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Ensaios


Relações entre Fenícios e Neo-Assírios nos sécs. VIII e VII a. C. e seus reflexos na Península Ibérica

INTRODUÇÃO

Ao longo deste trabalho, será traçado um breve itinerário dos principais momentos da história de um dos mais importantes povos da Antiguidade- os Assírios. Numa primeira fase, procurar-se-á fazer uma síntese da sua génese e cultura e caracterizar as principais etapas da sua tendência expansionista para Oeste (que remonta ao século XIX a. C.). Esta abordagem perspectivará os eventos na óptica das implicações que a interacção dos Assírios com outros povos da Antiguidade acarretou, em termos de consequências culturais e civilizacionais- nomeadamente, o início da diáspora do povo judaico, cujos reinos, Israel e Judá, desaparecem como resultado directo das campanhas militares deste povo em direcção ao Ocidente, no séc. VIII a.C. Disto resultará uma miscegenação linguística e cultural entre o Oriente e o Ocidente, operada a partir das deportações em massa efectuadas pelos Assírios.

Num segundo momento, serão abordadas as relações entre as cidades fenícias e o império Neo-Assírio nos séculos VIII e VII a.C. (o período da sua expansão pelo Mediterrâneo ocidental), em termos das ligações comerciais que os fenícios mantiveram com a Península Ibérica, ao serviço dos Assírios. A política económica destes últimos reforçou o comércio entre o Oriente e o Ocidente e os Assírios receberam do Ocidente as matérias primas e os bens que escasseavam no seu império. Mais uma vez se procurará mostrar como este relacionamento, directo ou indirecto, acarretou consequências importantes em termos económicos e espirituais para os povos dessas regiões, ou seja, a nível das técnicas, das artes e da cultura.

1. GÉNESE DO IMPÉRIO ASSÍRIO

Situação Geográfica e Origens 1

A Assíria (também designada por Ashur, Ashshur ou Assur), antigo país da Ásia, estendia-se para Sul, a partir da fronteira do actual Iraque, abarcando o vale do Tigre e do seu afluente, o Grande Zab, constituindo uma área semelhante a um triângulo invertido. As suas mais importantes cidades, situadas no Iraque dos nossos dias, eram Ashur (hoje Sharqat), Ninive (hoje Kuyunjik), Calah (hoje Nimrud) e Dur Sharrukin (hoje Khorsabad).

Desde o Paleolítico que a região que mais tarde viria a constituir a Assíria foi habitada2. A sedentarização das populações ter-se-á iniciado cerca de 6500 a. C. e a composição étnica das primeiras comunidades de agricultores é desconhecida- talvez um povo (posteriormente conhecido como Subariano3) que falava uma língua aglutinativa (não flexionável). Provavelmente no 3º milénio a.C., nómadas semíticos conquistaram a região e deram origem a uma língua flexionável, parecida com a da Babilónia, que era a dominante na região. A escrita assíria era uma versão ligeiramente modificada da cuneiforme babilónica.

No 7º milénio a.C., os agricultores assírios cultivavam trigo e cevada, possuíam gado, construíam casas (algumas com quatro divisões), usavam fornos e guardavam os cereais em vasilhas de barro. Estes povos agrícolas produziam têxteis com rocas de fiar, faziam facas de obsidiana e sílex córneo; usavam machados de pedra, enxós e sacholas. A sua cerâmica era notável, a maioria constituída por barro cozido e pintado. A obsidiana e outras pedras duras eram trabalhadas de modo a originar jarras, contas, amuletos e selos. Modelavam figuras femininas em barro, com fins religiosos e rituais. Os mortos eram frequentemente enterrados em posição flectida, com os joelhos junto ao queixo e enterrados entre as casas.

Cultura e Costumes

A cultura assíria assemelhava-se à babilónica. À excepção dos anais reais, por exemplo, a literatura assíria era idêntica à da Babilónia e os reis assírios mais cultos, sobretudo Assurbanipal, encheram as suas bibliotecas com cópias de documentos literários babilónicos. A vida social, familiar, o casamentos, os costumes e as leis relativas à propriedade eram igualmente semelhantes às da Babilónia. Os documentos da Corte e registos legais até agora encontrados partilham muito da lei babilónia e Suméria, embora as penalidades criminais assírias fossem mais brutais e bárbaras.

A nível de práticas e crenças religiosas, verifica-se que o deus Marduk babilónico foi substituído pelo deus assírio nacional, Ashur. Os maiores legados assírios situam-se no campo da arte e da arquitectura.

