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Romance histórico, ficção histórica

I

Antes de mais, e para não me arrogar uma qualidade que não é a minha, devo esclarecer que não sou, propriamente, um especialista do chamado romance histórico. Não o sou nem como teórico, nem como criativo. Até hoje, publiquei sete romances e um livro de contos e desses oito títulos apenas três (A Voz dos Deuses, O Trono do Altíssimo e A Hora de Sertório) têm uma temática e um enquadramento históricos.

Feita esta advertência, acrescento porém: é verdade que sinto – e isto desde os bancos da escola primária – um grande interesse pela História. E é verdade, também, que em todos os meus romances, incluindo aqueles cuja acção decorre na actualidade, há, se me é permitida a expressão, uma... «consciência histórica». Ela pode não ser imediatamente perceptível (é o caso, penso, de O Homem sem Nome, por exemplo), contudo não deixou de estar presente durante o processo de escrita e isto de uma forma não inteiramente consciente nem deliberada (mesmo porque o próprio processo criativo de escrita não é totalmente consciente nem deliberado). Assim, essa consciência histórica de que falei será antes de mais uma atitude pessoal, um enquadramento mental.

II

«Romance histórico, ficção histórica»: o simples enunciado deste tema, que me foi proposto e que eu aceitei gostosamente, parece indicar já uma distinção antagónica entre dois conceitos. Pergunto-me, hoje, se haverá um verdadeiro interesse e até uma verdadeira justificação para estabelecer tal distinção. Se não estaremos, afinal, a complicar inutilmente o que é simples.

Eu próprio terei talvez culpas nesse cartório: recordo-me vagamente de haver dito, numa entrevista, que escrevo ficção histórica em vez de romance histórico... julgo que o fiz, confesso-o agora, para me demarcar um pouco de um género muito em voga em certos países mas não em Portugal: um género de romance essencialmente «comercial», quase de produção em série, em que o enquadramento histórico é acima de tudo um condimento, ou um argumento de venda, por corresponder a um certo gosto superficial do público e em que, no fundo, não há uma real diferença qualitativa entre enquadramento histórico e enquadramento romântico ou policial. O chamado «romance de capa e espada» é disso um bom exemplo, se bem que não o único.

Devo intercalar aqui um esclarecimento importante. Esta menção a um «género comercial» é puramente objectiva, isto é, não é crítica e ainda menos pejorativa. Na realidade, a grande distinção, a distinção importante que deve ser feita é a que existe entre bons e maus romances, bem escritos ou mal escritos, bem arquitectados ou mal arquitectados. As outras distinções são, regra geral, muito mais subjectivas, muito mais discutíveis e muito menos inocentes.

De resto, se por «comercial» se entende um romance que seduz o leitor e o envolve e o «arrasta», então penso que todos os romances deveriam ser comerciais... não é essa, evidentemente, a concepção correcta do termo «comercial», embora ela seja adoptada por alguns meios intelectuais. Mas, mesmo entre os romances que, sem risco de inexactidão, podemos considerar comerciais, há vários casos de boa qualidade literária. Cito apenas um, aliás pouco conhecido em Portugal: o de Robert van Gulik, que escreveu toda uma série de romances em que, curiosamente, combina um enquadramento histórico – a China do séc. VII d.C. – com o género policial.

Mas, retomando o fio à meada: esse género de romance de enquadramento histórico em que os acontecimentos e até por vezes as personagens históricas pouco ou nada intervêm afinal, não tem grandes tradições no nosso País – de momento, o único exemplo português que me ocorre e que se aproxima um pouco desse género é o de António de Campos Júnior. Portanto, repito o que atrás disse: na altura em que declarei preferir a «ficção histórica» ao «romance histórico», eu pretendi demarcar-me deste género a que aludi e isto por uma razão essencial: de facto, os romances históricos que escrevi até hoje são diferentes.

Não direi que são diferentes ou melhores em termos de qualidade ou seriedade, pois não me compete, a mim, fazer tal juízo. Mas são diferentes na estrutura e na intenção. O que nos conduz ao ponto seguinte desta minha breve intervenção: uma tentativa de abordar o que é, de facto, o romance histórico português.

