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Doença mental: que criatividade?

Palestra proferida no âmbito da Iniciativa Horizon das Comunidades Europeias – colóquio "Psiquiatria e Expressão Artística", 8 de Novembro de 1994, Centro Cultural D. Diniz, em Coimbra

Embora o título desta comunicação seja "Doença mental: que criatividade?", também se poderia chamar "Criatividade: que doença mental?"

De facto, a questão das relações entre criatividade e doença mental começa, naturalmente, pela clarificação de cada um destes conceitos: o que é, ou o que pressupõe a criatividade humana? Quando falamos de doença mental, ou a loucura, estamos a referir-nos a quê?

Estas duas perguntas polarizam, com certeza, a temática que iremos abordar hoje: para se ser artista, é preciso ser "louco"? Um louco é capaz de criar? As suas obras são sempre criativas? Ou, ao contrário, nunca poderão ser criativas, porque está privado, está alienado da liberdade de pensar?

A criatividade, seja qual for a sua expressão (pictórica, escrita, musical, coreográfica, teatral...), implica sempre o entrelaçar constante e sucessivo de dois momentos: o momento do símbolo, da linguagem simbólica, intuitiva, que por vezes só é descodificada posteriormente pelo seu autor, e o momento do raciocínio, da escolha de uma solução, como se a criação fosse uma adivinha, uma descoberta, um trazer à luz de coisas escondidas.

Para o leitor da obra, o símbolo é identificado e descodificado, mas existe depois um efeito-surpresa, que causa a sensação de originalidade que é a assinatura de um autor. Ou seja, uma obra criativa deve ser, ao mesmo tempo, acessível e estranha. Acessível porque é universal e estranha porque revela a singularidade de um ser humano.

E se, classicamente, identificamos estes dois tipos de pensamentos, o intuitivo e o racional, com cada um dos dois hemisférios cerebrais, é verdade que a criatividade, a construção de uma obra, exigem integridade, orgânica e funcional, de todo o cérebro. E estudos há, que não vou agora descrever, que põem a claro a diferença entre a riqueza do pensamento criativo e a pobreza e a previsibilidade do pensamento psicopatológico.

A noção de loucura é no entanto muito mais vaga e mal definida: vai desde a total desorganização do pensamento e do comportamento até ao desafio da norma que todos os artistas têm de fazer, e que por vezes aparece como anómala, transgressora e perturbante.

Por isso, convém especificar que não falarei de loucura artística nem de loucura da mente. Loucura é uma palavra de múltiplos significados e amplitudes, e por isso falarei de doenças mentais que produzem um grau maior ou menor de desorganização a nível do pensamento, dos afectos e dos comportamentos. Debruçar-me-ei apenas sobre a interacção entre doença afectiva, em que a principal perturbação é a do humor ou estado de ânimo, e a criatividade.

No entanto, reduzir a expressão artística a uma prática astuciosamente utilitária é, de facto, reduzi-la; é torná-la pequena e capturável. Porque aquilo que está em questão é a essência mágica da criação - e o mágico é aquilo que não se conhece, e portanto que não é controlável. Criar, como autor, e ler o que o outro criou, como espectador, são sempre actos de surpresa, de descoberta pessoal.

Será que o artista tem de padecer de alguma forma menor de doença afectiva para poder criar? Ou antes sendo ele um receptor de algo que é volátil, de algo que nunca foi expresso daquela maneira, cumpre uma viagem perturbante, identifica-se com emoções que nem sequer são as suas, mas que o seu olhar captou num dado momento? Por isso, "o poeta é um fingidor", como diz Fernando Pessoa; transmuta as coisas, não as reproduz. Essa viagem, totalmente pessoal, afasta-o da norma e fá-lo tocar os limites do próprio equilíbrio emocional.

E depois, toda a invenção é perturbadora. Porque ninguém cria sem ter de mostrar a viagem que fez ao fundo das coisas. Isso que torna as coisas tão difíceis: criar, inventar, é sempre um acto contra a superfície, e, portanto, iconoclasta. E a desaprovação exercida pela norma é terrível, mesmo que aprove e aplauda. Porque somos educados e socializados para nos assemelharmos.

Ser doente psiquiátrico, ou ser classificado como tal, para lá dos aspectos benéficos do "estatuto de doente", equivale a uma diluição da identidade: a doença torna, de certa forma, previsíveis os comportamentos do ser humano, cristaliza-o numa constelação de sintomas, assemelha-o a outros pacientes com diagnóstico idêntico. Encorajar qualquer expressão criativa, seja qual for a capacidade de invenção, é portanto uma forma de conquista da sua própria singularidade.

Isabel Cristina Pires

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