No 3º milénio a.C. a Assíria, tal como a maior parte do Médio Oriente, ficou sob a influência da civilização Suméria, do Sul- por volta de 2300 a.C., fazia parte do império da Suméria e da Acádia. Na sequência do colapso deste império, c. de 2000 a.C., os Amoritas (um povo nómada semítico, do deserto arábico) infiltraram-se e conquistaram grande parte da Mesoptâmia, incluindo a Assíria. Cerca de 1850 a.C., os mercadores assírios tinham colonizado partes da Anatólia Central (Ásia Menor), onde comerciavam cobre, prata, ouro, latão e têxteis.

Expansão e Dependência

Cerca de 1810 a.C. um rei assírio, Shamshi-Adad (reinou de 1813 a 1780) conseguiu alargar o território assírio, desde as montanhas Zagros até ao mar Mediterrâneo. Foi provavelmente o primeiro governante a estabelecer a centralização imperial no antigo Médio Oriente. Dividiu o reino em distritos, governados por administradores e concelhos especialmente designados para esse fim, instituiu um sistema de correios e procedeu a censos regulares da população. Este primeiro Império Assírio, no entanto, pouco durou. O filho de Shamshi-Adad, Ishme-Dagan I (reinou de 1780 a 1760) foi derrotado, cerca de 1760, pelo rei babilónico Hammurabi e a Assíria passou a integrar o Império Babilónico.

Este, por sua vez, também teve uma vida curta. Os Kassitas4 (um povo de origem não-semítica) invadiram a Babilónia no século XVI a.C. e apoderaram-se do poder político. Outro povo da montanha, igualmente não-semítico, os Hurrianos5, infiltraram-se sobretudo no norte da Mesoptâmia e chegaram até á Palestina. Juntamente com os hurrianos e de alguma forma misturados com eles, veio um povo indo-europeu, cujo nome se desconhece. Como resultado destas migrações e reviravoltas políticas, o século XVI a.C. foi um dos mais agitados da história da Mesoptâmia.

Cerca de 1500 a.C. a Assíria ficou dependente de Mitanni- um reinado de proporções imperiais que se estendera até o norte da Mesoptâmia- até inícios do século XIV, quando este reinado sofreu uma séria derrota às mãos do império ascendente dos Hititas do norte. Aproveitando-se da confusão que se seguiu, o rei assírio Ashur-Uballit (reinou de 1364 a 1328) libertou a Assíria do jugo de Mitanni e anexou, inclusive, parte do seu território.

A este rei seguiram-se vários governantes vigorosos, especialmente Adad-Nirari (reinou de 1306 a 1274), Salmanasar (de 1274 a 1244) e Tukulti-Ninurta (de 1244 a 1207). Foram bem sucedidos na expansão das fronteiras assírias e em repelir os seus poderosos vizinhos: os Urartianos6, os Hititas, os Babilónios e os Lullubi.

Prelúdio ao Império

A partir de 1200 a.C., uma nova onda de migrações modificou profundamente a composição da Ásia Ocidental. Da Península dos Balcãs, com toda a probabilidade, veio um conglomerado de povos, conhecido por "povos do mar", que pôs fim ao Império Hitita na Anatólia e se infiltrou na Síria e na Palestina. Um povo indo-europeu chamado Mushki, que se instalou a Este da Anatólia, tornou-se uma ameaça constante para a Assíria, situada Noroeste. A Oeste, um grupo de nómadas semíticos, os Arameus, também era uma ameaça. A Assíria resistiu, a maior parte das vezes com sucesso, às pressões e ataques dos novos vizinhos. Ao longo desta dura luta pela sobrevivência, desenvolveu uma máquina militar que foi proverbial pela sua crueldade e se tornou o terror de todo o Médio Oriente.

2. O IMPERIALISMO NEO-ASSÍRIO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS

(sécs. XII a VII a.C.)

Pelo quadro traçado até ao momento é possível concluir que, por um lado, no contexto do Médio Oriente da Antiguidade, a Assíria enfrentou sucessivos domínios políticos, que levaram o país a especializar-se na guerra e, por outro, que a expansão para Ocidente sempre foi uma constante na sua política imperialista. É sobretudo este último aspecto que interessa salientar, por ter de alguma forma acarretado importantes consequências civilizacionais para o Mediterrâneo e inclusive, indirectamente, para a zona actualmente designada por Península Ibérica.

