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José Saramago: O Labirinto de Todos os Nomes

Como devem ser duros os caminhos
quando a gente só pensa na volta


(Guimarães Rosa)

Em Todos os Nomes (1997), José Saramago consegue mais uma proeza literária. Seu mais recente romance publicado no Brasil, retoma o tema da problemática do humano, da vida e da morte. Retoma, não no sentido de continuidade, mas de desdobramento. Inventa mais uma grande metáfora, mais um labirinto de dimensões mitológicas, mais um desafio à decodificação de símbolos.

Em seu romance anterior, Ensaio sobre a Cegueira, de 1995, uma estranha epidemia de cegueira atinge quase todos os habitantes de uma cidade, levando-os a seguir uma lógica perversa e ininteligível. Numa visão apocalíptica, Saramago lança uma longa interrogação sobre a ética e a razão, sobre a precariedade da condição humana.

Os dois romances se assemelham pela ausência de nomes próprios de suas personagens. Em Todos os Nomes, porém, há uma exceção: o protagonista, Sr. José. As demais personagens são identificadas por perífrases ("a senhora do rés-do-chão", a mãe da criança", "o marido ciumento", "o pastor de ovelhas", etc.).

Esse recurso narrativo usado pelo autor reforça a universalidade do tema: sem nome próprio a personagem se universaliza, isto é, abrange todo o universo humano, todas as pessoas, todos os nomes. Ao contrário, ao atribuir nome próprio à(s) personagem(ns), torna-a(s) única(s), individualizada(s).

É o caso, por exemplo, de A Jangada de Pedra (1986), onde "o próprio romance, através de seus personagens, esclarece o sentido de seus próprios sobrenomes" (FARINA, 1996, p. 211): Joana Carda, Joaquim Sassa, José Anaiço, Pedro Orce, Maria Guavaira.

Outro exemplo está em Memorial do Convento (1982), que encadeia a história da construção de um convento em Mafra (Portugal), no século XVIII, com a história das famílias Sete-Sóis e Sete-Luas (Baltasar Mateus e Blimunda), e mais o padre Bartolomeu de Gusmão, o "padre voador" e o compositor Scarlatti. A competência e a criatividade de Saramago ao encadear essas duas histórias (recurso narrativo utilizado também em História do Cerco de Lisboa, de 1989, conduz à citação de inúmeros nomes próprios da História, inclusive. Em um dos momentos do romance, ao descrever detalhadamente a procissão que "iria justiçar a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros" (p. 50), levados à fogueira pela Inquisição, Saramago, ao nomeá-los, reflete: "quem sabe que outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é nada (...)" (p. 52).

Uma curiosidade em Todos os Nomes é que, além do nome do protagonista, só existem mais três nomes próprios: Conservatória Geral do Registo Civil, Cemitério Geral e Ariadne ("o físico" X "o metafísico"?, "presente X "passado"?, "viagem" X "busca"?, respectivamente). Tentaremos, mais adiante, uma breve análise e interpretação dessas interrogações.

Estilo renovado, suntuoso e "esférico", texto denso, ruptura na sintaxe, falta de pontuação nos diálogos, discurso direto ligado ao indireto, muitas metáforas – "A metáfora sempre foi a melhor forma de explicar as coisas" (p. 267) -, são algumas características desse escritor português, que nos induz à procura do sujeito do verbo num mar de complementos, conduzindo-nos a uma fascinante ginástica visual, ao mesmo tempo rítmica e melódica.

Saramago, quando "conta uma história", instrumentaliza e rege a palavra de forma mágica. É como um maestro-mágico regendo uma orquestra. Quando dá nome próprio às personagens, sabe carregá-las de significantes que, decodificados, por si só já se definem e nos desafiam a "belos momentos de pesquisa" (FARINA, 1996, p. 212).

Sobre seu estilo, o próprio Saramago define como um momento "dos mais belos de sua vida de escritor". Quando escrevia Levantado do Chão (1982), seu primeiro sucesso editorial, na forma de um texto convencional, ele conta: "Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pausas". E complementa: "Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa mágica do conto oral. (...) O que eu quero é que o leitor ouça... ouça aquilo que está no livro" (ZERO HORA, 1998).

Todos os Nomes inicia com uma descrição pormenorizada do espaço físico e da estrutura funcional de uma hipotética Conservatória Geral do Registo Civil, onde, há vinte e seis anos, o Sr. José é um simples e exemplar auxiliar de escrita, que cumpre com extrema dedicação suas tarefas sem jamais reclamar: nunca falta, nunca fica doente, nunca desobedece às ordens de seus superiores. É nesse ambiente dos arquivos dos vivos e dos mortos que o Sr. José emprega disciplinarmente a maior parte do seu tempo.