Penso, efectivamente, que podemos falar de um romance histórico português, não isento, claro está, de fortes influências exteriores, mas com traços que lhe são próprios. Entretanto, antes mesmo de referir, ou de sugerir, esses traços de caracterização, vamos procurar resolver a questão – se é que ela existe... – de romance histórico versus ficção histórica.

Como disse há pouco, suspeito que podemos estar a complicar o que é, no fundo, muito simples: a ficção, na sua acepção mais geral, inclui o romance, o conto, a novela e mesmo a obra dramática, nas suas vertentes teatral, cinematográfica e televisiva. Portanto, neste sentido – que me parece, reflexão feita, ser o único verdadeiramente adequado – o romance histórico está, digamos, contido na ficção histórica.

Tentemos agora uma aproximação àquilo a que chamei o «romance histórico português», ou seja: tentemos estabelecer, ainda que grosso modo, os seus traços distintivos. Evidentemente, o que apresento a seguir é uma interpretação, ou uma leitura, subjectiva e como tal passível de contestação. Mas julgo, sinceramente, não andar longe da verdade...

1 – Assim, penso ser legítimo dizer que, seja inconscientemente seja de forma deliberada, há no nosso romance histórico uma intencionalidade. Por outras palavras, ele não é «inocente».

Essa intencionalidade refere-se a uma chamada da atenção dos leitores para a nossa identidade como Portugueses. Não se trata necessariamente de formular uma tese ou de enunciar doutrina, mas antes de, através do poder da evocação, relembrar o que fomos, a nossa consistência e as nossas raízes, como nação culta e que desempenhou e desempenha – ou deveria desempenhar – um papel, de preferência construtivo, no mundo. Note-se que tal evocação não é forçosamente nacionalista ou de exaltação patriótica; ela pode ser até, eventualmente, crítica. Mas, de qualquer modo, parece-me haver, na maioria dos casos, e mesmo nos casos em que se critica ou «denuncia», essa intenção de evocar um pouco do que fomos, enquanto povo e enquanto país. Para que, simplesmente, o não esqueçamos ou mesmo para compreendermos melhor o que hoje somos.

2 – Daqui decorre uma exigência: a de um maior cuidado na pesquisa, na tentativa da recriação de ambientes e mentalidades. De facto, uma coisa é usar a circunstância histórica como um vago pano de fundo ou condimento para uma acção romanesca; outra, substancialmente diferente, é pretender mergulhar numa época e tentar reproduzir o seu ambiente, a sua respiração.

3 – Finalmente, e de certo modo como elemento... «comprovativo» – perdoe-se-me a ousadia – desta minha opinião (pois não tenho, de modo algum, a pretensão de lhe chamar «tese»!), notemos que a temática do romance histórico português é, na sua quase totalidade, uma temática portuguesa ou ligada a Portugal. Ora, o romance histórico não tem de se circunscrever às origens do seu autor – Flaubert deixou-se fascinar pela antiga Cartago em Salambô, Gore Vidal entrou nos domínios do Império Persa e do Império Chinês em Criação... mas os autores portugueses, quando escolhem o género histórico, tendem a preferir a história portuguesa ou os períodos antecedentes que a ela se referem.

Uma vez que estamos a considerar o romance histórico, devo assinalar aqui as vozes discordantes que contra ele se levantam.

Em primeiro lugar, há quem o considere um género «menor», a par do policial ou da espionagem... devo dizer que não entendo muito bem o que seja um género menor, pois julgo que a menoridade ou a maioridade residem na qualidade intrínseca de cada obra e não no género em que se inclui ou em que, por vezes de modo arbitrário, a incluem. Curiosamente, esses que partilham tal opinião jamais se atrevem a negar a estatura maior de Alexandre Herculano, de Garrett, enfim, dos nossos clássicos. É sobre os contemporâneos que o seu erudito desprezo se abate, como se mais ninguém devesse ser autorizado a cultivar o género.

E há quem, pura e simplesmente, recuse o direito a «mexer com a História», quem recuse aos escritores o direito a colocar palavras inventadas na boca de personagens históricas, o direito a preencher com a sua imaginação as lacunas ou pontos mortos do nosso conhecimento dos factos passados.

