Saramago e a Geração dos Cravos
Prêmio Nobel de Literatura/ 1998, José Saramago, nascido em 1922, diferentemente da sua geração, começa a escrever tardiamente. Nem por isso é menor a recepção a sua obra. Saramago é considerado dos escritores portugueses contemporâneos de maior referência e sucesso junto a leitores não só do seu país, mas especialmente estrangeiros (particularmente, brasileiros). A sua produção distancia-se, no tempo, da dos seus contemporâneos (refiro-me à geração cronológica), autores de importância literária que vem dos anos 50, como Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena, Augusto Abelaira, José Cardoso Pires, Herberto Helder, Urbano Tavares Rodrigues.
Até chegar profissionalmente a escritor, Saramago vive diversas experiências, dentre elas a de jornalista, quando escreve crônicas (Deste Mundo e do Outro, 1971 ou A bagagem do Viajante, 1973), onde já manifesta a sua preocupação com o social, a atenção a personagens do cotidiano, aspectos esses já anunciadores do romancista que, mais tarde, se revelaria. Antes, porém, faz incursões na poesia (O Ano de 1993, em 1975, por exemplo), onde privilegia temática e estratégias discursivas posteriormente tomadas na sua experiência ficcional. Inicia a sua atividade como romancista bem depois (aos 55 anos), com Manual de Pintura e Caligrafia (1977), livro que pode ser lido pela perspectiva da autobiografia..
Envolvido com a vida política de Portugal, comunista contumaz, depois de 1974, exerce militância em compasso com a Revolução dos Cravos. Podemos dizer que Saramago situa-se literariamente ao lado daqueles que vivenciaram a revolução e, depois, ficcionalizaram as suas vivências: guerra colonial, embates agrários, repressão salazarista, processo de liberação da mulher, censura. Geração que sucede àqueles autores que vêm dos anos 50, essa suplementa aquela no que se refere aos processos ficcionais inovadores e tem, antes de tudo, o mérito de ter sido mentora intelectual da revolução portuguesa que fez do 25 de Abril, marco da libertação de 46 anos de ditadura em Portugal.
Além de José Saramago, representam a Geração de Abril: Antônio Lobo Antunes, Almeida Faria, Álvaro Guerra, Baptista-Bastos, Eduarda Dionísio, João de Melo, Lídia Jorge, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno, Nuno Bragança, Olga Gonçalves, Teolinda Gersão, dentre outros.
É importante lembrar que o período revolucionário dos Cravos tem início com as conturbações dos anos sessenta; passa pela eclosão do 25 de Abril de 1974 e chega a uma fase vista como de repercussão do processo revolucionário, de abertura político-social, que cobre toda a década seguinte. Na relação com o contexto social, essa narrativa ficcional é, por um lado, impulsionada pelas circunstâncias históricas e, por outro lado, é impulsionadora da reflexão crítica sobre o processo revolucionário.
A inibição da fala, imposta pela ditadura salazarista, desde 1928, recrudesce nos anos sessenta, época de gestação da revolução de Abril. Sobre isso, Eduarda Dionísio, da mesma geração literária de Saramago, diz em Retrato Dum Amigo Enquanto Falo: Falava-se então muito baixo. Sabes como era: os ouvidos do ditador poderiam estar perto e esconder-se nos cafés em pernas de cadeiras, em jornais, em anéis, em copos de água. Eram os tentáculos dum monstro - dizia-se (1979, 20). Oliveira Salazar impunha um clima de medo; a sua mão parava o vento da mudança e espalhava a areia negra do medo, apertava em torno das casas a mordaça do silêncio, a sua mão castradora retirava ao povo a força da revolta, observa Teolinda Gersão, em Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982, 66). Conforme considera Saramago em Ano da Morte de Ricardo Reis, através do seu personagem Fernando Pessoa, Oliveira Salazar era o ditador português, o protetor, o pai, o professor o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião (1984, 278), que mandou por quarenta anos.
Em 1973, nas Forças Armadas, os capitães intensificam o movimento de insatisfação. A publicação do livro do general Antônio de Spínola, Portugal e o Futuro, em 1974, é o estopim esperado para acontecer o 25 de Abril. Marcelo Caetano (sucessor de Salazar) rende-se ao Movimento das Forças Armadas. O apoio popular é entusiástico e incondicional, como observa Saramago, em Manual de Pintura e Caligrafia: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo (1977, 315).
Nos primeiros momentos, constata-se frustrada a expectativa pelas obras literárias que se pressupunham engavetadas. Da sua inexpressiva quantidade em relação ao expectado, porém, gera a reflexão de ter a censura, durante o fascismo, assumido formas impeditivas e castradoras, já que não se limitou a vetar as publicações, mas inibiu o ímpeto criador. No que existe, são observados já alguns aspectos de nova inventiva do discurso, dentre eles, a transgressão nos limites dos gêneros, quando ficção e poesia se imbricam, a exemplo de O Ano de 1993 (poesia, 1975), de Saramago.
