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Doença Afectiva e Criatividade

Comunicação apresentada no 1º Encontro de Psiquiatria do Hospital do Lorvão, realizado nos dias 15, 16 e 17 de Novembro de 1990 no Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra e publicado em 1993 nas Actas do 12 Encontro de Psiquiatria do Hospital do Lorvão.

O elevado número de suicídios de escritores e pintores, nomeadamente em Portugal, bem como as vivências de angústia e sofrimento patentes em muitas das manifestações artísticas, fizeram-nos reflectir sobre algo que nos parecia paradoxal: se a criatividade é uma neo-construção da realidade, em que o criador escolhe livremente as peças do seu puzzle, exigindo para isso plena integridade do pensamento, e, pelo contrário, o pensamento psicopatológico está empobrecido e perturbado pela doença mental, como é que era tão evidente a associação entre patologia mental e criatividade? Será que o velho mito, de que o artista é um louco, é verdadeiro? Mas quando falamos de doença mental, estaremos a referir-nos a quê? E de que maneira irá essa patologia influenciar a criação artística?

Dois estudos norte-americanos começaram por nos chamar a atenção. O primeiro, realizado por Rothenberg em 1983, procurou estudar o chamado pensamento janusiano (do deus romano Jano, representado com dois rostos, um de jovem e outro de velho), em que palavras, ideias ou imagens antitéticas são conceptualizadas simultânea ou sucessivamente, surgindo depois a criação (ou síntese) como resultado desse confronto. Em quatro grupos estudados- um grupo de cientistas galardoados com o prémio Nobel, um grupo de doentes mentais, um outro de indivíduos bastante criativos e outro de indivíduos pouco criativos- foi o grupo dos indivíduos mais criativos, ou seja, o dos cientistas do Nobel, que obteve as cotações mais elevadas no teste de associação de palavras. Os doentes mentais obtiveram as cotações mais baixas, colocando-se os indivíduos criativos e os pouco criativos numa posição intermédia, daqui se concluindo que o pensamento criador e o pensamento psicopatológico são coisas diferentes.

Num segundo estudo, agora no domínio das artes plásticas, procurou-se avaliar até que ponto era possível identificar ou não pinturas executadas por doentes mentais (na sua maioria esquizofrénicos). Um júri de 84 elementos, que integrava técnicos de saúde mental, artistas plásticos e estudantes, observou uma mostra de 96 obras, metade das quais produzida por doentes mentais, sendo as restantes pintadas por indivíduos normais, tendo depois de avaliar a respectiva autoria. Os resultados mostraram que esse discriminação era possível na grande maioria dos casos, indicando que a arte dita psicopatológica possuía algumas características específicas, nomeadamente a desorganização e a irrealidade, qualitativamente diferente da dos pintores profissionais. Nestes, por mais abstracta, "exagerada" ou "absurda" que seja a sua pintura, existe sempre uma estrutura formal bem integrada: o artista reorganiza a realidade, o psicótico desorganiza-a.

No entanto, nomes de suicidas como Camilo Castelo Branco, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Antero de Quental Augusto de 5! Rita, Mário Eloy, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Guy de Maupassant, Vincent van Gogh, e ainda outros, em que existem fortes indícios de terem sofrido de doença afectiva e/ou de dependência alcoólica e opiómana, como R. Schumman, Coleridge, Keats, Tolstoi, Verlaine, E. Allan Poe, Jack London, Malcolm Lowry, toda uma lista infindável que parecia corroborar a hipótese de, entre os artistas, nomeadamente os escritores, haver um aumento na incidência de doença afectiva.

Com efeito, ao avaliar a incidência de doença mental num grupo de trinta escritores contemporâneos, nos seus familiares em 1º grau e num grupo de controle com estatuto social e Q. I. semelhantes, Andreasen observou, em 1987, que os escritores tinham uma maior prevalência de doença afectiva, sobretudo bipolar, e os seus familiares apresentavam também aumento de doença afectiva e de criatividade, em relação ao grupo de controle, o que sugere que esses traços existem muitas vezes em simultâneo nas famílias, e que provavelmente serão mediados geneticamente. A esquizofrenia primava pela ausência.

Um outro estudo, (Lester, 1990), procurou analisar a patologia mental de 13 escritores suicidas, tendo verificado e igualmente uma elevada incidência de doença afectiva depressão, e ainda alcoolismo em cerca de um terço dos casos.