Como se pode calcular, recuso absolutamente esta posição. Não vejo onde está a ilegitimidade de, para usar a frase de um dos nossos maiores romancistas, cobrir a nudez forte da verdade com o manto diáfano da fantasia, sobretudo quando essa nudez e essa verdade estão incompletas – o que, para efeitos da construção de um romance, sempre acontece. Importa, sim, é não enganar o leitor, ou seja, não lhe oferecer gato por lebre, não lhe apresentar ficção como se fosse História. Importa é dar-lhe a possibilidade de distinguir entre os factos conhecidos – históricos – e a imaginação criativa do autor. Observados esses escrúpulos, o romance histórico é perfeitamente legítimo, culturalmente legítimo, como género. E tem, ou pode ter, a virtude de despertar ou redespertar o interesse do público pela História, o que considero extremamente importante, se não mesmo vital, no momento presente. E tanto assim que, se mo permitirem, terminarei esta muito modesta intervenção com uma alusão a essa importância.

Antes de o fazer, quero apenas salientar que, apesar de constituir um género – tanto quanto, neste domínio, é possível estabelecer classificações e caracterizações que nunca são nem podem ser rígidas, malgrado o que eu disse há pouco sobre os seus traços característicos – o romance histórico é, antes de mais, um romance.

Isto parecerá uma redundância. Mas convém ter presente o «gosto pelo esotérico» (no sentido, popular e aliás pouco próprio, de «inacessível») que reina em certos sectores da intelectualidade, sectores onde ao romance se exige que contenha obrigatoriamente todo um sistema filosófico e que submeta o leitor às mais duras provas de leitura e de interpretação, lançando-se para a vala comum dos «comerciais» e, mais insultuoso ainda, dos «menores», todas as obras que não correspondam a essa rígida exigência.

Contra esta atitude, eu defendo que um romance, histórico ou não, pode evidentemente conter sistemas filosóficos inteiros ou as mais profundas lucubrações executadas pela mente de quem o escreveu – e, com tudo isso, ser até um excelente ou genial romance, porém essa não é a sua essência e não é a sua função.

Um romance é uma narrativa em prosa (ressalva na exposição oral: «e deveríamos ainda considerar os romances em verso...»). E quem narra, narra alguma coisa, regra geral uma história. A história pode ser secundarizada pela análise psicológica, pela força das personagens, pela crítica de costumes, etc. Porém a narrativa tem de ser bem estruturada, as personagens devem ter vida, o leitor deve ser envolvido, seduzido, tornado cúmplice. Essa deve ser, penso eu, a primeira preocupação de quem escreve. Um romance histórico não foge, ou não deve fugir, a esta regra. Antes de ser histórico, deve ser romance. De outra maneira, bem mais valerá um ensaio ou uma dissertação ou uma palestra. Que, se bem escritos, poderão até conseguir essa sedução do leitor – ou do ouvinte – a que acabo de referir-me.

A terminar, permita-se-me que saliente – posso fazê-lo porque a ideia não foi minha... – que acho extremamente adequado incluir, no programa de uns Encontros destinados a professores do ensino secundário e subordinados ao tema «Portugal na Viragem do Século», um momento dedicado ao romance histórico. Porque esta designação contém duas referências que julgo extremamente importantes ou, direi mesmo, essenciais: a Literatura e a História.

Elas são importantes porque constituirão, talvez, a única arma possível contra alguns perigos graves que hoje ameaçam a nossa sociedade: a massificação total, uma nova forma de servidão e o advento de uma «idade das trevas» que merecerá esse nome muito mais do que o período que antecedeu a Idade Média ocidental – para já não falar da própria Idade Média, que foi, afinal, extremamente rica e fértil em termos culturais e espirituais.

Penso, de facto, que não devemos ter ilusões: a idade das trevas bate-nos à porta. Basta observar – o que é fácil, dada a omnipresença da comunicação social e, sobretudo, dos meios audiovisuais – o progressivo e galopante abastardamento da língua portuguesa e o grau descendente de cultura geral que se verifica nas mais diversas camadas da população.

