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A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio – narrativa e modernidade

"E continuavam fluindo aqueles três rios, o Ave e o Leça e o Vizela, reunidos num quarto, que o das postestades, por certo, haveria de ser. Nele mergulhavam seu útero fertilíssimo personagens feminina s, de vastas ancas de jaspe, onde os limos mais delgados, que a ventania rasava, para a eternidade, ficariam verdejantes." Nas primeiras páginas, assim se fecunda a obra de Mário Cláudio de uma relação do homem com a natureza, geografia humana, de seiva antiquíssima, lusitana, que se transmitiria, por parto, a Manuel Pinto de Meirelles, da Casa de Manguela, em Santiago da Carreira, em 1709.

Em 1756, este Meirelles se casará, na Igreja de S. Bento da Vitória, no Porto, com Francisca Clara de Azevedo Pinto Aranha e Fonseca, vinda da Casa de Campos, de Penha Longa de Benviver. E no Porto, na Rua de Belmonte, se iniciarão como casal, e obreiros de uma linhagem, que habitará cantaria de granito, A Quinta das Virtudes, sobranceira ao Douro, onde este se dilata, face ao ímpeto do Atlântico.

A Quinta das Virtudes cresce em acabamentos, cresce em criadagem cresce em descendência, num Porto que faz, e sempre fez, história, que nunca se saberá se é a do torrão ou se é a da sua população. A mesma miscigenação contaminará A Casa das Virtudes, que se confudirá sempre com os seus locatários, e com a Cidade Invicta, em sua história de cores berrantes, na transparência de nevoeiros. José Pinto Meireles morre com 60 anos, deixando Francisca Clara de Azevedo Pinto Aranha e Fonseca com 38, na companhia de cinco filhos: António, João Manuel, Joaquim, José Pedro e Ana Felícia. Francisca Clara assume o papel de protagonista, sobre o óleo do seu marido vincando bem a sua imagem, sem dele aproveitar qualquer traço, para além do sonho que já habitava, como entidade, A Casa das Virtudes. Isto até 1791, ano da sua morte, que fará de João Manuel o novo protagonista, já que o António, o primogénito, era demente. Este João Manuel, porém, acaba por deixar as Virtudes, para casar romanticamente com uma criada, Teresa. Sucede-lhe seu irmão, Joaquim Pinto de Azevedo Meirelles, casado com Maria Clara de Azevedo e Sousa Vieira da Silva e Albuquerque. O lençol genealógico será estendido por Mário Cláudio até Joaquim de Azevedo Sousa Vieira da Silva e Albuquerque, neto desse Joaquim Pinto de Azevedo Meirelles.

Esta relação parentesca, apresentada assim linearmente, aponta para uma estrutura narrativa de natureza histórica. Será este, se se quiser, o grande sintagma narrativo da obra, onde outros sintagmas narrativos se inserem numa linha descontínua, por encaixe ou paralelismo, criando uma estrutura complexa própria, extensa a outras obras do autor, que por aí, não só mas também, nos obriga a pensá-lo em termos de uma modernidade que não podemos deixar escapar. Pela sua conexão com este exposto, considera-se pertinente citar a contracapa: "Baseado em dados documentais e em tradições familiares, faz Mário Cláudio reviver uma plêiade de personagens reais, coloridas pela imaginação, movendo-se no palco dos seus amores e dos seus negócios, das suas vitórias e das suas frustrações. É de uma visita ao passado que se trata, surpreendido aqui numa sucessão de atmosferas, marcadas por olhares e por aromas, pela pequena eternidade e pela fugacidade da vida."