Foi referida anteriormente uma primeira tentativa bem sucedida de expansão para Ocidente, levada a cabo no reinado de Shamshi-Adad, ainda nos séculos XIX-XVIII a.C., que estendeu as fronteiras da Assíria até ao Mediterrâneo.

Inicialmente, as campanhas militares assírias assemelharam-se a raides, que visavam o saque e o tributo. Tiglat-Pileser I (reinou de 1115 a 1077), por exemplo, defendeu as fronteiras assírias dos Arameus e dos Mushki, através de incursões militares que o levaram, a norte, até ao lago Van, em Urartu (actual nordeste da Turquia) e a Oeste, até Palmyra (Turquia), Biblos e Sídon7. Na maioria dos casos, os povos fugiam à aproximação dos seus exércitos. Os que ficavam, ou eram massacrados, ou levados para a Assíria. As suas vilas e cidades eram saqueadas e destruídas, mas não era feita qualquer tentativa de anexar os seus territórios.

Este padrão de conquista mudou gradualmente e os governantes assírios começaram a fazer do país o centro de um novo império, incorporando as terras conquistas sob o seu domínio. Cerca do século X a.C., por exemplo, Adad-Nirari II anexou o estado Arameu centrado em Nisibis, a este do rio Habur. O seu filho, Tukulti-Ninurta II, anexou vários estados arameus perto da cidade de Harran e do vale do Eufrates, assim como a região entre os rios Grande e Pequeno Zab.

Extensão do Domínio Assírio

Assurbanipal II (filho de Tukulti-Ninurta II), governou de 884 a 859 e estendeu o domínio assírio a Norte e a Este. As suas campanhas brutais devastaram as terras que faziam fronteira com o seu império, mas não atacou os vizinhos mais poderosos, como Urartu a Norte, a Babilónia ao Sul e Aram a Oeste. Também ele, numa das suas campanhas, chegou até ao mar Mediterrâneo. No regresso, fez de Calah8 a capital, em vez de Assur.

Salamanasar III (reinou de 859 a 824 a.C.), seu filho, comandou 32 campanhas militares nos 35 anos do seu reinado. Muitas delas foram dirigidas contra as terras a Oeste do Eufrates, especialmente contra o poderoso reino de Aram. Embora tivesse sido em parte bem sucedido e tivesse recebido tributos consideráveis por parte dos aliados de Aram, incluindo Israel, não conseguiu conquistar Aram propriamente dito.

2.1. O Fim dos Reinos de Israel e Judá

No final do reinado de Salmanasar III eclodiu uma revolta na corte assíria, seguida de vários anos de guerra civil. A Assíria caiu na obscuridade e o seu poder declinou. Mas em meados do século VIII a.C. reviveu, com a ascensão de Tiglat-Pileser III, que reinou entre 746 a 727. Este rei fez reviver o império assírio; primeiro, reforçou a autoridade real e retirou poder à nobreza. Criou um exército permanente e planeou as suas campanhas com o objectivo de anexar território inimigo. Os povos que conquistava eram deportados em massa e reinstalados algures dentro dos domínios assírios, de modo a esmagar a sua consciência e coesão nacionais. Mais tarde, libertou a Assíria da pressão das tribos aramaicas que ameaçavam o vale do Tigre, expulsou os Urartianos da Síria (734), anexou os estados arameus de Arpad e Damasco (732), subjugou as cidades da Palestina e proclamou-se imperador da Babilónia9 (729).

Foram precisamente estas campanhas militares da Assíria, em fase de expansão imperialista, que levaram ao desaparecimento de Israel (ou Reino do Norte10). Os reinados de Tiglat-Pileser III, Salmanasar V e Sargão II constituem um importantíssimo período da história política e cultural da Antiguidade, com grandes consequências no processo civilizatório e na história do povo hebreu. Simultaneamente, existe vasta documentação11 relativa ao mesmo, que permite estabelecer com relativa precisão o curso dos acontecimentos.

No século VIII a.C., Israel e Judá eram duas das maiores potências do Médio Oriente. Por seu turno, a Assíria cobiçava as terras a sul do Eufrates, por motivos de ordem económica- a sua situação geográfica e o facto de serem ricas em madeira, pedra e minérios. Como foi referido, Tiglat-Pileser III teve uma política muito agressiva, com a anexação do territórios ocupados, a sua repartição em províncias, dirigidas pelos bel pihati (que dispunham de guarnições para abafar rebeliões) e a sua política de deportações. Nem o Egipto, agora em declínio, podia opor-se-lhe, acabando mesmo por ser ocupado no século VII. Portanto, tanto Judá como Israel estavam ameaçados, o que era agravado pelo facto de ambos os reinos viverem crises internas.