Nesta ordem de ideias, procurámos avaliar até que ponto a vivência depressiva e a temática de perda eram visíveis na poesia portuguesa contemporânea. Escolhemos duas antologias, "Edoi Lelia Doira", de Herberto Hélder, que engloba poetas desde a segunda metade do séc. XIX até à actualidade, e outra de carácter diferente, o Anuário de Poesia de Autores não Publicados, e curiosamente, em ambas encontrámos uma percentagem semelhante de poemas onde a temática era claramente de perda, de luto, de angústia (cerca de 2/3). E, dos 18 poetas seleccionados por H. Hélder, 7 sofriam, de acordo com a resenha biográfica, de alguma forma de doença mental: suicídios, internamento em clínicas psiquiátricas, alcoolismo, dependência do ópio, etc. Naturalmente que todos estes números não têm significado do ponto de vista epidemiológico. São apenas indícios que parecem querer confirmar os estudos americanos anteriormente citados.

E quanto à pintura? Será que através da abservação da obra, poderemos inferir algo acerca do estado de espírito do seu criador?

Observemos um conhecido quadro de Picasso, "Vidas", da sua fase azul (fig.1); uma tela de El Greco, "Toledo numa noite de tempestade" (fig.2); a "Romaria de Santo Isidro", da série "Divertimentos Populares", de Goya, logo após a sua surdez (fig.3); "Mistério e melancolia de uma rua", de Chirico, 1914 (fig.4); e ainda uma pungente escultura de Kienholz, " O hospital do estado", de 1965 <fig.5). Comparemo-las com um dos estudos de Matisse para o seu quadro "Alegria de viver" (fig.6) com a tela "Paraíso", de Kandinsky (fig.7), ou "O Vermelho é a crista do galo", de Gorky (fig.8). A noção de bipolaridade entre estes dois grupos de obras é quase instintiva.

Mas será que estes quadros, por mais sugestivos ou reveladores que sejam de um determinado estado de espírito do seu criador, poderão ser considerados pelo psiquiatra como um elemento de diagnóstico de doença mental, nomeadamente de depressão, no 1º grupo, ou de hipomania, no 2º?

Talvez possamos responder melhor a essa questão, se observarmos a produção artística de doentes sofrendo de patologia afectiva, e que não são artistas. Esta obra (fig.9)), de um indivíduo com uma depressão endógena, embora apresentando algumas características como a rigidez e a imobilidade, tem pouco impacto emocional, é pobre do ponto de vista artístico. Esta outra, (fig.1O), de um deprimido com ideação suicida, é reveladora pela sua temática. A representação gráfica de caixões, pedras tumulares, cruzes, coradas pendentes e outros símbolos da morte na nossa cultura deverão alertar o terapeuta para a existência de ideias de suicídio. O mesmo se passa, aliás, com a expressão poética: um estudo de Sharlin sobre poemas de jovens que posteriormente se suicidaram, quando comparadas com as de um grupo de controle, revelou diferenças semânticas significativas.

Este quadro (fig.11), igualmente de um doente deprimido, revela, segundo os autores do estudo, um pendor suicida. Este tipo de elementos aparece frequentemente na pintura destes doentes, como se fosse uma metáfora: um sol de cores violentas, uma estrada que parece caminhar para ele. ~ tentadora a analogia destes elementos gráficos com um poema de Sylvia Plath, (poetisa que veio a suicidar-se), em "Anel", 1965:

«E eu
sou a seta,
o orvalho que voa
suicida, em uníssono com o ímpeto
para dentro do olho
vermelho, o caldeirão da manhã.»

(trad. de Wanda Ramos)

Analisemos um dos últimos quadros de Van Gogh, pintado poucos dias antes de se suicidar, o seu famoso "Gralhas no trigal" (fig.12) Curiosamente, a sua estrutura é semelhante à atrás descrita. Aqui, um outro exemplo da obra de um doente sofrendo de depressão e ideias de suicídio: o sol, os diversos símbolos da morte, o rio, ou a estrada, entre montanhas, (fig.13)

Observemos agora a maneira como dois pintores trataram a própriavivência de guerra: eis o "Soldado fumando cachimbo" de F. Léger, 1922, e "Guerra", de Segail, 1944 (fig.15). Ambos sofreram directamente a angústia e o horror da guerra, o 1º como combatente da 1ª Grande Guerra, o 2º num campo de prisioneiros, na Alemanha. Nada, porém, nos autoriza a pronunciarmo-nos sobre a existência de sintomatologia depressiva na altura em que foram pintados. Apenas podemos afirmar que essas experiências de horror foram transmutadas, pulverizadas e reconstruídas, mas de tal maneira que o sentimento que transmitem é diferente do das telas de deprimidos que vimos anteriormente.