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A montagem, narrativa, ou composição global, não se submete à sequência tradicional, num eixo de acontecimentos de causa-efeito, de uma passagem de um equilíbrio a outro equilíbrio, através da peripécia, de onde resulta o movimento e o seu ritmo, mais ou menos acelerado, que caracteriza a acção canonizada. Numa perspectiva paradigmática, grandes e pequenos planos se justapõem, indiferentes a uma continuidade, que será conquista do leitor, a quem caberá a tarefa de encontrar os operadores adequados a uma leitura complexa, profunda e rica de colheitas abundantes e inesgotáveis, em que o realismo percepcional é superado por uma realidade outra, mais sentida, mais vida, mais sociedade, mais história. O que o autor, o principal narrador, consegue, interpondo-se como filtro entre o real, neste caso a documentação factual, e o leitor, criando uma percepção psicológica de linguagem afectiva e gnoseológica. Algo que encontramos na problemática do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967), de quem Rolf Günter Renner diz: "As concepções aparentemente realistas de Hopper não são simples representações duma realidade reproduzível, mas sempre reconstruções que ultrapassam a mera experiência."

Os grandes planos desta obra são protagonizados, na vertical, por Francisca Clara, João Manuel, Joana Maria, François Bertin (soldado napoleónico), Pedro e José (jardineiros), e Silvério; na horizontal, o Bilhar, o Baile, o Coleccionismo, a Prostituição, o Teatro S. João, as Espanholas, e as Plantas, que são personificadas. Os pequenos planos, que debucham o vasto tecido social, são preenchidos por beatas, padres, cativos do aljube, pedreiros-livres, dissertadores de viajatas, estrangeirados, místicas, emigrantes, contrabandistas, traficantes de bifes, crianças, alcoviteiras, aguadeiras, carrejões, lavadeiras, peixeiras, vendedores ambulantes, vivandeiras, quinquilheiros, lampionistas, prestamistas, bruxas, garimpeiros, caciques, pessoal doméstico, viteleiros, almocatés, fazendeiros, costureiras, merceeiros ao domicílio, homens do tribunal, gravadores, criados de hotel, mestres de cerimónia, intelectuais, alfaiates, hortaliceiros, etc.. Do que se infere, de imediato, uma conexão entre os protagonistas e o tecido social em que estão inseridos. E, se atendermos às dezenas de chamadas históricas, teremos uma outra conexão. Dir-se-ia que o Autor inseriu uma família numa realidade social, que, por sua vez, se insere num plano mais vasto, o da história. O que seria urna perspectiva literária de causa-efeito, parente do naturalismo, gerado pelo estático positivismo de Augusto Comte. Mas, na verdade, Mário Cláudio apresenta-se mais próximo de um Fernão Lopes do que de um Eça de Queirós. Não se veja nesta asserção qualquer intenção de vínculo estético. O leitor, sem qualquer esforço, em certas passagens do texto, como o Cerco do Porto (p. 235), não pode deixar de lembrar-se de Fernão Lopes, como, noutras passagens, de caricatura social, de Eça de Queirós. Contudo, A Quinta das Virtudes tem um corpo próprio e uma alma própria, que nos obriga a descobrir a sua natureza nela mesma, e não em filiações. Não é, no entanto, por aqui que queremos ir, para já. A primeira questão que nos desafia, diria até que provocatoriamente, é a da estrutura da Obra.

Não há uma figura central, um protagonista, que assegue um fio narrativo, com principio, meio e fim. A descrição e a narração em contaminação profunda vão-nos fornecendo pessoas e acontecimentos, evocados sem qualquer preocupação normativa, à revelia de qualquer estrutura. O Escritor não tem qualquer problema em "perder-se" pelo caminho, fazendo incursões por recantos sociais ou históricos, parando a saborear um naco de vida, borrifando-se para as leis da acção, voltando atrás para recuperar algo que não foi oportuno referir, indiferente a qualquer despotismo cronológico, pois a realidade passa pela sua sensibilidade, espaço privilegiado de uma narrativa que se quer viva, palpitante, de cariz existencial, em que o devir, múltiplo e fluido, parece ser a aposta de um texto.