É certo que o acesso à educação está hoje generalizado (pesem embora as conhecidas deficiências do sistema), e que esse era um passo essencial a dar. Mas – que educação estamos nós a generalizar? Quando um ao menos razoável domínio da nossa língua (a língua, esse factor essencial, já não direi até de cultura, mas de identidade e de vida) escapa, até, a membros de classes profissionais como médicos, advogados, e até, em alguns casos, professores? Quando as nossas referências culturais mais importantes estão esquecidas ou são desconhecidas pela maior parte da população? Quando, alegremente, vamos formando engenheiros, advogados, médicos, gestores que em termos de Humanidades são pouco menos que analfabetos?

Por isso considero que os cursos das áreas técnicas – de todas as áreas técnicas – deveriam ter, pelo menos, duas cadeiras obrigatórias pertencentes à área das Humanidades. A História e a Literatura, pelas potencialidades que encerram, pelo apetrechamento cultural, mental, espiritual que proporcionam, desempenhariam eficazmente um papel de antídoto ante o avanço desta literacia (palavra que aliás não encontrei na enciclopédia, mas que enfim, dá um certo jeito) ante o avanço, dizia, desta literacia analfabeta e desta cultura com aspas que nos ameaçam.

Só aparentemente é que estas minhas palavras são exagero. Repare-se: o empresário e o gestor que só lêem as publicações anuais do relatório e contas da sua empresa e os livros de formação profissional do seu ofício (além, evidentemente, da indispensável informação futebolística), o empresário e o gestor para quem a História não existe e a literatura ainda menos, são também, por excelência, os tipos de empresário e de gestor para quem o pessoal, o elemento humano, é um mero factor de produção, contratável e dispensável segundo as frias exigências da conjuntura – e também segundo as exigências do preço do carro de luxo que esse empresário ou esse gestor pretendam comprar... É esta, cada vez mais, a atitude predominante na sociedade ocidental e atrevo-me a sugerir que uma das razões deste regresso a um hiper-liberalismo económico, à sombra do qual o Estado acaba por abdicar das suas responsabilidades, se encontra justamente na ignorância histórica. São ainda conhecidas, porque recentes, as consequências negativas do excesso de intervencionismo estatal, mas são já ignoradas as consequências igualmente negativas dos excessos do liberalismo económico.

Repare-se também: os crimes – crimes hediondos, é este o termo adequado – ainda bem recentemente cometidos pelo presidente Saddam Hussein do Iraque, e refiro-me apenas, agora, aos crimes cometidos contra o ambiente, no final e após a Guerra do Golfo, foram ditados, claro está, por desequilíbrio mental e outros factores psicológicos, mas também, sem dúvida, por uma enraizada ignorância, por uma irreversível incultura.

E, enfim, tremo só ao pensar que algo como a energia nuclear, de consequências potencialmente devastadoras, pelo menos tal como a conhecemos, seja ela militarizada ou civil (apenas civil, pois hoje em dia não podemos já considerá-la civilizada), tremo ao pensar que essa tecnologia se encontra nas mãos de gente que não leu um único livro a não ser os manuais e que nada conhece de História.

É sobre estas notas que pretendo acabar a minha intervenção: sobre o papel que a Literatura pode desempenhar na abertura, na modelação, na civilização dos espíritos. E sobre o papel que a História pode desempenhar na compreensão das realidades contemporâneas. Um papel libertador, direi mesmo; porque um eleitorado dotado de consciência histórica e de um razoável mínimo de conhecimentos históricos é um eleitorado muito menos vulnerável à massificação, ao arrebanhamento, aos modismos, às persuasões da propaganda insidiosa, às seduções de eventuais «salvadores da Pátria»; menos vulnerável à manipulação e mais capaz de dar os seus apoios, as suas afeições e as suas recusas de modo consciente, maduro, em acordo com o pensamento individual dos elementos que o constituem – e não exclusivamente segundo o pensamento e os objectivos dos directores de campanha, seja de propaganda seja de publicidade. Em suma, será um eleitorado que se afastará saudavelmente dos cães de Pavlov. Muito ao contrário do que vai acontecendo no momento presente.

João Aguiar (texto lido nos Encontros «Portugal na Viragem do Século», Castelo Branco, 28 de Fevereiro de 1997)

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