O diagnóstico clínico, nunca é de mais repeti-lo, assenta na recolha de múltiplos elementos de diferente natureza, pelo que a análise da expressão artística é insuficiente, e até falaciosa. No entanto, a existência das metáforas pictóricas a que aludimos, quer na pintura, quer na poesia, constituem um tipo de comunicação não-verbal que convém saber reconhecer.

Retomando a questão inicial, os estudos que citámos parecem à primeira vista contraditórios, ou seja, confirmam por um lado um aumento de incidência de doença afectiva, pelo menos em escritores, e por outro, sustentam firmemente a diferença entre um pensamento/criação artísticos e um pensamento / criação psicopatológicos

Parece-nos, contudo, que, nos casos em que criatividade e doença afectiva coexistem, a relação entre elas não é de maneira nenhuma uma relação de causa-efeito, mas sim (e esta afirmação é naturalmente polémica), uma relação simbiótica na sua interface. Ou seja, as vivências experimentadas nas fases depressivas (angústia, desespero, aspectos fóbicos, obsessivos e paranóides, perda da auto-estima, agressividade, sofrimento, entre outros), também nas fases hipomaníacas ou mesmo maníacas (felicidade, perfeição, clareza, exuberância, desinibição, etc.), todas essas vivências ampliam o universo emocional do artista, vindo posteriormente a ser utilizadas na criação. Muitos autores, nomeadamente Silverman, sugerem que a "lucidez" da depressão, i.e. todo aquele material que é ruminado mas não rentabilizado devido à inibição psico-motora e aos aspectos da distorção cognitiva que ocorrem durante uma fase depressiva, dá depois os seus frutos numa fase de hipomania.

Por outro lado, a própria criatividade tem uma função terapêutica de reparação (uma ideia desde muito cedo veiculado por autores psicanalíticos, nomeadamente Melanie Klein, Winnicott e Spitz, e mais recentemente Silverman, em 1986, num artigo sobre S. Plath) . Desta maneira, o processo criador aparece-nos como uma magnífica estratégia para lidar com a depressão, com os sentimentos de perda de auto-estima e do sentido da vida, com a tristeza e com a revolta, até mesmo com a própria ideação suicida, umas vezes com êxito, outras revelando-se insuficiente.

Ao criar, o artista dá à luz os seus monstros escondidos. O facto de serem descobertos ou revelados retira-lhes alguma da carga emocional que contêm: no fundo, o mesmo efeito se obtém com a chamada psicoterapia de apoio, ou inespecífica. Não é pois por acaso que se fala tanto em exorcismo ou catarse, àcerca do acto criador, e que tantos artistas dão testemunho desse alívio. Goethe, ao escrever o seu Werther, exorcizou os seus impulsos suicidas, provavelmente salvando a própria vida (Poldinger, 1986). Não é também por acaso que a adolescência, com todo o seu turbilhão emocional de conflitos e perdas, é uma altura privilegiada para o aparecimento da expressão poética.

Faremos apenas um breve abordagem à questão da terapêutica, nomeadamente da introdução do carbonato de lítio nos indivíduos criativos que sofrem de Psicose Maniaco-depressiva. Um estudo de Mogens Schou refere que, em 24 artistas sujeitos a terapia pelo lítio, metade referia um aumento da criatividade, um quarto não apresentava alterações, e o outro quarto viu a sua produtividade diminuída. Embora se trate de uma pequena amostra, este estudo alerta-nos para a necessidade de ponderar cuidadosamente esta questão, devendo o doente e o terapeuta, em conjunto, avaliar periodicamente as vantagens e desvantagens da profilaxia pelo lítio.

Para finalizar, parece-nos que esta conceptualização das relações entre doença afectiva e criação artística, é apenas um dos níveis de leitura da complexidade do artista e da sua obra.


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Isabel Cristina Pires

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