Neste líquido narrativo, como soro étnico e epocal, flutuam móveis, utensílios, insectos, doces, frutas, dezenas de flores nomeadas, medicamentos, desinfectantes, higiene, vestuário e suas modas, variadíssímo, doenças, música, transportes, periódicos, gazetas e folhetins, para além das franjas sociais já citadas e o léxico riquíssimo, emergente de outras narrativas que não se apresentam, mas que participam com a sua sombra. Apetece pôr de lado as normas, as acabadas e as que ainda se procuram, e dizer que a unidade de A Quinta das Virtudes está precisamente na vasta diversidade, como um corpo, semiótico e semiósico na sua complexidade. Pela sua pertinência, e só, se cita Todorov: "O romance é um ser vivo, uno e contínuo, como qualquer outro organismo, e notar-se-á, creio eu, que ele vive precisamente à medida que em cada uma das suas partes aparece qualquer coisa de todas as outras." (1). E o que acontece entre os capítulos, e entre as parcelas de cada capítulo, em que o seguimento semiótico é recuperado, quando parece eclipsar-se, no espaço semi ico que o pressupõe: Quando o leitor, ao longo de quase quatrocentas páginas, é agarrado por uma relação contínua, é porque existe uma estrutura outra que é preciso descobrir, e foi isso que se procurou fazer. Mário Cláudio é um escritor de propostas narrativas, não codificadas, e, como tal, exige análises e não juízos, que pressupõem tabelas, vínculos literários numa linha historicista. O estudo da modernidade, especialmente a nível da narratividade, passa obrigatoriamente por este Escritor.

Não nos parece aceitável, ainda que tal facilitasse a nossa tarefa, reduzir A Quinta das Virtudes a uma sequência de gerações, a uma árvore genealógica. Aliás, é mais que evidente que para além desta preocupação há outras preocupações muito mais vastas e mais profundas. Preocupações essas que estão precisamente na base da destruição da estrutura narrativa tradicional. Os Meirelles, tirados da cave genealógica do autor, não escapam, pelo seu tratamento, à mutação simbológica. São exemplos de outras castas, de outros meirelles. Porque meirelles serão todos, que, com os mesmos propósitos, respiram a mesma atmosfera social, se inserem no mesmo tecido económico, são filhos da mesma pátria, isto é, da mesma mentalidade, política e histórica. E não será por acaso que Mário Cláudio introduz no plano do abstracto, entenda-se isolamento, .4 Quinta das Virtudes, ao nomeá-la, apenas, por Casa, palavra isolada e com maiúscula, que obrigatoriamente cai no plano da simbologia, que, se por um lado, poderá funcionar como superlativação, por outro, não poderá evitar uma abertura a uma superfície, mais vasta, hiper-familiar. Os Meirelles das Virtudes, ainda que magistralmente trabalhados, são de facto paradigmáticos na arte de dar corpo e alma às personagens, os Meirelles, como dizia, pela sua pigmentação humana tão marcada, acabam, paradoxalmente, por se transformarem em tipos, mantendo a sua individualidade. É que a fronteira entre figura modelada e figura plana, em alguns casos, é nítida, noutros, ela apaga-se, por força da própria realidade. Se a história, ou a crónica, de uma genealogia pode ser narrada ou descrita em termos de particularidade, não o será menos, muito pelo contrário, quando contextualizada, e se apagar nesse contexto, sem se apagar. Para uma maior aproximação de uma realidade compacta, de natureza semiósica, é conveniente afrouxar a rigidez do emprego, em literatura, do conceito de "tipo". Só como casos limites, e em abstracto, se poderá aceitar figuras planas, que correspondem aos "tipos", e figuras modeladas. O suporte do "tipo" é a contextualização, e a contextualização é a operação obrigatória de uma personagem bem modelada. No primeiro caso, o contexto está implícito, no segundo, está explícito. Na maior ou menor explicitação estarão os graus da tipologia literária ou da modelação. Claro que estamos a falar de literatura e não de psicologia, na classificação tipológica do temperamento, que, embora individualizante, não deixa de ser construído na base de substituições paradigmáticas. Em A Quinta das Virtudes, temos um campo vastíssimo para esta pesquisa, dada a heterogeneidade do aprofundamento das personagens, que, no seu conjunto, formam de facto um organismo vivo, em que nenhuma das suas partes deve ser alienada. E em que tipos e caracteres se condicionam mutuamente, permitindo alternâncias topológicas, ou esbatimentos. Estas considerações estão ria base de uma leitura, que foi seduzida: pelo que há de simbólico na obra, pelo que há de heterodoxo na sua estrutura narrativa. A Quinta das Virtudes ultrapassa-se a si própria como genealogia, sendo esta recuperada com mais força precisamente por essa ultrapassagem. Deixa de ser crónica para ser história, deixa de ser descrição para ser narração, deixa de ser Casa para ser cidade, deixa de ser cidade para ser nação, deixa de ser registo para ser vida, deixa de ser realidade observada para ser realidade sentida, sempre testemunhada pelo humor, a reacção crítica implícita ou explícita do autor. "(...) uma factualidade baça, a qual intervinha como trave-mestra da complexa construção.", assim se poderia sintetizar, aproveitando as palavras do autor-narrador, na página 232. O modelo de análise actancial proposto por Greimas não se ajusta a tal narrativa, que, também por aí, como perversão, terá de ser pensada no âmbito da modernidade.