Nesses anos, o comportamento social sintomaticamente sofre mudanças. As pessoas tornam-se mais ousadas e reivindicativas. Saramago, que viveu no Alentejo (palco das lutas agrárias) em 1976, conta em Levantados do Chão, que então num sítio qualquer do latifúndio, a história lembrar-se-á de dizer qual, os trabalhadores ocuparam uma terra. Para terem trabalho, nada mais (1980, 361). Vale observar que esse livro inaugura a notoriedade do ganhador do Nobel/ 98; o tema que nele aborda (a luta contra a opressão) é reincidente na sua obra por vários focos, em problematização da própria História (aspecto central da obra), buscando a sua revisão, o repensar fatos, personagens, espaços à luz do tempo contemporâneo.
Transcorrem as negociações para a descolonização. Primeiro Guiné; a seguir, as demais colônias Cabo Verde, Moçambique; Angola é a última. Comenta uma personagem de Almeida Faria, em Cavaleiro Andante, que milhares de portugueses pobres foram para lá enganados por quem lhes garantia que Angola era nossa (1983, 256). Afinal, o acordo é celebrado a 15 de Janeiro de 1975. Portugal começa a receber de volta seus colonos, os retornados. Afigura-se uma descolonização sem critérios. Famílias inteiras que retornam não têm onde morar. Os ex-combatentes voltam às suas famílias, muitos mutilados, outros cheios de conflitos psicológicos: longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui (1979, 226), como revela Lobo Antunes, em Os Cus de Judas. A perda das colônias, e o mal resolvido problema da descolonização, desencadeia nas pessoas uma crise de identidade, e desencadeará, na ficção, a temática da busca da identidade.
Uma consciência retrospectiva é revelada através do significativo crescimento do volume editorial da ficção até 1985. Essa expressão tardia das vivências da ditadura suscita uma reflexão de Maria Velho da Costa sobre o tempo necessário à maturação criadora, revelada em Lúcialima (1983), quando toma o pensamento de Júlio Pomar como epígrafe, assinalando: Entre o ver e as palavras entrepõe-se o vivido. Mas o ver tem um tempo que só pode ser o presente; as palavras, essas, escravas do vivido, nascem sempre de um depois (1983, 7).
Muda o foco do poder, que passa a ser político e econômico. A possibilidade da entrada de Portugal na Comunidade Econômica Européia - CEE divide a opinião dos portugueses entre o que chamam de portugalidade e de europeidade. Uma possibilidade de entendimento da questão é aquela dos que optam pela iberização; por essa ótica política é possível ler A Jangada de Pedra, de José Saramago: sou ibérico, e tenho dito, expirou. Sabia este rapaz o que queria, ou julgava sabê-lo (1986, 166).
Com o passar dos anos, o olhar ficcional voltado para o tempo vivenciado vai-se gradativamente alterando e toma novas cores, novos tons, à proporção que a revolução vai, por sua vez, avançando em ganhos ou frustrações. Nesses novos tempos, a ficção busca a pátria e o sentido da identidade. A revisão dos mitos da lusitanidade ou dos mitos históricos que sustentam a identidade política e social do português constituem-se matéria ficcional.
Das formas de ver o mundo, assim, decorrem as perspectivas que caracterizam as recentes tendências: decorrente dos procedimentos metafóricos, os caminhos do insólito se relacionam com o realismo mágico, a alegoria, a paródia e exigem nova organização da sintaxe, onde a verosimilhança textual recebe tratamento de relevo; pelo romance-reportagem, na retomada do fio narrativo (ao contrário da fragmentação tão marcante nos anos 60) em ênfase do aspecto documental da ficção.
A tendência para o realismo-mágico à Borges ou mesmo à Garcia Marques, manifestada já em 1975 (com Saramago), cresce em adeptos nos anos que seguem e aproxima alguns desses novos ficcionistas dos latino-americanos. Quando José Saramago, depois de publicar O ano de 1993 (1975), lança O Memorial do Convento (1982), a seguir O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) e Jangada de Pedra (1986), ele confirma a sua tendência discursiva e o seu laço com a história. É ainda na direção do realismo-mágico latino-americano, que Lídia Jorge, em O Dia dos Prodígios (1980), fala da expectativa da revolução através de personagens que lidam com o destino; e, alegoricamente, em Cais das Merendas (1982) discute a questão da identidade cultural.
O caráter metafórico, por exemplo, de Casas Pardas (1977) e Lúcialima (1983) de Maria Velho da Costa, ou a parábola de Notícia da Cidade Silvestre (1984), de Lídia Jorge, ou ainda o kitsch de Portuguex (1977), de Armando Silva Carvalho, o folhetinesco de O que diz Molero (1977), de Diniz Machado e a urdidura do fio narrativo em romance-reportagem, ficção/documento de Autópsia de um mar em ruínas (1977), de João de Melo, ou de Nó Cego (1982), de Carlos Vale Ferraz são, ainda, expressões dessa tendência.