Homem de cinquenta anos, ele vive só numa, casa simples, conjugada ao prédio da Conservatória, graças aos desígnios da burocracia. Não se trata, porém, de nenhum privilégio. Há "muitos séculos atrás, os funcionários residiam na Conservatória Geral, (...) numas vivendas simples e rústicas, construídas no exterior, ao longo das paredes laterais (...). As casas dispunham de duas portas, a porta normal, que dava para a rua, e uma porta complementar, discreta, quase invisível, que comunicava com a grande nave dos arquivos", condição tida como beneficiária "para o bom funcionamento dos serviços" (p. 21). Mais duas vantagens incluíam-se neste caso: não haveria desculpas para atrasos devidos a deslocamentos e facilitava a inspeção dos funcionários que comunicavam estar doentes.

Com o tempo e a necessidade de uma reforma urbanística no bairro, as casas geminadas à Conservatória foram derrubadas, "com exceção de uma, que as autoridades competentes decidiram conservar como documento arquitectónico de uma época e como recordação de um sistema de trabalho" (p. 21). Foi meramente o acaso, e não algum privilégio ou castigo, que fez com que o Sr. José continuasse morando junto à Conservatória Geral. E, para eliminar qualquer dúvida, ordenaram ao auxiliar de caixa que fechasse à chave a porta que se comunicava com a Conservatória, proibindo sua passagem. Teria que, como as demais pessoas, entrar e sair pela entrada principal do prédio.

Apesar do rigor disciplinar no trabalho, o Sr. José, nas poucas horas de folga, tem uma única distração: colecionar recortes de jornais com notícias e imagens das cem maiores celebridades nacionais, independentemente da ação ou fato que as tivesse conduzido à fama. Bastava serem notícia e serem célebres. Sua coleção, na verdade, excedia a cem, mas, assim "como o autor das antologias e de elegias e sonetos", o Sr. José achava-se no direito de estabelecer "uma fronteira, um limite" (p. 29).

Para realizar essa secreta extravagância, o auxiliar de escrita ignora a proibição de abrir a porta de sua casa que se comunica com a Conservatória e, durante a noite, lança-se a uma obsessiva busca, onde no passado, um pesquisador de heráldica perdeu-se por vários dias.

O episódio fez com que o Chefe da Conservatória Geral baixasse "uma ordem de serviço que determinava, sob pena de multa e suspensão de salário, a obrigatoriedade do uso do fio de Ariadne para quem tivesse de ir ao arquivo dos mortos" (p. 15).

O desleixo relativo ao arquivo dos mortos, que ficava ao fundo, numa das cinco estantes "ciclópicas" existentes na Conservatória, a poeira, a escuridão e o medo de ser descoberto causavam pânico no Sr. José, agravado pela sua fobia por alturas quando tinha que alcançar um documento nas prateleiras mais altas.

Certa noite, durante uma de suas pesquisas, cai-lhe nas mãos, por acaso, o verbete de uma mulher de trinta e seis anos, onde "constam dois averbamentos, um de casamento, outro de divórcio" (p. 37).

Esse segundo acaso na vida do Sr. José, ao contrário do primeiro, o da casa em que vive, o faz presa de um impulso incontrolável, tira-lhe o sono e o faz perseguir no "labirinto confuso da sua cabeça sem metafísica o rasto dos motivos que o tinham levado a copiar o verbete da mulher desconhecida" (p. 39).

Ao decidir investigar a vida da mulher, abandona sua coleção de celebridades e lança-se numa aventura frenética, como um detetive às avessas e, munido de uma falsa credencial, parte rumo à investigação.

Seu roteiro de busca começa pelo endereço que consta na certidão de nascimento da mulher. Mal sucedido nessa primeira tentativa, indaga os vizinhos sobre o possível paradeiro da antiga moradora. Chega até a madrinha da desconhecida, "a senhora do rés-do-chão", que lhe sugere o óbvio: procurar na lista telefônica.

Situações insólitas, transgressões, encontros e desencontros sucedem no caminho de busca do viajante solitário, Sr. José. Percorre quatro grandes espaços: a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério. Ou labirintos. No último, constata que o objeto que o levou à tamanha transformação não existe. A mulher desconhecida está morta. Suicidara-se poucos dias antes.

De certo modo, a vida desse funcionário público é comparável à de Raimundo Silva (aliás, Benvindo Raimundo Silva, que, por não gostar do seu primeiro nome, omite-o), revisor de textos, personagem da História do Cerco de Lisboa (1989). Têm mais ou menos a mesma idade, são solteiros, dedicados ao trabalho e vivem franciscanamente. O impulso que os leva à ação transgressora é semelhante. O revisor decide acrescentar um "não" à História do cerco, permitindo-se tornar escritor, fazendo subir "o sapateiro acima da chinela" (p. 14); deixa de pintar o cabelo e diz sim ao amor de Maria Sara. Já o auxiliar de escrita decide averiguar o verbete de uma mulher desconhecida (a busca da "sua Maria Sara"?), rompendo com toda a rigorosa obediência às normas da Conservatória, deixa a barba por fazer, descuida-se da limpeza do seu quarto e diz sim a um possível amor imaginário e irreal na sua essência, como uma das celebridades de sua coleção.