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O porta-voz de A Quinta das Virtudes, isto é, o narrador, é, por natureza do texto, o próprio autor, que arranca na primeira pessoa, na qualidade de cronista, e não de ficcionista. Mas uma verdade outra se vai revelando ao longo do texto. A ficção vai crescendo no corpo da documentação, e uma outra documentação vai ficando da ficção. O próprio autor torna-se o leitor da história a retalho, sujeitando-nos, a nós outros, leitores de um leitor, ele, o autor, o narrador. Este processo obriga o leitor, exterior à obra, a sintonizar com o leitor nela instalado. Utilizando a nomenclatura de Umberto Eco, encontramos reunidas no Autor a intentio auctoris e a intentio lectoris. Fruto desta fecundação, temos a Intentio operis, que obriga o leitor externo a um acompanhamento em paralelas, que se sobrepõem frequentemente, abolindo fronteiras, entre a constatação factual e os factos não constatados, o grande caudal do percurso humano, perante o qual o positivismo atávico se deteve. É na trança destas duas linhas que o leitor externo é apanhado e envolvido, por vezes esquecendo-se da sua função de analista, e levado por um fluir existencial, já num plano alheio ao real e à ficção, num plano de uma nova realidade, e da enunciação, onde a seiva se impõe e o tronco se esquece. Esta seiva é a força fluvial que assegura a navegabilidade do prazer, ao longo de 367 páginas. Em O Prazer do Texto, Roland Barthes cita Nietzche: "... não somos suficientemente subtis para nos apercebermos do escoamento provavelmente absoluto do devir; o permanente só existe graça aos nossos órgãos grosseiros que resumem e reduzem as coisas a planos comuns, quando nada existe sob essa forma." (2).

O autor-narrador compromete o leitor. Não sei se intencionalmente. Mas declaramente as personagens da obra, que delas faz também narradores. Dos dez capítulos em que a obra se divide formalmente, o sétimo tem como narrador João Pinto de Azevedo Meirelles, e os restantes o autor. Mas João Pinto é um narrador por empréstimo, que Mário Cláudio compromete, para tornar presente um passado, para tornar vivo o que está morto, para revestir de realidade a ficção. Desta forma: "Cá vai a narração, pois, de que tanto gosta", principiava João Pinto de Azevedo Meirelles o relato seguinte, dirigindo-se à mulher, e a si mesmo, mal terminavam a cela." (p. 235). Este processo de substituição de narrador verifica-se ao longo da obra, ainda que de forma mais diluída. Põe as falas das personagens entre aspas no corpo do discurso indirecto, criando, dessa forma, uma dupla narrativa, tradicionalmente desdobrada em discurso indirecto e discurso directo, este marcado pelo travessão. Exemplifiquemos com uma passagem (pp. 320-321), sem qualquer preocupação selectiva: "Nunca aprendeu a ler o meu Pai, nem a escrever, e morreu velhinho", contestava Pedro, afim de se escorar, muito seguro, na parábola seguinte, "Havia uma cameleira, por aí, há uns cinco anos, ela por ela, que era muito arisca, e que não queria que olhassem por seu bem, e vejam que, depois que resolvi deitá-la ao desprezo, começou a florir, e a florir muito, em Novembro e em Abril, como para nos dizer que, sem paparicos, é que estava contente". Desta forma, o narrador principal, tradicionalmente colocado fora do campo da acção, tal como um camaraman, é apanhado por uma outra câmara que o envolve na acção, pois as duas falas surgem no mesmo plano sintagmático. Digamos que o narrador acaba por cair no campo de jogos narrativos, num plano de substituições, portanto paradigmático. Nos cabelos desta trança se envolve o leitor externo, apanhado no cruzamento de dois planos, que o obriga a uma desconstrução e a uma recuperação, que o tornam comprometido e, abusivamente, responsável pelo fio narrativo, que terá de o puxar e preservar.