Israel, Judá e a Assíria no séc. VIII

De 783 a 746, sob o reinado de Jeroboão II, Israel desenvolveu-se como potência económica, restabeleceu fronteiras (de Hamat ao mar de Arabá) e atingiu um nível de vida elevado (o que é corroborado pelas escavações, onde se encontraram objectos de luxo, marfins etc. ou pelas referências dos Livros dos Reis e de Amós). No entanto, entre 746 e 736 dá-se uma grave crise social12, política e religiosa13- houve cinco reis neste período: Zacarias, filho de Jeroboão, que é morto por Shalum que, por sua vez, é assassinado por Menahém de Gadi. A política em relação à Assíria é de submissão e, em 738, este rei paga um tributo a Tiglat-Pileser III. Quando Menahém morre, sucede-lhe o filho, Faceias, que pouco tempo depois é assassinado por Faceia- o homicídio surge como resultante de uma conjura, que envolve o rei de Damasco, alguns filisteus e talvez o Egipto. Faceia muda de política externa, tornando-se chefe da liga anti-assíria e provocando a guerra contra Judá, pelo facto de o seu rei não o apoiar na guerra contra a Assíria.

Joatão (reina em Judá entre 742 e 735) ao contrário do seu pai Uzias (ou Azarias), quando Faceia se torna chefe da liga assíria segue, como já foi referido, uma política neutra. Faceia e o rei de Damasco não quiseram na retaguarda uma potência neutral ou hostil e resolvem atacá-lo. Entretanto Joatão morre, sucedendo-lhe o filho, Acaz14 e é sobre este que recai o ataque. Os reis de Judá e da Síria, coligados, tentam depô-lo; ele, por seu turno, vendo-se atacado por Israel, pela Síria, pelos edomeus (que readquirem a sua independência, após terem estado sujeitos a Judá; recuperam de Ezion-Gaber, talvez com ajuda aramaica) e filisteus, resolve pedir ajuda a Tiglat-Pileser III. É este o factor decisivo que leva ao desaparecimento do reino do Norte.

Na sequência destes acontecimentos, o exército assírio dirige-se primeiro a Gaza, para evitar o auxílio egípcio; ocupa posteriormente Israel, em 733. A esta ocupação seguem-se as habituais deportações e destruição de cidades. Entretanto, Faceia é assassinado por Oseias, que paga tributo a Tiglat-Pileser III e é posto no trono por este último que, no ano seguinte, ataca Damasco.

Oseias fica à frente de um território muito pequeno mas, quando Tiglat-Pileser III morre, revolta-se contra a Assíria e pede auxílio ao Egipto; mas daí nenhum auxílio lhe pode chegar. É o sucessor de Tiglat, Slamanasar V, que irá atacar o território, prender Oseias (que é, assim, o último rei de Israel) poupando, no entanto, a cidade da Samaria. É só em 722 que esta cidade é ocupada por Sargão II (um dos mais famosos reis da Antiguidade), que faz 27 mil prisioneiros e reinstala no local outros povos conquistados. É o fim da história política de Israel, que passa a ser uma província assíria, com capital em Meguido. Os egípcios parecem ter-se revoltado ainda, mas foram derrotados. Em 720, há uma tentativa de rebelião, gorada, juntamente com Gaza e Damasco, que origina mais deportações.

Quanto a Judá, continua a existir como reino subjugado à Assíria; é-lhe imposta a adoração dos seus deuses e o culto de Assur, pois os Assírios procuravam a hegemonia política impondo a sua religião. É um estado enfraquecido política, religiosa e economicamente- perde territórios e o importantíssimo porto de Ezion-Geber, ou seja, os lucros da terra e do comércio. Fica tão pobre que Acaz teve de desfazer-se do ouro e da prata do palácio real e do templo. Em 715, Ezequias ainda tenta implementar reformas nacionalistas, que não são bem sucedidas. Segue uma política dúbia, voltando-se para o Egipto e depois, para a Assíria. É isto que leva o reino à ruína definitiva, acabando por cair sob Nabucodonosor II, no império neo-babilónico.