Ainda, há a transgressão das formas autobiográficas, da qual Mário Cláudio é exemplo com Amadeo, (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1989); o tom é o da memória, da biografia, entretanto diverge deles por ser, aparentemente, um texto usurpador na medida em que o narrador toma, como sua, a identidade do biografado. O diário, a crônica, as memórias constituem-se o outro lado dessa postura ficcional que se impõe. São formas desenvolvidas, inclusive, por Saramago que escreve, desde 1993 (quando passou a residir nas ilha Canárias de Lanzarote), o diário Cadernos de Lanzarote, já agora em seu V volume, recentemente lançado, no último 14 de outubro.
Passado o boom temático (1980-1984) da Geração de Abril, alguns ficcionistas reincidem em temas relacionados ainda com a revolução, com textos singulares. Num mesmo tempo histórico (que é o do momento-vida do autor e o da revolução) entrecruza-se o tempo ficcional em escrita que antevê a história, escrita que é memória e, ainda, escrita que é um acontecer simultâneo com a história. Revela, também por esse tratamento, um certo caráter documental (enquanto desdobramento da realidade no jogo ficcional) e auto-reflexivo dessa ficção. Por esse viés da história, Saramago reafirma a tendência de livros anteriores, somando a eles História do Cerco de Lisboa (1989).
Os ecos da revolução são sentidos através de um imaginário já agora amadurecido na forma que o distanciamento permite. A questão da crise da identidade, antes fundada no nacionalismo (perda das colônias), com a derrubada das fronteiras nacionais pela Comunidade Econômica Européia, passa a calcar-se no transnacionalismo (perda das fronteiras). Na proximidade do novo milênio, com uma ponta de irônica nostalgia, observa Diogo, personagem de Baptista-Bastos, em Um Homem Parado no Inverno: Estamos quase no final do século e ainda falamos dos Descobrimentos. Que monotonia! [...] Salazar ainda nos deu a oportunidade de sermos quem não somos (1991, 47).
Nesse aprofundamento das preocupações com a recuperação da identidade, chega-se à dessacralização dos mitos. É o que faz Lobo Antunes, ao escrever As Naus (1988), quando, falando dos retornados, retoma e desglorifica os heróis de Camões. Ou Almeida Faria, em O Conquistador (1990), quando parodia o mito do D. Sebastião. Ainda, Saramago, quando, ultrapassando mitos nacionais, aborda mito e religião mais sagrados, no polemizado livro Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), discutindo sentido de culpa, questões éticas e morais e a relação com Deus.
A ficção da atualidade dissolve a fronteira entre realismo e fantasia; para além de nacionalismos, o espaço que distingue os ficcionistas é o da imaginação e o da palavra. Os textos que abrem a década de noventa tendem a ser mais curtos, buscando a rapidez dos tempos, onde a intertextualidade e a ironia favorecem uma linguagem mais leve e comunicativa.
Os últimos livros de Saramago, especialmente Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997), embora abordando temas graves e metafísicos, trazem o que esse escritor considera uma espécie de ressimplificação dos processos ficcionais. Segundo ele próprio declara em entrevista com Carlos Reis (publicada no JL, de Lisboa em 14 de outubro passado), em relação ao seu fazer ficcional: hoje verifico que há em mim como que uma recusa de qualquer coisa que eu me divertia, que era essa espécie de barroquismo, qualquer coisa que eu não levava, mas que de certo modo me levava a mim; e estou a assistir [...] a uma necessidade de maior clareza (1998, 16).
Assim, destaque da Geração dos Cravos, tematizando as suas questões, José Saramago o faz de forma singular e própria. Na mesma entrevista acima referida, falando da sua obra, ele diz: o que há ali são livros em que eu, como cidadão, como pessoa que sou, diante do tempo, diante da morte, diante do amor, diante da idéia de Deus existente ou não, diante de coisas que são fundamentais (e continuarão a ser fundamentais), procuro colocar o conjunto de dúvidas, de inquietações e de interrogações que me acompanham (1998, 17).
De modo geral, podemos dizer que parece haver, de uma ou outra forma, uma matafísica nos seus livros, traduzida, inclusive, na problematização da verdade e indagação do outro (presente, principalmente, em Manual de Pintura e Caligrafia, Ano da Morte de Ricardo Reis, Jangada de Pedra e Todos os Nomes). Pelo questionamento incessante das suas personagens sobre o que buscam, Saramago chega a admitir poderem elas ser alther egos do autor.
Por tudo quanto escreveu e como escreveu, a justiça do prêmio Nobel a José Saramago é devida e justificada. Afora a regularidade da sua produção, a maneira singular de transformar o comum em essencial, no que tange ao mais profundo, dramático e impronunciável do ser humano; a provocadora e instigante forma de repensar a história e de projetar o futuro, fazem-no merecedor do prêmio - o primeiro concedido a um escritor de Língua Portuguesa.
(Ensaio publicado em A Tarde Cultural. Salvador, 5 de Dezembro de 1998.)
Maria de Lourdes Netto Simões