Este narrador fasciculado, para utilizar um termo da botânica, marca uma narrativa, não só enquanto estrutura, mas também enquanto significância. No percurso histórico literário, encontramos aproximações deste processo, mas, enquanto pertinência, não pode deixar de ser no âmbito da modernidade.

Em nosso abono, nos ocorrem as palavras de Genette: "a crítica é um mostruário de estruturas particularmente rico".

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Já dissemos que a análise actancial de Greimas não se ajusta a A Quinta das Virtudes. Greimas encara as personagens segundo o que fazem, portanto, numa linha sintagmática, e não segundo o que são. Na perspectiva de Greimas, em que fazer significa as personagens assegurarem a trama da narrativa, as personagens de A Quinta das Virtudes não fazem, são. A elas melhor se encosta Bremond, lido por Roland Barthes: "Cada personagem, mesmo secundária, é o herói da sua própria sequência." (3) É o que se verifica na obra em questão. Cada personagem é uma história. A Quinta das Virtudes é um conjunto de multas histórias, não uma antologia, como o Decameron de Boccaccio, dado que essas histórias estão ligadas por operadores temporais, espaciais, sociológicos, económicos, psicológicos e históricos. A verdadeira trama de A Quinta das Virtudes é o devir, que a constrói, talvez melhor, segrega, na sua complexa natureza dinâmica, da qual pouco nos. apercebemos e, esse pouco, toscamente. Jamais qualquer género literário poderá dar conta dessa trama. Nem o realismo, nem o ficcionismo, poderão traçar uma coreografia de personagens, de espaço e movimento. São falsas todas as estruturas literárias. Contar uma história, verdadeira ou falsa, é sempre uma abstracção grosseira. A vida, e só por aproximação, é mais sentida que inteligível, e só quando mergulhados no fluido. Não há nada mais falso que pegar num punhado de personagens e montá-las num texto, numa base actancial ou outra. A Quinta das Virtudes tem, quanto a nós, esse mérito de escapar à superficialidade da trama ortodoxa. Quem nela procurar um fio de causa-efeito, com o hífen, onde se instala o suspense, experimentará uma frustração. Quem nela mergulhar e procurar saborear a flutuação no seu fluido, experimentará um prazer, que resulta de uma integração, na qual se descobre e se identifica. Apesar de uma sucessão de gerações, as personagens emergem de um fluido, o que se sente nitidamente, sem negar a sua modelação. E como se houvesse uma sobreposição de imagens, das quais o autor extraísse uma da selecção de alguns traços, os mais perceptíveis, entre traços sem fim. Por rupturas do tecido existencial nos surgem magistralmente modelados a Francisca Clara, o João Manuel, a Joana Maria, o soldado napoleónico François Bertin, os jardineiros Pedro e José, o Silvério, e também as atmosferas do bilhar e do baile, as que desciam ao Passeio das Virtudes, as "meninas que vendiam os seus préstimos, enquadradas pela comandita", o verniz estaladiço das noites do Teatro S. João. Recortes que, numa perspectiva existencial, não apagam outras personagens, literariamente secundárias. Num tecido existencial não há medida nem catalogação. Há mais ou menos visualismo, mas não dimensão. Um nome, uma profissão, enunciados, podem transportar uma carga descritiva e narrativa, temporal e espacial que os ultrapassam em si mesmos, se estão inseridos numa atmosfera existencial e não funcionam apenas como figurantes, lado do qual a leitura integral nos afasta.