O medo e o sentimento de culpa atingem a ambos. Raimundo Silva sente-se "mais cercado do que Lisboa esteve alguma vez" (p. 7); o Sr. José reconhece: "É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida" (p. 83). Um impulso incontrolável? Necessidade de aventura? De justificar a própria existência?

Na trajetória do Sr. José, os quatro grandes espaços por ele percorridos – a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério – estão inseridos num cenário de chuva, nevoeiro e escuridão. No plano simbólico, a chuva, originária das nuvens pesadas e das tempestades, apresenta a dupla significação de fertilização espiritual e material; o nevoeiro é o símbolo do indeterminado, do nebuloso, do transitório; a escuridão se apresenta como símbolo de obscuridade, de ocultamento, semelhante à noite, tempo das gestações, das germinações, das conspirações e, ao mesmo tempo, imagem do inconsciente (no sono da noite, onde se misturam pesadelos e monstros, o inconsciente se liberta), preparação do dia, de onde virá a luz.

A Conservatória do Registo Civil é pouco iluminada, e o arquivo dos mortos é um grande labirinto escuro. O Sr. José tem de usar o fio de Ariadne, como todos os funcionários, e sente vertigens quando no alto de uma escada.

Em sua casa, anexa à Conservatória, o Sr. José se lança a reflexões e dialoga com o teto, o controle de sua consciência, do ponto de vista psicanalítico. De volta ao cemitério, após constatar que a mulher desconhecida estava morta, o solitário auxiliar adormeceu, teve um "sonho estranho, enigmático" (p. 245). Acordou "angustiado, alagado de suor" (p. 246) e, por "medo que o sonho regressasse", ficou "deitado de costas, olhando o tecto, à espera de que lhe perguntasse, Por que estás tu a olhar para mim" (p. 246). E, mais adiante: (o tecto) "Creio ter-te alguma vez que os tectos das casas são o olho múltiplo de Deus" (p. 248).

Chove constantemente quando ele percorre as ruas da cidade durante a noite. Numa dessas noites invade uma escola, à procura dos boletins escolares da mulher desconhecida: "olhou para dentro das salas a que a difusa luz exterior dava um ar fantasmático, onde as carteiras dos alunos pareciam túmulos alinhados, onde a mesa do professor era como um sombrio espaço de sacrifício, e o quadro negro o lugar onde se faziam as contas de todos" (p. 96).

No cemitério, o maior dos labirintos, o Sr. José caminha por longas horas em sua solitária busca. Ao anoitecer, "apesar de saber que irá ter medo muitas vezes" (p. 234), adormece embaixo de uma oliveira (símbolo de paz, fecundidade, purificação, força, vitória e recompensa – "árvore abençoada"), cujo "tronco foi-se-lhe abrindo todo de um lado, de alto a baixo, como um berço que tivesse sido posto de pé para ocupar menos espaço" (p. 236). Adormece, desta vez, tendo como "tecto" a copa da oliveira. Ao acordar, já dia claro e ensolarado, dirige-se ao túmulo da mulher desconhecida e encontra um pastor de ovelhas, que frequenta o cemitério e troca os números das sepulturas. Profanação? Para estabelecer o caos? O pastor explica: "Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, estas aqui, (...) ficaram definitivamente livres de importunações" p. 241).

Voltando à Conservatória Geral e, consequentemente, à sua rotina, constata a cumplicidade do Conservador Geral às suas aventuras e recebe a chave que permite seu livre acesso ao grande prédio. Pega a sua lanterna, ata o fio de Ariadne ao tornozelo e dirige-se para a escuridão. Quem sabe, à procura de outros Minotauros. Em uma decisão recente, o Conservador ordenou aos funcionários a junção dos arquivos dos mortos e dos vivos, sem qualquer distinção.

A imagem do labirinto impõe-se em toda a narrativa desse novo romance de Saramago. A própria leitura do texto é comparável a um labirinto. "Por cima da moldura da porta" (p. 11) (da Conservatória Geral), são as palavras iniciais de Todos os Nomes. E, mais adiante: "Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro de papel velho." (p. 11). Detalhes, muitos detalhes descritivos que, lentamente, chegam às aventuras do Sr. José, de toda sua busca alucinada, de todo o desenrolar do "fio de Ariadne". De toda a sua transformação. Sem medo da escuridão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

FARINA, Sérgio. Estatuto poético: uma proposta metodológica de leitura analítica e interpretativa. Tese (DOUTORADO) – PUCRS. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1996.

MACHADO, José Leon (1997). «Todos os Nomes de José Saramago», in Letras & Letras, página da Internet no endereço http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/crit017.htm.

MENDES, Armando. Uma ficção feita com acasos e sonoridade. Zero Hora, Porto Alegre, 28 dez. 1998. Segundo Caderno, Literatura, p. 7.

SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 18ª ed. Bertrand Brasil, 1996.

SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Maria José Rodrigues de Oliveira – Porto Alegre, Julho de 1998

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