Consequências

Como se verificou, a política dos reis assírios, sobretudo a partir de Tiglat-Pileser III, foi a de anexação de territórios e transferência de grandes massas humanas de um ponto para o outro do império (verificou-se sobretudo com os hebreus e os arameus). Apesar da tradicional mobilidade das populações do Médio Oriente, estas deportações eram em números nunca antes verificados. Estas reinstalações forçadas tinham o objectivo de operar mudanças sociais nos lugares conquistados e normalmente obedeciam ao seguinte padrão: levavam-se as pessoas mais válidas e os dirigentes locais para terras distantes e, no seu lugar, colocavam-se outros, vindos igualmente de territórios ocupados.

Os habitantes da Samaria, por exemplo, foram para o norte da Mesoptâmia e da Média, onde se disseminaram e desapareceram15. Para esta cidade vieram colonos da Babilónia, de Kutha, Hamat e Sefarvaim e assim se cria um novo mapa étnico-social. Os habitantes da Samaria eram agora estrangeiros, misturados com autóctones, subjugados pelos chefes políticos designados pela Assíria; misturam-se raças, costumes e religiões (neste caso particular, predominou a raça israelita) e é assim que surgem os samaritanos, mal vistos pelos vizinhos e dos quais existem actualmente cerca de 200 pessoas, na cidade de Nablus.

Este processo, claro, é comum a todo o império assírio. Todos os deportados estavam sujeitos aos governadores (representantes do poder central), que tinham exércitos e esmagavam toda e qualquer tentativa de rebelião. Ora, inicialmente, este processo gera um grande nivelamento social e simultaneamente, um desenraizamento, que impediam a rebelião. No entanto, mais tarde, os povos começam a recordar as suas origens (como aconteceu com os hebreus) e idealizam voltar às suas terras de origem. É então que se dão as rebeliões que levam à queda do império assírio, substituído pelo neo-babilónicco, que terá uma política mais compreensiva para com as minorias étnicas.

Mas são as consequências culturais e civilizacionais deste processo de expansão militar da Assíria para Ocidente que terão verdadeiramente importância, no quadro dos objectivos deste trabalho. Para além das consequências imediatas já referidas, a médio e longo prazo verificar-se-á que os vencidos a Ocidente- hebreus e arameus- acabam por vencer os Assírios, pela irradiação da sua cultura.

Porque os arameus guerreiros passaram a integrar o exército assírio, os operários as construções reais e outros, diferentes regiões agrícolas, tanto as principais cidades como aldeias foram marcadas pela presença de estrangeiros, vindos das costas ocidentais e portadores da mesma língua. Assim se forma uma "koiné" linguística, com base no aramaico, que suplantou a antiga língua oficial, o acádico. Lentamente, vai ser esta a língua oficial e diplomática, da Pérsia ao Egipto, nós séculos VII e VI.

A par da língua, são transmitidos costumes e tradições; por exemplo, dado que os reinos arameus tinham grande superioridade comercial, Sargão II acaba por adoptar a unidade de pesos usada por estes. Além disso, os arameus mantinham contactos com os fenícios, voltados para o ocidente mediterrânico16 e através deles, os produtos são difundidos por todo o império assírio (tecidos, objectos de marfim e de cobre). Juntamente com os produtos, são difundidas as técnicas de fabrico. Portanto e em suma, poderá afirmar-se que das conquistas assírias surgem populações heterogéneas e culturas diferentes, uma fusão entre Ocidente e Oriente, que iria marcar o futuro das civilizações.

2.2. Presenças Fenícias no Ocidente

Localização e Origens

As viagens e a colonização efectuada pelos comerciantes fenícios no primeiro milénio a.C. constituem o primeiro grande empreendimento exploratório documentado da história17. A Fenícia (que actualmente corresponde, quase na totalidade, ao Líbano) tinha a localização ideal para comerciar, quer por terra, quer por mar, situada entre o Egipto e os Hititas. Embora os seus habitantes possuíssem uma civilização homogénea e se considerassem uma nação, não era um estado unificado e sim de um grupo de cidades-estado, sendo que normalmente um deles dominava os outros. Tiro e Sídon alternavam como local de governação.

Eram um povo de língua semítica e a investigação histórica aponta que teriam fundado os primeiros estabelecimentos comerciais na costa mediterrânica cerca de 2500 a. C. As frotas das cidades costeiras viajavam pelo Mediterrâneo e iam até ao oceano Atlântico. As cidades-estado fundaram muitas colónias comerciais, sendo de destacar Utica e Cartago, no norte de África, nas ilhas de Rodes e Chipre, no Mediterrâneo e Tarsis e Gades, no sul da Península Ibérica. No século VIII a.C., as cidades fenícias foram conquistadas pela Assíria.

