Enquanto o produto não se descobrir logrado, a rentabilidade está assegurada. Mas, por enquanto, o logro ainda está longe de ser descoberto. O negócio ainda vai desenvolver-se, ampliar-se. E, quando o logro for descoberto, as mulheres terão verificado que a pretensa evolução da sua posição social ficou reduzida ao préstimo, ainda e sempre das suas funções bíblicas, mas agora em edição expurgada." (168)

O mais interessante a ser observado nas personagens femininas de Fernanda Botelho, ou nos comentários sobre elas feitos pelas personagens masculinas ou pelo narrador, é o fato de que a autora não se preocupa em apregoar um ideário de libertação da mulher. Muito pelo contrário, são mulheres conscientes da sua condição e conformadas com o destino que lhes é imposto. Quando existe alguma libertação, como por exemplo o caso de Maria Luísa, de Xerazade e os Outros, o futuro é incerto. A denúncia subtil da situação da mulher na sociedade é sua maior bandeira. A ironia da autora, desvelada na caricatura de seus personagens femininos se, constitui num importante instrumento de estímulo à reflexão, até mesmo por parte dos mais viris leitores.

Embora Fernanda Botelho não se utilize de recursos próprios de uma literatura dita feminina, a exemplo da ousada obra Novas Cartas Portuguesas ou dos poemas "apimentados" de Natália Correia, nem de um feminismo belicoso como o de Betty Friedman, Fernanda Botelho consegue levar os leitores a uma repulsa à conivência, ao desleixo, ao comodismo, à submissão, ao predestinamento da mulher ao casamento e ao papel de mero apêndice masculino. Ela consegue provocar também uma empatia em relação à mulher que quer ser diferente daquela defendida por Lutero, ainda realidade num mundo que evolui mas não deixa de ser um mundo de Joões: uma mulher "piedosa e temente a Deus", "que dá plena satisfação ao seu marido: trabalha o linho, a lã, gosta de servir com as mãos, ganha a vida em sua casa. De manhã, levanta-se cedo. À noite, não atinge as suas faculdades. Limpeza e labor são as suas jóias, os seus adornos" (Palla 1985, 24).


BIBLIOGRAFIA

Botelho, Fernanda (1961), A Gata e a Fábula. Lisboa, Bertrand.

Botelho, Fernanda (1963), Xerazade e os Outros. Lisboa, Bertrand.

Botelho, Fernanda (1969), Terra sem Música. Lisboa, Bertrand.

Botelho, Fernanda (1971), O Ângulo Raso. Lisboa, Bertrand.

Botelho, Fernanda (1971), Lourenço é nome de Jogral. Lisboa, Bertrand.

Botelho, Fernanda (1973), Calendário Privado. Lisboa, Bertrand.

Palla, Maria Antónia (1985), O Essencial sobre a condição feminina. Lisboa: Imprensa Nacional.

Regina Helena Machado Aquino Corrêa, UNIOESTE - Campus de Toledo

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