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A Quinta das Virtudes é permissível a muitos outros planos de análise, que não abordamos, por ultrapassar o nosso objectivo, presente. Desses, no entanto, destacamos os que a obra mais estimula a uma análise: o léxico, os conceitos de tempo, a crítica social e histórica, a simbiose do erudito e do popular, a mentalidade de um povo, uma perspectiva social da mulher, a cor de uma geografia humana, o epigonismo e a criatividade.

Duas palavras, contudo, sobre epigonismo e criatividade. E frequente, nas críticas literárias, o emprego do termo epigonal. Mesmo por pessoas intelectualmente bem dotadas e bem apetrechadas, o que nos dá a liberdade de suspeitar, não das suas capacidades, mas da sua integridade, por força das circunstâncias, comprometida, ausente. Não podemos deixar de recordar, dolorosamente, pelo que em si indiciam, as palavras do pintor americano Andy Warhol: "ninguém pode escapar ao turbilhão dos mass media comerciais, a não ser que renuncie à divulgação das suas ideias, caso contrário, terá, necessariamente de fazer o seu jogo." (4) Contra esse "jogo" da crítica nos assumimos, com raiva, porque é a única arma de que dispõe quem não se conforma com a derrocada humana, couraçada num sistema já incontrolável. Quando empregam a palavra epigonal, os doutores assalariados pelos mais diversificados interesses ou intenções pretendem, regra geral, excluir o autor visado do circuito. Por isso se torna pertinente um pequeno esclarecimento. Nos seus limites, nenhum texto é epigonal e qualquer texto é epigonal. Isto não precisa de ser demonstrado perante pessoas da cultura, que o mínimo que delas se exige é o conhecimento dos problemas. Há casos que, pela sua sobreposição declarada, é admissível falar de epigonismo, como nomenclatura de trabalho. Agora, utilizá-la como instrumento de segregação, não só é reprovável, como é repugnante. Tudo isto a propósito de A Quinta das Virtudes.

Mário Cláudio, exímio gestor da língua portuguesa e, quanto a nós, o que a levou mais longe, e portador de uma cultura vastíssima, subsidiada por um espírito arguto, salpicou A Quinta das Virtudes com elementos que podem levar o incauto ou o mal intencionado a concluir por um epigonismo, Há pigmentações, por vezes vivas, evidentes, que indiciam lugares da nossa cultura literária, desde Fernão Lopes a nossos dias. Mas é mais que evidente a sua intencionalidade. Há uma argamassa feita de presente e passado, há uma chamada ao palco dos mitos, dos símbolos, dos pedaços marcantes da nossa cultura. Há uma espécie de ressurreição, que se pretende globalidade, o dinâmico por oposição ao estático recordado, um epigonismo no sentido mais nobre e mais histórico, entendendo-se por este a ausência de separadores, sejam eles as datas ou outros. Este tipo de epigonismo é de fácil acesso a quem tem por hábito deambular pelos textos de reflexão sobre a modernidade.

Modernidade é a palavra com que queremos terminar a nossa reflexão. Nunca utilizámos a expressão pós-modernidade, intencionalmente. Poderíamos tê-la utilizado em relação a Mário Cláudio. Mas seríamos obrigados a uma explicação desenvolvida que quisemos evitar. Aceitamos a expressão como pragmática, dentro do seu contexto teórico, como nomenclatura prática, mas não como um conceito fundamentado. Haverá algo em movimento, que será modernidade, quando for definível, deixando a outra de o ser. A Quinta das Virtudes é um campo de pesquisa aliciante, para um inventário da modernidade

NOTAS

(1) Tzvetan Todorov, Estruturas Narrativas, 21ª ed., Editora Perspectiva, S. Paulo, 1970, p. 82.

(2) Roland Barthes, O Prazer do Texto, Edições 70, Lisboa, 1988, p. 108.

(3) Ibidem, "Introdução à Análise Estrutural da Narrativa", in Análise Estrutural da Narrativa, selecção de ensaios da revista Communication, col. Novas Perspectivas, Editora Vozes, Petrópolis, 1971, p. 44.

(4) Klaus Honnef, Arte Contemporânea (ed. alemã, em Português), Benedikt Taschen, 1994, p. 46.

Joaquim Matos

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