Esse domínio da costa do Mediterrâneo oriental e das cidades fenícias pelos Assírios acarretou importantes consequências para o Médio Oriente e para os povos mediterrâneos, nos quais se incluem os do sudoeste da Península Ibérica e mesmo de Portugal.

Os Fenícios, os Assírios e o Mediterrâneo

As interpretações quanto ao papel dos fenícios na história do Próximo Oriente sublinham as suas funções especializadas no comércio e na navegação, no quadro de uma economia mercantil. É geralmente aceite que a força motivadora da expansão fenícia residia na necessidade de pagar tributo aos grandes impérios e que, portanto, o seu papel económico era o de manter o império dominante, de forma passiva.

Susan Frankenstein18 argumenta que há que reconhecer aos fenícios um papel mais decisivo no fornecimento de bens e serviços aos impérios vizinhos, sugerindo que as cidades fenícias tiveram um papel essencial na manutenção e desenvolvimento dos impérios do Médio Oriente. Esse grau de importância pode ser avaliado pelo tratamento diferencial dado a determinadas cidades fenícias pelos seus chefes políticos; por exemplo, em contraste com o que aconteceu com Israel e Judá (incorporados no império neo-assírio como vassalos) os Assírios deixaram as cidades fenícias virtualmente autónomas, numa tentativa de controlar e redireccionar o seu comércio.

Desde o fim do segundo milénio a.C. que os fenícios efectuaram transacções comerciais entre o Mediterrâneo oriental e ocidental. No século X, por exemplo, há referências no Antigo Testamento a uma aliança entre os primeiros reis de Israel e Hirão I, de Tiro; essa aliança assegurava o acesso das cidades fenícias às rotas comerciais terrestres e às rotas marítimas para Este. Tanto antes, como depois da divisão do reino hebraico, os fenícios estiveram ligados à distribuição dos produtos de luxo egípcios; por outro lado, eles próprios manufacturavam outros. Estes produtos eram maioritariamente tecidos, roupas tingidas e bordadas, tapeçarias, taças de vidro e cerâmica, recipientes de bronze, prata e outros trabalhos em metal, vinhos, instrumentos musicais, incenso, especiarias, comida e sementes.

As cidades fenícias integradas no império neo-assírio, nos séculos VIII e VII a.C. (período da expansão assíria no Mediterrâneo Central) desenvolveram as suas rotas pelo Médio Oriente, comerciando os produtos que compravam no Egipto (bens de luxo), na costa mediterrânica e na Península Ibérica . As relações de tributo entre uma e outra permitiam e encorajavam as relações comerciais, sendo as cidades fenícias consideradas áreas de especialização, às quais eram dadas vantagens e protecção, devido à sua importância para a Assíria. A política externa desta era controlar os parceiros comerciais externos, forçando-os a reorientar as suas actividades económicas e a comerciar com a Assíria, em vez de com outros centros competitivos.

Desde o primeiro milénio a.C. que a Fenícia, juntamente com os reinos sírios, esteve envolvida no fornecimento de grandes quantidades de ferro exigidas pela máquina militar assíria. Nos textos assírios diz-se que vinha de "Oeste", mas não especificavam a área de origem. Com o esmagamento dos estado sírios nos finais do século VIII a.C., os fenícios tornaram-se os principais fornecedores de matérias primas aos Assírios, abandonando o seu antigo papel de fornecedores de bens manufacturados para consumo das elites. Para isso, tiveram de alargar a esfera das suas relações comerciais. A tendência expansionista das estratégias comerciais fenícias foi, então, determinada pelas necessidades materiais dos Assírios e pela necessidade de lhes fornecerem recursos essenciais, nomeadamente prata.

Os Fenícios na Península Ibérica

O interesse dos fenícios pelo Mediterrâneo ocidental e pelo sul da Península Ibérica insere-se numa lógica de extensão das suas actividades comerciais no Mediterrâneo central e na necessidade de explorar os recursos aí existentes. Geograficamente, a esfera ocidental de actuação dos fenícios foi o canal mediterrânico, caracterizado por intenso tráfego marítimo. Arqueologicamente, inclui estabelecimentos fenícios no norte de África e na Península Ibérica, a Este e Oeste do estreito de Gibraltar. Estas duas zonas estão fortemente correlacionadas e encontram-se nelas vestígios fenícios idênticos19.

No século VIII a.C. havia um importante centro de trabalho do bronze, no Noroeste da Península, que desempenhou um importante papel na época, com ligações ao Sudeste da Europa e à Irlanda20. Havia uma rede atlântica que transportava matérias primas e produtos finais do Norte da Europa para a Ibéria e vice-versa. Os mercadores fenícios apoderaram-se deste circuito (o âmbar e o ouro seriam igualmente produtos comerciados por eles). Certos objectos de bronze mediterrânico chegaram ao Norte da Europa no século VIII e um navio de carga que naufragou em Huelva indicia que, provavelmente, havia uma rota para o seu transporte em redor da Península. A estratégia dos fenícios era aceder aos produtos finais indígenas e depois usá-los para aceder a novos mercados ou iniciar a exploração de novo recursos noutras áreas. Assim, ligavam regiões economicamente independentes e lucravam ao trocar produtos manufacturados por matérias primas, muito solicitadas nos seus mercados de origem.

Numa segunda fase, por volta do século VII, esta ligação ao Oeste e, em especial ao sul da Ibéria é marcada pela intervenção fenícia na produção dos recursos; isto é detectável pelo número de estabelecimentos fenícios na região e o seu interesse nesta área está relacionado com a existência de prata na zona de Huelva. Este redireccionamento está também ligado ao aumento da dependência assíria em relação ao comércio das cidades fenícias de Este, que necessitavam, por seu turno, de maior abastecimento. Neste período, as cidades fenícias independentes foram sujeitas ao pagamento de um tributo cada vez mais elevado e a imposições comerciais por parte dos reis assírios.

Um traço característico deste período é a produção de cerâmicas pintadas, vermelhas e cinzentas. Foram encontrados vestígios deste tipo de cerâmica no vale do Guadalquivir, entre Sevilha e Córdoba e nas zonas do Jerez e Huelva, assim como na zona costeira central portuguesa, na Andaluzia oriental e na costa Levantina. Indicam o interesse continuado dos fenícios num comércio atlântico agora mais restrito e na rota marítima do Mediterrâneo central.

Consequências

É ainda de salientar que, dado que não existia uma identidade étnica definida para os habitantes da costa Levantina, estes tanto eram designados por "cananitas" ou por "fenícios". Verifica-se que se tratavam de termos aplicados a populações heterogéneas- que incluíam residentes de várias cidades siro-palestinas, assim como elementos de outras zonas da Ásia ocidental ou do Mediterrâneo Este. O termo "fenício" refere, no fundo, uma categoria de pessoas envolvidas em determinadas actividades e não um grupo étnico determinado21. A assimilação dos arameus e dos israelitas, a partir das deportações assírias, deve ter ocorrido desta forma- passando a falar a língua fenícia e aceitando a sua ideologia, povos de diferentes origens podiam participar das actividades fenícias e serem identificados como tal. Do mesmo modo, os estabelecimentos fenícios a Oeste tinham dois elementos distintos: os comerciantes e colonos da zona Este da Fenícia e elementos das populações indígenas, que assumiram a identidade fenícia, ao partilharam das suas actividades.

Como foi anteriormente exposto, as campanhas militares assírias em direcção ao Mediterrâneo e a política económica deste povo reforçaram o comércio dos fenícios com o Ocidente. Na época do império neo-assírio e em consequência da sua expansão, os fenícios foram mais um elemento a estabelecer contacto entre o Oriente e o Ocidente: com a exploração dos recursos e das rotas comerciais já referidas, introduziram modificações nas sociedades indígenas, em termos políticos e económicos. A sua contribuição foi positiva, mesmo que sejam vistos apenas como intermediários. Por exemplo, a dívida grega para com a Fenícia pode compreender-se, se tivermos em conta que adoptaram o alfabeto fenício (provavelmente no século VIII a.C.), com poucas variações (juntamente com as palavras semíticas, de empréstimo, que este continha), assim como pela "orientalização" dos motivos na poesia e nos paradigmas arquitectónicos e pelo uso dos modelos fenícios de pesos e medidas. Um dos grandes contributos dos fenícios em relação à civilização ibérica foi integrá-la na rede comercial do Mediterrâneo, como periferia dum sistema regional da Ásia Meridional, iniciando um processo de orientalização e civilização na zona.

Segundo A. Tavares22 é neste contexto, por exemplo, que se pode afirmar que Portugal é um país atlântico em termos geográficos, mas mediterrânico devido às suas antigas raízes culturais. Este autor refere diversos exemplos documentados de presenças fenícias na Península Ibérica e mesmo no território português, a nível da metalurgia do ouro, do vidro e das contas polícromas, da cerâmica, dos carros votivos, dos marfins e da própria escrita.


BIBLIOGRAFIA

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FRANKENSTEIN, Susan, "The Phoenicians in the Far West: A Function of Neo-Assyrian Imperialism", in Mesopotamia 7, Copenhagen, 1979.


NOTAS:

1 Grande parte da informação contida neste e nos pontos que se seguem foi compilada nas enciclopédias citadas na Bibliografia, originalmente em inglês; a tradução foi da minha autoria e tive dificuldade em encontrar em dicionários os correspondentes nomes em português para alguns dos povos da Antiguidade referidos.

2 O que foi confirmado pela descoberta de dois esqueletos de adultos numa gruta da zona nordeste da região.

3 Vd. nota 1.

4 Vd. nota 1.

5 Vd. nota 1.

6 Vd. nota 1.

7 A sua chegada ao Mediterrâneo encontra-se documentada no documento da fundação do templo de Anu-Adad.

8 Numerosos monumentos com inscrições de Assurbanipal foram encontrados nas ruínas de Calah, fazendo dele um dos mais bem documentados governantes do Antigo Médio Oriente.

9 É designado por Pulu, na Bíblia.

10 David, cerca de 1000 a.C., conquista Jerusalém e torna-a capital do reino hebraico. O seu filho Salomão sucede-lhe e, quando morre, deixa um herdeiro- Rupuão. Este não é aceite no Norte, devido a questões relacionadas com impostos, que prefere Jeroboão. É neste contexto que em 933 se verifica divisão do reino hebraico: Israel, a Norte, com Jeroboão I e com a capital em Samaria e Judá, ao Sul, com Rupuão e a capital em Jerusalém.

11 Fontes escritas: textos históricos assírios (Anais de Tiglat-Pileser III e Sargão II), as óstracas da Samaria e de Láquish e alguns livros bíblicos (Reis I e II; Crónicas, I e II; Amós, Oseias e Isaías). A par destas, os testemunhos arqueológicos provenientes das escavações de tells.

12 Os profetas Amós e Oseias vão denunciar a riqueza e o luxo das classes mais altas, como resultantes da exploração dos mais pobres.

13 Oseias responsabiliza o abandono do padrão religioso pela falta de coesão social que se verifica neste período.

14 Judá sofria grande pressão para se juntar a uma coligação anti-assíria e Acaz preferiu submeter-se à Assíria; introduziu um estilo novo no templo de Jerusalém e adoptou costumes estrangeiros, pelo que é criticado no Livro dos Reis. Aliás, estes eventos remontam à época do profeta Isaías, que profetizou que Judá seria aniquilada. Isaías interpretou o inexorável avanço da Assíria como um castigo divino; mas como esta ignorava a sua mera instrumentalidade e era insolente, Deus, quando terminasse o seu trabalho punitivo, destruiria igualmente a Assíria. Então, as nações subjugadas por ela reconheceriam o Deus de Israel como o senhor da história- um Israel renovado prosperaria sob o reinado de um rei davídico ideal e a paz universal instalar-se-ia. As profecias de Miqueias, contemporâneo de Isaías, abordavam temas idênticos, mas anunciavam a destruição da cidade, dada a fraqueza dos seus governantes.

15 São estes acontecimentos que irão dar origem á lenda das Dez Tribos Perdidas de Israel.

16 Este aspecto será desenvolvido no ponto seguinte deste trabalho.

17 Foram encarregues pelo rei Salomão, em 950 a.C., de navegar pelo Mar Vermelho, numa missão comercial que provavelmente os levou até à costa sudoeste da Índia e ao Sri-Lanka.

18 S. Frankenstein, "The Phoenicians in the Far West" in Mesopotamia 7, Copenhagen 1979, pp. 263-264.

19 Por exemplo, pequenas garrafas globulares, taças com tripé, certos tipos de urnas e ânforas, segundo S. Frankenstein, op. cit.

20 Foram descobertos vestígios de bronze irlandês na Península Ibérica e vice-versa, assim como representações de trabalho metalúrgico do N. da Europa na estela da Estremadura.

21 Nos poemas de Homero, por exemplo, todos os comerciantes são "fenícios"; na "Odisseia" são caracterizados como comerciantes e navegadores, que fornecem metal trabalhado, roupas, jóias e escravos ao Gregos.

22 A. Tavares, "Les Campagnes Militaires de L’Assyrie vers la Mediterranée. Reflets sur la Péninsule Ibérique?"; artigo citado na Bibliografia.

Ana Paula P. Dias, Abril de 1997

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